Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 24 de março de 2023

Portugal - Cem anos depois, nove autores literários e uma fadista

Este ano comemora-se o centenário do nascimento de diversas figuras ligadas às artes e letras de Portugal, com especial enfoque na literatura. Dos mais conhecidos, poetas, cronistas, ensaístas, romancistas e tradutores, mas também a fadista Celeste Rodrigues, falecida em 2018


No ano em que se publicavam o “Livro de Soror Saudade” de Florbela Espanca ou “Os Pescadores” de Raul Brandão, nasciam nove célebres nomes ligados à literatura portuguesa e uma fadista. Comemora-se este ano o centenário de Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Henrique de Senna Fernandes, João Maia, José Palla e Carmo, Mário Cesariny, Mário-Henrique Leiria, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues e Celeste Rodrigues, irmã da voz de Portugal, Amália Rodrigues.

Prémio Camões em 1996 e Prémio Pessoa em 2011, Eduardo Lourenço foi um professor e filósofo português, com ligações profundadas a questões relacionadas com a identidade portuguesa, com especial enfoque na literatura, mas não só. Beirão nascido a 23 de Maio de 1923 no concelho de Almeida, distrito da Guarda, Eduardo Lourenço “é uma figura fulcral da cultura portuguesa”, considerou ao nosso jornal a professora universitária Lola G. Xavier, confessa seguidora do trabalho do pensador português.

Para Lola G. Xavier, até hoje, Eduardo Lourenço é “uma voz única e ímpar”. “Ao nível da própria filosofia e da ontologia do ser-se português. É um autor fundamental, essencial e incontornável em questões relacionadas com a lusofonia. Uma voz crítica que, por ter vivido muito tempo fora de Portugal, teve o afastamento físico necessário que lhe permitiu uma perspectiva mais objectiva”, considerou a docente.

Eduardo Lourenço recebeu diversos prémios ao longo da sua carreira e foi condecorado por inúmeras vezes, tanto em França, onde viveu, como em Portugal. De 2016 a 2020 foi Conselheiro de Estado, por nomeação presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa. Morreu em 2020, aos 97 anos, tendo o Governo português decretado um dia de luto nacional.

A universalidade de Eugénio de Andrade

Coube também a Lola G. Xavier comentar, mesmo que de forma breve, a vida e obra do poeta Eugénio de Andrade, nascido no concelho do Fundão a 19 de Janeiro de 1923. Prémio Camões em 2001, o também beirão esteve em Macau em 1990, território cujas impressões ficaram registadas no “Pequeno Caderno do Oriente”. “Aquilo que talvez mais me impressiona na sua poesia é como ele consegue, de uma forma aparentemente simples, dizer tanto”, referiu a professora universitária.

Para Lola G. Xavier, Eugénio de Andrade é “um dos poetas da universalidade” e, também por isso, “um dos poetas fundamentais em língua portuguesa”. “Conseguiu congregar de uma forma despretensiosa a beleza da língua portuguesa estampada em verso”, notou, acrescentando que “qualquer literato não terá dificuldade em incluir o poeta nos maiores da literatura portuguesa”.

Eugénio de Andrade é pseudónimo de José Fontinhas. Foi próximo de Eduardo Lourenço e de Miguel Torga, com quem conviveu em Coimbra. Para além de poeta, foi tradutor e escritor.

Morreu, no Porto, a 13 de Junho de 2005, aos 82 anos. A sua poesia lírica foi considerada por José Saramago como uma “poesia do corpo a que chega mediante uma depuração contínua”.

De Macau para o mundo

É unânime dizer-se que a ‘Magnum opus’ de Henrique de Senna Fernandes é o seu livro “Amor e Dedinhos de Pé”, obra adaptada para cinema em 1992 pelo realizador Luís Filipe Rocha e protagonizada por Joaquim de Almeida. O autor português de origem macaense nasceu a 15 de Outubro de 1923 em Macau, precisamente. Foi advogado e uma pessoa politicamente interventiva.

No campo da escrita, Senna Fernandes retratou a Macau antiga dos anos de 1930, 1940 e 1950, através dos seus livros publicados, de onde se destacam, para além do “Amor e Dedinhos de Pé”, “Nam Van – Contos de Macau”, “A Trança Feiticeira” e “Mong-Há – Contos de Macau”. O seu conto “A-Chan, a tancareira” vence o Prémio Fialho de Almeida, em 1950. “Em termos literários, o texto exibe o gosto pelo tratamento de amores interétnicos e pela representação da figura feminina, tão afastada, ainda hoje, da ‘atenção patriarcal’”, considerou o professor Pedro d’Alte ao nosso jornal.

