A poesia macaense de José dos Santos Ferreira, mais conhecido como Adé, transmite harmoniosamente o vínculo entre Portugal e Macau. Segundo um estudo levado a cabo por Pedro D’Alte, da Universidade Politécnica de Macau, Adé “é uma das vozes mais marcantes da comunidade macaense”
A
“pátria lusa, o fervor religioso cristão, a justeza e a harmonia do vínculo
Portugal-Macau” são temas que inspiraram a poesia em língua portuguesa de José
dos Santos Ferreira, comummente conhecido como Adé. Segundo um estudo de Pedro
D’Alte, da Universidade Politécnica de Macau, “a ameaça à tríade destacada cria
um conflito interno no poeta e os versos começam a funcionar como profecias de
quanto Macau perderá em termos sociais e culturais com a diluição da
administração lusa”.
O
poeta, nascido em Macau, com “alma portuguesa”, utilizou o crioulo português de
Macau e, também, a língua portuguesa para poetizar, “de forma harmoniosa, um
modo de sentir muito particular destas duas geografias e dos seus sortilégios”,
explica o autor.
A
reflexão sobre o futuro de Macau adensa-se com “a certeza do pathos” (“que se
estende sobre todos os seres humanos, como um manto”) e da “inevitabilidade”,
que “maximizam o quadro de denúncia sobre os costumes que vão emergindo e que
estão completamente desenquadrados da matriz dos costumes sino-portugueses”,
lê-se no artigo.
Segundo
Pedro D’Alte, José dos Santos Ferreira “foi um legítimo defensor da identidade
macaense, produzindo os seus artefactos literários num curioso caminho
dialéctico entre a língua portuguesa e o patuá”.
As
particularidades do patuá, que via a sua utilização na oralidade restrita a uma
franja populacional com ausência de educação formal, nomeadamente às mulheres
(cujo domínio da língua portuguesa não era comum), “não afastaram o poeta da
invenção literária com recurso a este crioulo português, muito pelo contrário”,
escreve o académico.
O
motivo que justifica a escrita de textos poéticos em língua portuguesa é a
tentativa de preservação para a posteridade de um registo “interessante” do
crioulo português, “que ele admitia ter desaparecido quase completamente de
Macau”, como explica o investigador, citando outros autores.
“Poema na língu maquista”
A
obra literária escolhida para o centro da análise da poética de Adé, por parte
de Pedro D’Alte, foi “Poema na Língu Maquista”, que engloba a co-presença das
duas línguas na obra, ainda que com “clara exaltação do patuá como língua
primária e criação estético-literária”. “O argumento é visível, desde logo, no
título e no posicionamento secundário da língua portuguesa que é relegada para
o final da colectânea”, elucida o pesquisador.
Segundo
o estudo, ainda que a poética de Adé não tenha uma intenção declarada de ser
cantada, esse potencial é explorado. A título de exemplo “flagrante” surge o
grupo Dóci Papiaçám di Macau, que utilizando as letras de Adé, exibe a
“virtuosidade da vertente oral Maquista”, nomeadamente através da música “Macau
sim assi”, que estabelece relação com a composição “Lisboa é assim”, de João
Nobre.
Esta
referência à literatura oral e à canção, como explica o investigador, tem outra
razão de ser. Quem ler a poesia em patuá de José dos Santos Ferreira denota
“uma certa primazia na oralidade sobre a escrita”. O código escrito é jovem e,
em variadas situações, “ambíguo”, tendo sido o próprio Adé um dos maiores
contribuidores para a sua utilização.
A
carga oral está presente na poesia em Maquista, em que a maioria das palavras
deriva do português, contudo, como explicam outros autores citados pelo
investigador, só em alguns casos é que a correspondência fonética é total. Na
grande parte dos casos a pronúncia das palavras em Maquista é diferente da
pronúncia em Português.
