Um imaginário encontro entre os ícones do Fado, Amália Rodrigues, e do Tango, Carlos Gardel, gerou o disco “Encuentro Amália-Gardel”, que foi apresentado este sábado à noite em Buenos Aires, num espetáculo que une Portugal e Argentina, através dos dois ritmos
“Imagino
que, se Amália e Gardel se tivessem conhecido, seguramente seria na casa da
Amália em Lisboa ou na de Gardel em Buenos Aires, numa tertúlia que entrasse
madrugada adentro com os dois a cantarem, rodeados de amigos, a intercalarem
fados e tangos, ora um ora outro e, em alguns casos, num dueto”, descreve à
Lusa a cantora argentina Karina Beorlegui, autora do projeto.
O
disco encarna essa atmosfera imaginária com tangos cantados por Carlos Gardel,
intercalados com fados famosos na voz de Amália Rodrigues, além de dois fados
nos quais há uma intervenção direta do tango.
No
fado português “Medo”, a voz de Karina Beorlegui é acompanhada por um
bandoneon, a alma do tango argentino. É a primeira vez que os dois ritmos
aparecem numa mesma canção.
No
“Caprichosa”, fado-canção composto em espanhol pelo uruguaio Froilán Aguilar e
gravado por Carlos Gardel, a guitarra portuguesa ganha uma presença,
inexistente na versão original de 1930. Essa guitarra, do português Ricardo
Martins, responsável também pelos arranjos, convive com a voz de Karina, mas
também com a de Cucuza Castiello, um cantor de tango.
“Amália
e Gardel são um pretexto para que o tango e o fado se encontrem num cruzamento
de tangueiros e fadistas. Na outra ponta dessa ponte está Ricardo Martins. Não
nos conhecemos. Foi tudo gravado de forma virtual”, conta Karina Beorlegui,
quem, nos últimos 20 anos, dedicou-se a impulsionar o fado entre os argentinos.
Nos
seus quatro discos solistas, “Caprichosa” (2003), “Mañana Zarpa Un Barco” (2008),
“Puerto Cardinales” (2011) e “Encuentro Amália-Gardel”, o fado convive com o
tango, ganhando cada vez mais faixas a cada novo disco.
Carlos
Gardel gravou quatro fados. Além de “Caprichosa” (1930), “Mi china” (1920), “De
mi tierra” (1921), “Mi bien querido” (1922). São, na verdade, “pseudofados” ou
“fados-canção”, mas revelam a influência da música portuguesa no cancioneiro
popular argentino.
No
começo dos anos de 1930, Carlos Gardel viajou num vapor a Lisboa, segundo
indica um carimbo no seu passaporte.
“Quero
imaginar que aquelas ruelas de Lisboa inspiraram Froilán Aguilar a compor um
fado para Gardel, mas não sabemos ao certo. Só sabemos que Gardel esteve em
Lisboa e que o fado era contemporâneo ao que Gardel estava a fazer com o tango.
O fado Caprichosa foi muito conhecido na época. As pessoas mais velhas o
reconhecem e cantam até hoje”, aponta Karina, sobre a canção cuja letra gira em
torno de uma linda portuguesa cujo comportamento mimado e inconstante
(‘caprichoso’, em espanhol) não cede aos galanteios.
Amália
Rodrigues esteve na Argentina quatro vezes (1967, 1978, 1981 e 1993). Na
primeira, ao ser entrevistada pelo Canal 13 de Buenos Aires, revelou que “desde
muito pequenina, com uns 10 anos ou menos, escutava Carlos Gardel e os seus
tangos, e cantava a todos na sua casa”.
“Tenho
o costume de tangos desde muito criança”, afirmou.
Quando
Amália começou a tornar-se conhecida, Carlos Gardel já tinha morrido em 1935
num acidente aéreo em Medellín, Colômbia. Porém, a sua obra teve influência na
música popular portuguesa dos anos de 1930 e 1940. Em filmes portugueses da
época, tangos conviviam com fados.
Estrela
Carvas, assistente pessoal de Amália durante 30 anos, revelou a Karina
Beorlegui que os dois tangos dos quais Amália mais gostava eram “Arrabal
Amargo” e “Cuesta Abajo”, levando, por isso, Karina a gravar “Cuesta Abajo”
neste disco.
“Não
sou uma fadista. Sou apenas uma cantora. Sinto-me uma embaixadora ou uma
impulsora do fado na Argentina. Nos meus shows, recomendo fados e fadistas.
Sempre procurei que os argentinos se aproximassem do fado. E muita gente aqui
conheceu o fado através de mim”, orgulha-se.
Nenhum
outro cantor na Argentina gravou tantos fados nem divulgou tanto o fado
português no país. Porém, apesar de trabalho valioso para a difusão da cultura
portuguesa, Karina Beorlegui não consegue patrocínio para ir a Lisboa nem para
trazer Ricardo Martins a Buenos Aires.
A
Fundação Amália Rodrigues e o Museu de Carlos Gardel deram a autorização para o
uso dos nomes no disco e apoio institucional para o show.
“Tenho
um convite para apresentar o disco ‘Encuentro Amália-Gardel’ no dia 23 de junho
no jardim da Casa da Amália em Lisboa, mas não tenho dinheiro para viajar. Em
novembro, vamos realizar o sexto festival de fado e tango em Buenos Aires, mas
não sabemos se conseguiremos trazer a guitarra portuguesa de Ricardo Martins.
Esse é o nosso desafio agora”, desabafa.
Assim
como o fado português, o tango argentino surgiu nas zonas marginais, próximas
ao porto. Entre Lisboa e Buenos Aires, um oceano de saudades. Em Lisboa, as
saudades daqueles que partiram e deixaram para trás uma vida. Em Buenos Aires,
a saudade dos que chegaram.
“Em
comum, esse exílio. O tango e o fado são primos distantes que, quando se
encontram, têm muito em comum. A saudade é um sentimento que conduz à poesia. E
os dois ritmos tiveram altos e baixos nos mesmos períodos até que houve um
ressurgimento com novos talentos fadistas e tangueiros que continuam com o
legado”, conclui Karina Beorlegui. In “Bom dia Europa” – Luxemburgo com “Lusa”
Sem comentários:
Enviar um comentário