Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Macau - Religião e vínculo entre Portugal e a Região moldaram poesia de Adé

A poesia macaense de José dos Santos Ferreira, mais conhecido como Adé, transmite harmoniosamente o vínculo entre Portugal e Macau. Segundo um estudo levado a cabo por Pedro D’Alte, da Universidade Politécnica de Macau, Adé “é uma das vozes mais marcantes da comunidade macaense”


A “pátria lusa, o fervor religioso cristão, a justeza e a harmonia do vínculo Portugal-Macau” são temas que inspiraram a poesia em língua portuguesa de José dos Santos Ferreira, comummente conhecido como Adé. Segundo um estudo de Pedro D’Alte, da Universidade Politécnica de Macau, “a ameaça à tríade destacada cria um conflito interno no poeta e os versos começam a funcionar como profecias de quanto Macau perderá em termos sociais e culturais com a diluição da administração lusa”.

O poeta, nascido em Macau, com “alma portuguesa”, utilizou o crioulo português de Macau e, também, a língua portuguesa para poetizar, “de forma harmoniosa, um modo de sentir muito particular destas duas geografias e dos seus sortilégios”, explica o autor.

A reflexão sobre o futuro de Macau adensa-se com “a certeza do pathos” (“que se estende sobre todos os seres humanos, como um manto”) e da “inevitabilidade”, que “maximizam o quadro de denúncia sobre os costumes que vão emergindo e que estão completamente desenquadrados da matriz dos costumes sino-portugueses”, lê-se no artigo.

Segundo Pedro D’Alte, José dos Santos Ferreira “foi um legítimo defensor da identidade macaense, produzindo os seus artefactos literários num curioso caminho dialéctico entre a língua portuguesa e o patuá”.

As particularidades do patuá, que via a sua utilização na oralidade restrita a uma franja populacional com ausência de educação formal, nomeadamente às mulheres (cujo domínio da língua portuguesa não era comum), “não afastaram o poeta da invenção literária com recurso a este crioulo português, muito pelo contrário”, escreve o académico.

O motivo que justifica a escrita de textos poéticos em língua portuguesa é a tentativa de preservação para a posteridade de um registo “interessante” do crioulo português, “que ele admitia ter desaparecido quase completamente de Macau”, como explica o investigador, citando outros autores.

“Poema na língu maquista”

A obra literária escolhida para o centro da análise da poética de Adé, por parte de Pedro D’Alte, foi “Poema na Língu Maquista”, que engloba a co-presença das duas línguas na obra, ainda que com “clara exaltação do patuá como língua primária e criação estético-literária”. “O argumento é visível, desde logo, no título e no posicionamento secundário da língua portuguesa que é relegada para o final da colectânea”, elucida o pesquisador.

Segundo o estudo, ainda que a poética de Adé não tenha uma intenção declarada de ser cantada, esse potencial é explorado. A título de exemplo “flagrante” surge o grupo Dóci Papiaçám di Macau, que utilizando as letras de Adé, exibe a “virtuosidade da vertente oral Maquista”, nomeadamente através da música “Macau sim assi”, que estabelece relação com a composição “Lisboa é assim”, de João Nobre.

Esta referência à literatura oral e à canção, como explica o investigador, tem outra razão de ser. Quem ler a poesia em patuá de José dos Santos Ferreira denota “uma certa primazia na oralidade sobre a escrita”. O código escrito é jovem e, em variadas situações, “ambíguo”, tendo sido o próprio Adé um dos maiores contribuidores para a sua utilização.

A carga oral está presente na poesia em Maquista, em que a maioria das palavras deriva do português, contudo, como explicam outros autores citados pelo investigador, só em alguns casos é que a correspondência fonética é total. Na grande parte dos casos a pronúncia das palavras em Maquista é diferente da pronúncia em Português.