Os seus contos e romances “estão repletos de força etnográfica e bem exprimem a cosmovisão da época”. “A construção narrativa, a força imagética e temática explicam, em parte, as adaptações para a sétima arte dos seus romances”, apontou ainda.

Morreu no território, já sob administração chinesa, aos 86 anos, no dia 4 de Outubro de 2010. Pedro d’Alte acredita que tanto ao leitor quanto ao apreciador de cinema, “decerto agradará a encenação glamorosa dos ambientes da Cidade Cristã e dos amores entre A-Ling e Adozindo ou Chico e Victorina”. “Na memória do centenário sobre o seu nascimento, Senna Fernandes bem merecia mais e melhor atenção literária por parte da ‘mátria’, Macau, e da ‘pátria, Portugal”, concluiu o docente.

Um lisboeta apaixonado pelo Alentejo

Urbano Tavares Rodrigues é outro dos autores cujo centenário se comemora este ano. Nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1923, tendo falecido também na capital portuguesa a 9 de Agosto de 2013, aos 89 anos. Foi escritor, jornalista, crítico e professor universitário. Afastado de Portugal por motivos políticos, foi leitor em diferentes universidades europeias. Foi um autor profícuo, tendo, entre 1949 e 2011, escrito quase uma centena de obras, tendo a última delas (“Nenhuma Vida”), já a título póstumo, sido editada em 2013, pouco tempo depois de morrer. Escreveu poesia, crónicas, textos para teatro, contos e literatura de viagem, mas foi nos ensaios e nos romances que deixou marca indelével nomeadamente com as obras “Uma pedrada no charco” (1958), “Nus e suplicantes” (1960) ou “Imitação da felicidade” (1966).

Com “Fuga imóvel” (1982) recebe o prémio Aquilino Ribeiro e com “Violeta e noite” (1991) é galardoado com o prémio Fernando Namora. “Urbano Tavares Rodrigues evidencia uma voz combativa e reflexiva. As suas personagens lutam, pelo século XX, contra os poderes instituídos de um sistema ditatorial repressivo. Assim, a sua escrita é um projecto político de militância pelo povo e pelos oprimidos, conforme se pode ler, desde logo, na bela composição Mulheres do Alentejo e da qual se relembram alguns versos: Mulheres do Alentejo / com papoilas nos olhos / São primaveras erguidas / Contra os bastões / Contra as balas (…) Mulheres searas fontes azinheiras / Nossa esperança, ainda em flor e fruto / No vermelho das feridas deste País de Abril”, afirmou Pedro d’Alte, enfatizando que devido a ter crescido em Moura, “o Alentejo é, efectivamente, paisagem, tema e inspiração da sua obra”.

Foi grande amigo de Mário Soares, ligação que esmoreceu com a filiação de Urbano Tavares Rodrigues no Partido Comunista Português. Segundo o próprio, foi devido aos seus ideais políticos que nunca chegou a receber o Prémio Camões.

A FENPROF, em colaboração com a SABSEG – Corretor de Seguros, criou, em 2012, o Prémio Urbano Tavares Rodrigues, um prémio literário anual de ficção destinado a professores.

Uma açoreana de pêlo na venta

Natália Correia nasceu nos Açores, mais concretamente em Fajã de Baixo, uma localidade da ilha de São Miguel, a 13 de Setembro de 1923. Foi um dos nomes femininos mais sonantes da literatura portuguesa contemporânea, tendo-se destacado como escritora e poetisa. Devido ao seu carácter activista, moveu-se também na política portuguesa, tendo sido deputada à Assembleia da República entre 1980 e 1991. Interveio inúmeras vezes em prol da cultura e do património, mas também da defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres.

Para além de autora da letra do Hino dos Açores, foi, juntamente com José Saramago, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues, em 1992, fundadora da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). A sua obra, traduzida em várias línguas, estende-se por géneros variados, desde a poesia ao romance, teatro e ensaio. Morreu em Lisboa, aos 69 anos, no dia 16 de Março de 1993, vítima de ataque cardíaco. “Só quem conhece profundamente a obra de Natália Correia pode afirmar que Natália Correia foi o mais importante poeta e pensador do século XX português. O seu pensamento supera o de Pessoa, Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço”, referiu o escritor Henrique Levy, profundo admirador da obra da poetisa.