“Tal
concorre para que o jogo sonoro criado nas duas línguas seja amplamente
diferente. A língua maquista exibe-se mais aberta e simétrica no escanção do
verso e na sua componente rítmica. Por seu turno, o idioma luso surge mais
comprimido e regrado com sons fechados e com menor possibilidade de elisões
sonoras entre os vocábulos que compõem o verso”, refere Pedro D’Alte, notando
ainda que estas características literárias transmitem a sensação ao leitor de
um acesso a dois poemas inteiramente diferentes.
“Adentrando
na produção em língua portuguesa, do ponto de vista temático, Macau assume-se
como eixo transversal da poética de José dos Santos Ferreira”. A cidade agrega
diferentes coordenadas, quer como espaço, quer como personagem, ou ainda como
“emblema de um tempo que não existe, mas que se sonha cristalizado”, e como
“fonte ideológica de matriz portuguesa e assumidamente cristã”.
Um destino traçado
A
inevitabilidade do destino, a perda irremissível, com a transferência de
soberania em 1999, levam a uma “hiperbolização de Macau como terra amada,
abeirada a um paraíso terreno e pleno”. A recusa em aceitar o desfecho,
presente em algumas das composições de Adé, num contexto de perda, levam a um
matriz sofrido dos versos, que “é a face visível da angústia, da separação, do
fecho”.
Neste
caso, a carga emotiva, modelada no interior do poeta e exteriorizada
posteriormente em alguns elementos da sua obra, é explicitada pelo confronto entre
partes diametralmente opostas e que são portadas no binómio luz versus
escuridão. “Trata-se de um desassossego interno que extravasa para uma dimensão
física e comportamental”. Isso acontece porque, “progressivamente, a cidade se
revela antropomorfizada e se assume como personagem”. A solução para a
“disforia” que se torna evidente em situações como “o perigo de andar às
escuras”, “a iminência da queda”, “a face triste”, “a ausência de alegria no
movimento” e “o frio no corpo” está, frequentemente, na religião trazida por
Portugal. Essa resolução positiva “apenas é possível pelo messianismo cristão”.
A
aproximação do fim da administração portuguesa de Macau levou a que na poesia
de José dos Santos Ferreira houvesse um “estado de ânimo que toma feições de
temor das sequelas anti-cristãs e anti-portuguesas”, lê-se no estudo, que
referencia outros autores.
“A
singularidade da reacção poética de José dos Santos Ferreira reside na dimensão
atribuída aos seus alicerces de tradicional mundividência lusíada – o fervor da
fé cristã e o fervor do patriotismo imperial”.
José
Inocêncio dos Santos Ferreira, filho de pai português e de mãe macaense, nasceu
em Macau a 28 de Julho de 1919. Foi funcionário público, desempenhando as
funções de chefe de secretaria do Liceu Nacional Infante D. Henrique.
Reformou-se em 1964. Após a aposentação, foi indicado como secretário-geral da
Sociedade de Turismo e Diversões de Macau. Paralelamente, porque falante de
várias línguas como a portuguesa, a chinesa e a inglesa, conciliou actividades
docentes a alunos chineses. É ainda de destacar a colaboração jornalística com
o China Mail de Hong Kong, o Diário de Notícias em Portugal, ou O Clarim de
Macau.
Foi
fundador e dirigente de várias associações de desporto e, simultaneamente,
dedicou-se à filantropia, tendo sido presidente do Rotary Club e membro da Mesa
Directora da Santa Casa da Misericórdia de Macau. Em Setembro de 1979, foi
agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem do Infante D. Henrique e, já na
década de 80, recebeu a Medalha de Mérito Cultural pelo Governo de Macau. A
mesma tutela presta-lhe homenagem ao erguer uma estátua no Jardim das Artes, no
coração de Macau, em zona nobre da cidade.
Faleceu
no dia 24 de Março de 1993, em Hong Kong, aos 73 anos de idade. Susana
Martinho – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”
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