I
Poeta,
contista, ensaísta, tradutor e dono de uma vasta obra, Anderson Braga Horta (1934)
acaba de lançar 50 Poemas (50 Gedichte), livro em edição bilíngue em que
reúne suas últimas criações com tradução do alemão Curt Meyer-Clason
(1910-2012), romancista e memorialista, que se notabilizou como tradutor de
autores de diversas línguas, tanto em prosa como em verso, e que no Brasil
ficou especialmente conhecido pela tradução que fez de Grande Sertão: Veredas,
de João Guimarães Rosa (1908-1967). Como deixou expresso em carta de 2004 ao
autor, reproduzida na contracapa do livro, Meyer-Clason procurou fazer uma
recriação equivalente idiomaticamente ao original, enfrentando dificuldades com
neologismos e aliterações próprios do idioma português que só com muito talento
conseguiu passar para o alemão.
Nesta
obra, Braga Horta reúne criações que podem ser definidas como poemas de
circunstância, que são aqueles em que um acontecimento ou uma situação real
se oferece ao poeta de mero pretexto para exprimir o seu íntimo pensamento,
como se esta ou aquela circunstância desencadeasse no poeta sentimentos até
então latentes, como observou o professor Massaud Moisés (1928-2018) em A Criação
Literária. Poesia (São Paulo, Cultrix, 2003), pp. 231-232, citando o
filósofo alemão Georg Wilheim Friederich Hegel (1770-1831), autor de Esthétique,
tradução francesa, Paris, 1944. Ou seja, qualquer motivo ou acaso provocado
pela realidade funciona como estímulo para desencadear no subconsciente o
processo poético. Trata-se, portanto, de uma poesia que nasce da confissão ou
da emoção.
Obviamente,
tudo isto depende da criatividade de cada poeta e, no caso de Braga Horta, esse
estímulo acaba por redundar em peças extremamente líricas, algumas de fugaz
duração, mas que representam as inquietações vividas em seu interior, sejam
problemas familiares ou apenas a observação que faz de determinados cenários
que a vida o leva a contemplar. Veja-se
este poema dedicado à filha Marília: Minha filha, tudo em ti é pureza, /
mesmo o que em nós nos lembra / o charco original. / Merecias um madrigal, /
não um poema lírico-triste, / cheio de vã filosofia. / Por ti, devera eu
reencontrar a inocência. / Mas como ser inocente e lúcido? / Não, hoje não
escrevo o teu poema. / Olho-te, avaro: meu amor é um lago / incomunicativo. /
Te pego ao colo. Choras. / Mudo-te as fraldas e adoro-te em silêncio.
(p.74).
O
sentimento paternal logo transfigura-se em sentimento filial, como se pode
constatar no poema “Retrato indimensional” em que evoca a família da qual
provém: Meus pais estão no retrato / sorridentes. O sorriso / é claro e
meigo. Entretanto, / bem sei que atrás dessa luz / há tanta dor concentrada! /
Uma dor que não se fez / em dois dias, em um mês. / Ai! dor de toda uma vida! /
É dor. Mas dor familiar, / feita de coisas miúdas / mais que de grandes
desastres: / de pedaços de esperança, / de uma atenção infinita, / da rotina de
cuidados / de amor diários – rotina / iluminada! –, de restos / de emoções
desencontradas, / de vagos desgostos, vagos / presságios, sonhares vagos, / das
precisas incisões / que rasga no rosto a cega, / lenta lâmina do tempo (...). (p.86).
II
Ainda
com base em Hegel, é de se lembrar que o poeta lírico está sempre preocupado
com o seu próprio “eu”, ou seja, o que lhe interessa é “antes de tudo a
expressão da subjetividade como tal, do seu exato conteúdo, da alma e dos
sentimentos, e não a de um objeto exterior, por muito próximo que seja”. E isso
se dá mesmo quando o poeta lírico se propõe a descrever uma história ou um fato
histórico ou mesmo um cenário.
Em
outras palavras: acima de tudo, está a expressão do seu interior, de seu estado
de alma, seu sentimento, suas emoções. É o que se vê no extenso poema
“Altiplano” em que Braga Horta descreve manifestações da natureza, ao rememorar
o que teria sido o planalto goiano até a chegada dos homens que construiriam
Brasília, os chamados pioneiros: “Antes do começo, / era o sertão, só e
ríspido. / Vegetais cheios de ódio fitando os céus impossíveis / e apontando a
terra sáfara. / Dedos torcidos de séculos. / Bênçãos dissimuladas sob a raiva. /
Natureza virgem à espera da posse. (...) Ventos e chuvas corroeram arestas, /
dispersaram resíduos, / e o terreno está pronto; esqueleto / à espera da carne.
/ E vieram os pioneiros / e rasgaram os mapas / (no papel, o embrião): corpo /
à espera de uma alma. (...). (pp. 152-154).
Aliás,
o lirismo de Braga Horta manifesta-se mesmo quando procura imitar um poeta
profundamente épico como Luís de Camões (c.1524-c.1580), como se vê em
“Redondilha quase camoniana”: Os olhos, tende-los verdes... / Tende-los
frios, Senhora, / nestes, perdidos, que outrora / lhes encontravam calor. / Mas
de assim frios os terdes / por que me espanto eu agora? / se é condição de
olhos verdes / dar vida e matar de amor! (...) Senhora dos olhos verdes, / do verde
dos vossos olhos / fundei meus mares: escolhos! / sereias de me perder! / Ai, o
bem que me quiserdes, / menina dos verdes olhos, / faria os meus olhos verdes /
das cores do bem-querer! (...) (pp.14-16).