Henrique Levy vai mais longe e cita Ângela Almeida, autora também ela açoriana e especialista na obra de Natália Correia: “Não é possível entender o que representa a literatura para Natália Correia, sem constatarmos a imensidão do seu conhecimento: Natália bebe nas fontes antigas, clássicas, medievais, modernas, contemporâneas, ocidentais e orientais, percorre os ciclos históricos da humanidade, estuda as correntes de pensamento filosóficas e estéticas, viaja pelos géneros literários, estuda as religiões do mundo, sente o pulsar das culturas e das etnias e vive com todo o fulgor a relação telúrica e endógena que liga o ser humano à Tellus Mater. Tais fontes levam-na a escrever odes, epístolas, poesia lírica e épica, cantigas de amigo, textos dramáticos, romance, ensaios, textos para a imprensa (de 1943 a 1992)”.

O surrealismo português

Para além de poeta, Mário Cesariny foi também pintor, sendo considerado como o principal representante do surrealismo português. Nascido em Lisboa a 9 de Agosto de 1923, Cesariny também tem obra enquanto antologista, compilador e historiador. Homossexual assumido, foi muitas vezes detido pela polícia de costumes por “vagabundagem”.

Escreveu cerca de 20 livros. A sua poesia é animada por um sentido de contestação a comportamentos e princípios institucionalizados ou considerados normais nos campos do pensamento e dos costumes. Já a sua pintura, à imagem da sua personalidade inquieta, é marcada pela experimentação.

Em 2002 foi-lhe atribuído o grande Prémio EDP de Artes Plásticas e, em 2005, a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Também em 2005, arrecadou o Grande Prémio Vida Literária APE/CGD.

Morreu, também em Lisboa, a 26 de Novembro de 2006, aos 83 anos. Doou em vida o seu espólio à Fundação Cupertino de Miranda e, por testamento, deixou um milhão de euros (cerca de 10 milhões de patacas) à Casa Pia.

Mário-Henrique Leiria nasceu em Lisboa a 2 de Janeiro de 1923 e foi um escritor surrealista português, amigo próximo de Mário de Cesariny.

Poeta, escritor, pintor, crítico de arte, crítico literário, tradutor, gráfico e editor, Mário-Henrique Leiria tinha o espírito de coleccionador. Guardava tudo, desde escritos a desenhos, passando por pinturas e fotografias, catálogos ou manifestos. Envolveu-se activamente no Grupo Surrealista Português entre 1949 e 1951. Ao mesmo tempo também se dedicou a uma carreira musical que durou entre 1949 e 1979.

Foi preso pela PIDE. Posteriormente, instalou-se no Brasil onde desenvolveu várias actividades, como a de encenador e de director literário da Editora Samambaia. Regressou a Portugal em 1970 e aderiu, em 1976, ao Partido Revolucionário do Proletariado. Morreu aos 57 anos, a 9 de Janeiro de 1980, vítima de doença prolongada.

“Mário Cesariny e Mário-Henrique Leiria são nomes que conheço e cuja obra acompanhei de perto, porque representam uma certa modernidade, uma certa ruptura com o sistema, nomeadamente em relação a valores ou até à expressão”, referiu a professora Vera Borges, acrescentando que “faz todo o sentido atentarmos na literatura de um passado mais próximo”, mais contemporâneo.

O jesuíta das letras e o humorista Sesinando

Outros nomes há, também consagrados, que, por esta ou aquela razão, se tornaram desconhecidos do público em geral. Vera Borges explicou ao Ponto Final que tudo passa, essencialmente, “pela dimensão da sua obra” e, claro, “pelo gosto de cada um”. “São nomes que surgem, muitas vezes, a reboque de outros nomes. Autores pensados no âmbito de estudos específicos e desconhecidos num sentido mais lato”, referiu a docente de Português.

João Maia ou José Palla e Carmo são dois desses nomes. No entanto, considera Vera Borges, “são importantes para a literatura portuguesa”. “Gostava muito que esses nomes merecessem uma revisitação da sua obra. Talvez estas efemérides pudessem ser um ponto de partida para isso. Mas, claro, há nomes que têm sempre mais peso do que outros, é normal”, constatou.