“Tal concorre para que o jogo sonoro criado nas duas línguas seja amplamente diferente. A língua maquista exibe-se mais aberta e simétrica no escanção do verso e na sua componente rítmica. Por seu turno, o idioma luso surge mais comprimido e regrado com sons fechados e com menor possibilidade de elisões sonoras entre os vocábulos que compõem o verso”, refere Pedro D’Alte, notando ainda que estas características literárias transmitem a sensação ao leitor de um acesso a dois poemas inteiramente diferentes.

“Adentrando na produção em língua portuguesa, do ponto de vista temático, Macau assume-se como eixo transversal da poética de José dos Santos Ferreira”. A cidade agrega diferentes coordenadas, quer como espaço, quer como personagem, ou ainda como “emblema de um tempo que não existe, mas que se sonha cristalizado”, e como “fonte ideológica de matriz portuguesa e assumidamente cristã”.

Um destino traçado

A inevitabilidade do destino, a perda irremissível, com a transferência de soberania em 1999, levam a uma “hiperbolização de Macau como terra amada, abeirada a um paraíso terreno e pleno”. A recusa em aceitar o desfecho, presente em algumas das composições de Adé, num contexto de perda, levam a um matriz sofrido dos versos, que “é a face visível da angústia, da separação, do fecho”.

Neste caso, a carga emotiva, modelada no interior do poeta e exteriorizada posteriormente em alguns elementos da sua obra, é explicitada pelo confronto entre partes diametralmente opostas e que são portadas no binómio luz versus escuridão. “Trata-se de um desassossego interno que extravasa para uma dimensão física e comportamental”. Isso acontece porque, “progressivamente, a cidade se revela antropomorfizada e se assume como personagem”. A solução para a “disforia” que se torna evidente em situações como “o perigo de andar às escuras”, “a iminência da queda”, “a face triste”, “a ausência de alegria no movimento” e “o frio no corpo” está, frequentemente, na religião trazida por Portugal. Essa resolução positiva “apenas é possível pelo messianismo cristão”.

A aproximação do fim da administração portuguesa de Macau levou a que na poesia de José dos Santos Ferreira houvesse um “estado de ânimo que toma feições de temor das sequelas anti-cristãs e anti-portuguesas”, lê-se no estudo, que referencia outros autores.

“A singularidade da reacção poética de José dos Santos Ferreira reside na dimensão atribuída aos seus alicerces de tradicional mundividência lusíada – o fervor da fé cristã e o fervor do patriotismo imperial”.

A melancolia de um “período algo nefelibata, mas comum, de história e de identidade, entretecendo pátria e mátria, Portugal e Macau e, com estes, todo um universo de experiência lusa que se compadece ou que se deve compadecer pela erosão do império português e, claro está, pelo seu iminente apagamento”, estão presentes também na obra de Adé. “Há uma certa continuidade ideológica e que é reveladora de um estatuto especial para Macau”.

José Inocêncio dos Santos Ferreira, filho de pai português e de mãe macaense, nasceu em Macau a 28 de Julho de 1919. Foi funcionário público, desempenhando as funções de chefe de secretaria do Liceu Nacional Infante D. Henrique. Reformou-se em 1964. Após a aposentação, foi indicado como secretário-geral da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau. Paralelamente, porque falante de várias línguas como a portuguesa, a chinesa e a inglesa, conciliou actividades docentes a alunos chineses. É ainda de destacar a colaboração jornalística com o China Mail de Hong Kong, o Diário de Notícias em Portugal, ou O Clarim de Macau.

Foi fundador e dirigente de várias associações de desporto e, simultaneamente, dedicou-se à filantropia, tendo sido presidente do Rotary Club e membro da Mesa Directora da Santa Casa da Misericórdia de Macau. Em Setembro de 1979, foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem do Infante D. Henrique e, já na década de 80, recebeu a Medalha de Mérito Cultural pelo Governo de Macau. A mesma tutela presta-lhe homenagem ao erguer uma estátua no Jardim das Artes, no coração de Macau, em zona nobre da cidade.

Faleceu no dia 24 de Março de 1993, em Hong Kong, aos 73 anos de idade. Susana Martinho – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”



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