Um estudo publicado na prestigiada revista Science, que envolve duas dezenas de investigadores portugueses, espanhóis e franceses, desvenda um mecanismo essencial para a organização do cérebro nos primeiros anos de vida, fornecendo pistas para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas para doenças como autismo, depressão, esquizofrenia ou doença de Alzheimer.
A
descoberta é o resultado de mais de uma década de investigação, iniciada, em
2007, por Rodrigo Cunha, coautor do artigo científico e docente da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC).
Compreender
como se desenvolve o cérebro nos primeiros anos de vida é fundamental, uma vez
que os problemas que surgirem nesta etapa podem ter consequências para sempre.
Quando nascemos, a rede de neurónios do nosso cérebro não está ainda
organizada, é uma rede altamente plástica. A seleção de sinapses, o foco deste
estudo, é um dos mecanismos centrais, pois as sinapses são responsáveis pela
comunicação entre os neurónios.
No
processo do desenvolvimento cerebral «são geradas cerca de cinco vezes mais
sinapses do que aquelas que o nosso sistema nervoso necessita. Isto acontece
com o objetivo de selecionar uma em cada cinco, isto é, escolher as sinapses
que são ótimas para levar a cabo as funções do nosso cérebro», explica Rodrigo
Cunha, também investigador do Centro de Neurociências e Biologia Celular da UC.
Em
particular, os investigadores estudaram, em ratinhos, a estabilidade das
sinapses na fase em que elas são mais plásticas, num período correspondente em
humanos entre os seis meses e os quatro anos de idade, período em que ocorre a
maior seleção de sinapses. Se nesta altura «surgirem falhas na seleção de
sinapses, ficamos mais suscetíveis, por exemplo, a depressão, a ter um consumo
excessivo de fármacos psicoativos ou a desenvolver epilepsia. Isto já está
demonstrado cientificamente. Por isso, é tão importante estudar os múltiplos
mecanismos envolvidos no desenvolvimento do cérebro», observa Rodrigo Cunha.
Já
era sabido que há uma competição entre as sinapses e que as mais ativas são as
selecionadas. Porém, até agora, desconhecia-se como é que decorre este processo
de seleção, um aspeto crítico para redefinir a organização de sinapses, visando
corrigir disfunções em doenças do cérebro.
A
equipa de Rodrigo Cunha, em conjunto com os investigadores de Espanha e França,
descobriu justamente o principal mecanismo envolvido na seleção de
sinapses: a molécula de ATP – que
funciona como a moeda de energia do nosso organismo e também como um
sinalizador de atividade entre células no sistema nervoso – é a molécula chave
neste processo.
Os
cientistas descobriram que, à medida que uma sinapse está mais ativa, ela
liberta mais sinais. Um dos sinais
presente em quantidades particularmente elevadas durante esta fase inicial de
seleção de sinapses é o ATP. Ou seja, esclarece Rodrigo Cunha, «quanto mais
ativas estão as sinapses no sistema nervoso, mais ATP libertam, e este ATP é
muito mais rapidamente convertido em adenosina, que é algo em que nós temos
trabalhado, desde há cerca de duas décadas, como sinalizador entre células.
Neste trabalho mostramos que é fundamental, é crítico, o recetor ativado pela
adenosina ser estimulado para a sinapse se manter estável. Quando diminui a
atividade de uma sinapse, diminui a libertação de ATP, deixa de ser
suficientemente ativado esse recetor para a adenosina e a sinapse literalmente
desmembra-se, ou seja, toda a organização é destruída».
Os
investigadores detalharam ainda todos os processos mecanísticos envolvidos
nesta desagregação completa da sinapse. «Observámos, por exemplo, que uma
sinapse pode estar cerca de 20 minutos sem funcionar, mas se ultrapassar este
tempo, normalmente é eliminada. É um processo irreversível a partir dos 20
minutos», destaca.
Os
resultados deste estudo fornecem informação que pode ser muito relevante para o
desenvolvimento de futuros fármacos, pois, como explica Rodrigo Cunha, «para
tentarmos corrigir falhas num equipamento, primeiro é necessário saber como é o
seu funcionamento normal. O nosso trabalho insere-se na designada ciência
fundamental, que abre novas portas para uma aplicabilidade imediata».
O
próximo passo da investigação, adianta o cientista da UC, será realizar novas
experiências em modelos animais, para estudar formas de «manipular este sistema
de seleção de sinapses, visando diminuir a incidência de determinadas doenças.
Pela primeira vez, mostramos qual o principal sistema que permite a seleção de
sinapses. Por isso, em qualquer situação onde se verifique problemas
relacionados com a seleção de sinapses, agora sabemos qual é o alvo que temos
de utilizar».
Com
a descoberta agora publicada na Science, conclui, «qualquer grupo, em
qualquer parte do mundo, pode basear-se neste conhecimento para desenvolver e
testar novos fármacos para doenças do neurodesenvolvimento e doenças
neuropsiquiátricas que começam numa fase precoce da vida». Mas não só, este
estudo também fornece pistas para o desenvolvimento de novas abordagens
terapêuticas para doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer, onde
as redes de neurónios estão menos plásticas e manipular a dinâmica das sinapses
poderá ser útil. Universidade de Coimbra - Portugal
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