Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sábado, 11 de dezembro de 2021

Macau - Manuel Basílio e os Sítios com Histórias

O livro Sítios Com Histórias, em dois volumes, da autoria do professor Manuel Basílio e recentemente publicado pelo Instituto Internacional de Macau, arrisca-se, na minha opinião, a ser considerado o Livro do Ano no âmbito dos estudos dedicados à História de Macau. Do autor, e sob a chancela do mesmo editor, já conhecíamos outras obras, De Patane a Lilau. Pátios, Becos e Travessas de Macau e também Estórias, Tradições e Costumes em Torno de Pátios, Becos e Travessas de Macau, ambos de 2018; em 2019 surgiu, Da Avenida ao Tap Siac. Pátios, Becos e Travessas de Macau. É, pois, um trabalho estimulante e bem escrito, inovador em muitos aspectos e com um grande lastro de erudição. As fotografias actuais e antigas, assim como as obras de arte, de Fausto Sampaio, Chinnery, Smirnoff, entre outros, são auxiliares preciosos para contextualizar e para evidenciar as mudanças urbanísticas, por vezes boas, mas a maior parte das vezes sofríveis ou ruinosas e que tem descaracterizado a cidade ao longo do tempo. Macau perdeu a sua alma e sobre isso já Manuel da Silva Mendes escreveu páginas de elevada doutrina estética, que ainda hoje nos fazem meditar.

Mas, o pormenor decisivo e absolutamente diferenciador está no facto de Manuel Basílio dominar a língua chinesa, falada e escrita. Desde Luís Gonzaga Gomes que não tínhamos portugueses realmente bilingues a estudar e a escrever a história de Macau. O padre Manuel Teixeira, emérito historiador, tinha um domínio precário da língua chinesa e fazia questão de agradecer publicamente, nos seus livros, a disponibilidade de tradução e de interpretação de Alfredo Augusto de Almeida, que é uma figura que não merece ser esquecida. E Manuel Basílio recupera a memória dos trabalhos desse português honrado: “Vale a pena aqui recordar que, em princípios dos anos setenta do século XX, no lado do baluarte sudeste, havia um pequeno museu arqueológico. Originalmente, esse museu estava instalado nas ruínas de S. Paulo, por detrás da fachada, que Alfredo Augusto de Almeida, com todo o carinho e dedicação, estava a organizar. Lamentavelmente, depois dos incidentes conhecidos por 12.3, em 1966, por motivos não conhecidos, o Leal Senado mandou retirar todas as peças que estavam ali expostas. Como havia peças muito pesadas, os carregadores resolveram parti-las em pedaços com o camartelo, a fim de facilitar o transporte. Apesar de muito angustiado, o paciente e incansável Alfredo de Almeida conseguiu reunir, mais tarde, grande parte das peças, umas partidas e outras ainda intactas, e foi levando as peças mais significativas à Fortaleza do Monte, a fim de ali reorganizar o museu. Juntou as peças partidas e embutiu-as na parede e as intactas ficaram ali expostas”. Manuel Basílio faz a pergunta incómoda e ainda sem resposta: “Passados tantos anos, é caso para perguntar, onde param aquelas peças arqueológicas e, sobretudo, as de maior valor histórico, que foram retiradas da Fortaleza do Monte?”.

Manuel Basílio constrói uma história dialógica que parte de um sítio, normalmente uma rua, convocando outros saberes auxiliares e chamando-nos a atenção para a justaposição de narrativas que se verificam na toponímia e que, num futuro próximo, poderão contribuir para o inexorável apagamento de algumas parcelas da dimensão portuguesa da história de Macau. Por exemplo a Rua do Almirante Sérgio, na tradução chinesa quer dizer “Nova Rua à Beira do Rio” ou a rua dedicada ao governador Isidoro Guimarães é simplesmente a “Rua Nova à Beira Mar”. Mas com os novos aterros, esses arruamentos deixaram de estar marginais ao rio ou ao mar, criando ainda mais confusão. Assim, a vida, a obra e o legado político e administrativo desses governadores portugueses é, para a opinião pública, iletrada e continental, completamente inexistente. A versão chinesa de alguns topónimos portugueses também se revela problemática: “A Rua do Gamboa é designada, em chinês, pelo estranho nome ‘Yé Mó Kai’. Se alguém perguntar a um chinês ou a um residente daquela rua, qual o significado de ‘Yé Mó’, a resposta é, de imediato, ‘não sei’”. Eis outra situação deveras curiosa: “Tal como o nome ‘Rua das Mariazinhas’, pelo qual a Rua de S. Domingos era conhecida durante décadas até princípios do século XXI, esta rua, cujo topónimo em chinês é ‘Pán Cheong T’óng Kái’, era outrora, também conhecida por ‘Tai Pou Lám’, que significa ‘andar a passos largos’”. Nada disto será uma novidade, mas convém não esquecer. Manuel Basílio guia-nos por estas e por outras perplexidades linguísticas que também são parte integrante dos mistérios desta velha urbe, que fervilha de vida e de sítios com histórias. Poderemos perder todo este património por causa de um conflito de interpretações, de versões ou de traduções?

Emergem desta narrativa personalidades com um recorte de vida muito interessante como sejam Vong Lôk [empresário e filantropo], António José da Costa [capitalista], Francisco Xavier Pereira [advogado e presidente do Leal Senado], Tong Lai Chun [grande comerciante], Vicente Pitter [médico e empresário], O Lon [médico e dirigente do partido comunista chinês], Cam Pau Sai [chefe de uma esquadrilha de piratas], ou Miguel Ayres da Silva [abastado comerciante], todos eles com uma grande influência na vida do Território. O Ouvidor Miguel de Arriaga, uma figura muito controversa, também ele não ficou esquecido.

A origem do nome de Macau [Amagao, Amacao, Amaquão, Machoao, Machao, Amacon, etc.] mereceu a Manuel Basílio alguma investigação minuciosa: “Dado que os portugueses não estavam habituados a ouvir sons de tais dialectos e, presentemente, nem se sabe qual o dialecto usado pelos chineses com quem os antigos portugueses lidaram, nos primeiros contactos, por isso, cada um registava ou transliterava os nomes chineses como bem entendia ou interpretava, resultando, deste modo, uma significativa variação no registo dos referidos nomes para designar o porto de Macau”. Mas continua a ser um trabalho aberto e em curso.

Todas estas gloriosas miudezas são deveras importantes porque como dizia Garcia de Resende no “Cancioneiro Geral”, “a natural condição dos Portugueses é nunca escreverem cousas que façam, sendo dignas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e virtudes, de ciência, manhas e gentileza são esquecidos”. Pelos vistos, não temos emenda.

Para quem gosta de Macau e aprecia a sua história, encontra aqui um elogio da razão pedagógica e cultural que acolhe uma atitude intelectual disposta a abrir outros caminhos de problematização. Esperamos, pois, pelo terceiro volume. António Aresta – Portugal in “Jornal Tribuna de Macau”

António Aresta – Natural de Vila Boa do Bispo, Marco de Canaveses. Licenciado e Mestre em Filosofia, é professor desde 1980 no ensino secundário, ex-docente em Macau e Moçambique, investigador, colabora regularmente na imprensa, tendo sido coautor de uma série televisiva da RTP


 

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