III
Anderson
Braga Horta, mineiro de Carangola, formou-se em 1959 pela Faculdade Nacional de
Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Pouco depois,
transferiu-se para Brasília, onde foi diretor legislativo da Câmara dos
Deputados e cofundador da Associação Nacional de Escritores (ANE). É membro da
Academia Brasiliense de Letras e da Academia de Letras do Brasil. Deixou
inconcluso o curso de Letras na Universidade de Brasília. Hoje, funcionário
público aposentado, dedica-se em tempo integral à literatura.
Filho
de intelectuais, Anderson Braga Horta, por volta dos 14 anos, resolveu tentar
também o caminho das letras. Datam de 1949 seus primeiros escritos, mas apenas
no ano seguinte sentiu-se capaz de produzir um texto que pudesse ser submetido
à análise dos outros. Eram versos. Os contos começariam em 1954, um deles,
inclusive, que foi recolhido em Pulso Instantâneo.
O
contista estreou em livro antes do poeta, a não ser pela participação em obras
coletivas: O Horizonte e as Setas, em parceria com Joanyr de Oliveira,
Elza Caravana e Izidoro Soler Guelman. Alguns dos contos que integram Pulso
Instantâneo faziam parte de Contos Passageiros, livro nunca editado,
embora tenha conquistado o Prêmio Machado de Assis, do antigo Estado da
Guanabara, em 1966.
Predominam
em sua obra títulos de poesia, como Altiplano e Outros Poemas, de 1971,
seguido de Marvário, Incomunicação, Exercícios de Homem, O Pássaro no
Aquário, reunidos, com inéditos, em Fragmentos da Paixão (São Paulo:
Massao Ono, 2000), que obteve o Prêmio Jabuti de 2001, mais Pulso (São
Paulo: Barcarola, 2000), Quarteto Arcaico (Jaboatão dos Guararapes,
2000), 50 Poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro, Galo Branco,
2003), Soneto Antigo (Brasília, Thesaurus, 2009); Lua da Fonte/Elegia
de Varna, seleção, prólogo e tradução para o búlgaro de Rumen Stoyanov (Sofia,
2009), De uma janela em Minas Gerais – 200 sonetos (miniedição em
4 vols., 2011), Signo, antologia metapoética (Brasília, 2010), De
viva voz (Brasília, 2012), Quarenta Sonetos (Jaboatão dos
Guararapes, 2015), e Tiempo del Hombre (Lima, Maribelina, editora da Casa
del Poeta Peruano, 2015), entre outros.
Na
linha da crítica e da ensaística, publicou pela Editora Thesaurus o opúsculo Erotismo
e Poesia (1994), Aventura espiritual de Álvares de Azevedo: estudo e
antologia (2002), Sob o signo da poesia: literatura em Brasília
(2003), Traduzir Poesia (2004), Testemunho & Participação: ensaio
e crítica literária (2007) e Criadores de Mantra: ensaios e conferências
(2007). Já conquistou mais de 15 prêmios literários.
Com
Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera, assina as traduções de Poetas
do século de ouro espanhol (2000); Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia
(Thesaurus, 2002), O Sátiro e Outros Poemas de Victor Hugo (Galo Branco,
2002), Antologia Poética Ibero-americana, organização de Gustavo Pavel
Égüez (Cuiabá, 2006); com Rumen Stoyanov, a de Contos de Tenetz, do
búlgaro Yordan Raditchkov (Thesaurus, 2004).
IV
Curt
Meyer-Clason deixou grande obra especialmente na ficção e em ensaios,
destacando-se dentre seus livros Diário Português (1979), o romance Equador
(1986) e Ilha Grande (narrativa, 1995). Foi sobretudo notável escritor,
voltado particularmente para a poesia de Espanha, Portugal e países
latino-americanos. Nascido em Ludwigsburg, na Alemanha, fez o ginásio em
Stuttgart e, depois de uma passagem por aprendizagem bancária, empregou-se numa
empresa têxtil e, em seguida, numa importadora de algodão em Bremen. Entre 1937
e 1954, viveu no Brasil e na Argentina. Foi sócio de uma firma de gêneros
alimentícios no Rio de Janeiro. Em 1954, retornou à Alemanha. Como
conferencista, fez viagens pela Península Ibérica e pela América do Sul. Entre
1969 e 1977, foi diretor do Instituto Alemão de Lisboa. A partir daí, radicado
em Munique, desenvolveu intensa atividade literária. Adelto Gonçalves -
Brasil
______________________________
50 Poemas (50 Gedichte), de Anderson Braga Horta, com tradução de Curt Meyer-Clason. Texto em português e alemão. Brasília, Tagore Editora, 215 p., 2021.
E-mails: bragahorta@gmail.com e contato@tagoreeditora.com.br
________________________________________
Adelto Gonçalves (1951), jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta
do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo, Imesp/Academia Brasileira de
Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial –
1709-1822 (São Paulo, Imesp, 2015), Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo - 1788-1797 (São Paulo, Imesp,
2019), entre outros.
Sem comentários:
Enviar um comentário