João Maia foi um poeta e crítico, que também se notabilizou como cronista e ficcionista. Ganhou, em 1954, o prémio Antero de Quental pela sua obra literária “Abriu-se a Noite”. Anos antes, em 1940, ingressou na Companhia de Jesus, tendo-se licenciado em Filosofia pela Faculdade Pontifícia de Braga e, posteriormente, obteve o doutoramento na Faculdade de Teologia de Burgos, em Espanha. Autor de 10 livros, entre 1954 e 1989, a poesia de João Maia “pouco aberta a inovações formais e geralmente apoiada na rima”, mereceu de Jorge de Sena os epítetos de “suave e inteligente, meditativa e singela”.

Já José Palla e Carmo, nascido em Lisboa em 1923, foi um escritor, ensaísta, crítico, tradutor e especialista de literatura anglófona. Também se dedicava à escrita de textos humorísticos, os quais assinava como José Sesinando. Era irmão do consagrado arquitecto e fotógrafo Victor Palla e, por conseguinte, tio-avô do igualmente arquitecto e fotógrafo João Palla Martins, radicado em Macau há diversos anos.

O Instituto Português do Oriente (IPOR) também vai celebrar alguns destes nomes. Em declarações ao Ponto Final, a coordenadora do Centro de Língua Portuguesa foi peremptória em afirmar que se “deve falar e celebrá-los” a todos sem excepção, “independentemente de uns serem mais conhecidos do que outros”. No entanto, admitiu, o IPOR celebrará, ao que tudo indica, apenas seis desses nomes: Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço, Mário Cesariny, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues e Henrique de Senna Fernandes. “Vamos celebrando ao longo do ano. Começámos com o Eugénio e acabamos com o Urbano, dando ainda algum destaque ao centenário de Agustina Bessa-Luís, que se celebrou o ano passado, mas nós não o celebrámos como deveria ser”, notou Paula Costa.

Tudo isto é fado

A fadista Celeste Rodrigues nasceu no Fundão a 14 de Março de 1923 e morreu em Lisboa a 1 de Agosto de 2018, com 95 anos. Era a irmã mais nova da voz de Portugal, Amália Rodrigues.

Com 25 anos, Celeste conhece o actor Varela Silva com quem casaria com 30 anos. Ambos abrem a casa de fados “A Viela”, projecto que abandonariam após quatro anos. Por essa altura, e apesar de viver um pouco na sombra da irmã Amália, Celeste atingia a notoriedade com o tema “Olha a Mala”, da autoria de Manuel Casimiro.

Celeste Rodrigues cantou por mais uma década na casa de fados Parreirinha de Alfama, propriedade da também fadista Argentina Santos, passando depois a integrar o elenco da Taverna do Embuçado, do fadista João Ferreira-Rosa ao longo de 25 anos.

Ao Ponto Final, o actual proprietário da Parreirinha de Alfama, o guitarrista de Fado Paulo Valentim, que viveu em Macau por diversos anos, recordou que Celeste “trabalhou muitos anos na Parreirinha e a irmã [Amália] a visitava muitas vezes”. “Celeste era uma pessoa sábia, bastante culta e educada”, acrescentou.

Depois do 25 de Abril, passou meio ano no Canadá, acabando por divorciar-se de Varela Silva com quem teve duas filhas. O seu último trabalho discográfico foi o “Fado Celeste”, editado na Holanda em 2007. Três anos depois, em 2010, o neto Diogo Varela Silva revela o documentário “Fado Celeste”, realizado por si, que se debruça na vida e obra de Celeste Rodrigues.

Aliás, em declarações ao nosso jornal, o neto da fadista revelou que “foi inaugurada no dia 14 de Março uma exposição sobre ela no Museu do Fado”. “Houve o lançamento da biografia escrita por mim e lançámos dois temas inéditos que foram gravados muito pouco tempo antes dela falecer. Uma versão de “A Noite do Meu Bem” de Dolores Duran e uma música nova chamada “Se Alguém Me Procurar”, com letra de Ricardo Maria Louro e música de Pedro de Castro, que foi o seu último guitarrista. Fizemos ainda um grande jantar celebrativo nessa data com muitos amigos dela”, referiu, lamentando que o Fundão, cidade onde a fadista nasceu, aparentemente, não tenha qualquer homenagem marcada para celebrar o centenário, mas adiantando que tanto a família quanto os amigos estão a contar que Câmara Municipal de Lisboa a inclua na toponímia da cidade. Gonçalo Pinheiro – Macau in “Ponto Final”


 

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