I
Depois
de publicar, em 2018, Ele está no meio de
nós (Curitiba, Kotter Editorial) e, em 2019, O Marceneiro: a última
tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu), Silas Corrêa Leite (1952) acaba
de lançar o romance Cavalos Selvagens, publicação que marca o início de
uma parceria entre as editoras Letra Selvagem, de Taubaté-SP, e Kotter
Editorial, de Curitiba-PR. Este romance, escrito há 15 anos, porém, não faz
parte da projetada trilogia aberta pelas duas obras anteriores. Segundo o
autor, o último livro da trilogia está praticamente concluído e deverá vir a
público em 2023.
A
nova obra do romancista e poeta, a exemplo das anteriores, pode ser definida
como mística, ecumênica e religiosa, mas vai além, partindo do título inspirado
numa canção dos roqueiros ingleses Keith Richards e Mick Jagger, em que a
expressão “cavalos selvagens” pode ser apenas uma metáfora de tudo o que o ser
humano é, como se lê em Hamlet, tragédia do poeta, dramaturgo e ator
inglês William Shakespeare (1564-1616), escrita entre 1599 e 1601 e que explora
temas como traição, vingança, incesto, corrupção e moralidade.
O
cenário do romance é a histórica cidade de Itararé, no Sudoeste do Estado de
São Paulo, na divisa com a região Noroeste do Estado de Paraná, que ficou
famosa por um episódio ocorrido durante a Revolução de 1930, quando o caudilho Getúlio
Vargas, à frente de uma força militar, partiu de trem rumo à capital federal,
então o Rio de Janeiro, e correu pela imprensa um boato segundo o qual haveria
ali uma batalha sangrenta com as tropas fiéis ao presidente Washington Luís.
Mas antes que houvesse a “sangrenta batalha”, houve um acordo entre as elites que
redundou na formação de uma junta governativa que assumiu o poder. Aliás, por
conta do episódio, que hoje seria chamado de fake new, o jornalista,
escritor e precursor do humorismo no Brasil, Apparício Torelly (1895-1971),
também conhecido como Apporelly, assumiu o falso título de nobreza barão de
Itararé.
O
romance começa por um episódio que marca o nascimento de um varão naquele município,
mas num rancho ermo, sem recursos civilizatórios. A mãe, Núbia Angélica, tinha
como único parente um executivo sedentário, que comandava uma grande empresa localizada
à rua Frei Caneca, perto da Avenida Paulista, em São Paulo, o centro do
capitalismo no Brasil, depois de estudar jornalismo e publicidade e fazer uma
pós-graduação na Universidade de Oxford, no Reino Unido, o que o levara a “ser
alguém na vida por mérito próprio, reconhecido até pela mídia que o premiara no
exterior”.
Como
a irmã caçula, vinte anos mais jovem, depois de uma série de relacionamentos
frustrados, acabara por dar à luz e ficara, praticamente, sem quem a ajudasse
porque o presumível pai desaparecera, o executivo decide voltar às origens, à
fazenda que havia sido propriedade de seu pai, para cuidar de um recém-nascido
e preservar a vida daquele que poderia a ser o único remanescente da família.
II
À
falta de alternativas, o executivo, o doutor Álvaro Henrique Schiolla, assume a
responsabilidade de se tornar tio-pai, recorrendo, porém, à ajuda de uma velha
indígena, a Aia Luzia, que, em outros tempos, teria sido sua mãe de leite, ao
lado de quem ele sempre via a imagem de sua falecida progenitora. E passa a
contar também com a colaboração de outros indígenas que já viviam em terras da
fazenda e o conheciam desde os tempos de criança. Troca assim o chamado mundo
civilizado por um que ainda estaria fora da civilização, embora já não fosse
surpresa ver um indígena a manipular um celular.
Na
troca, ganha um processo na Justiça aberto por uma namorada que pedia uma
pensão e até mesmo a herança total de seus bens, já que teriam desfrutado de
uma união estável de mais de dez anos e ele desaparecera misteriosamente. “Então
compreendeu que a mulher que amara bastante e na qual não tinha pensado muito –
sinal que não a amava inteiramente e nem era primordial? – era como todo mundo:
interesseira, dissimulada, falsa. Estava cansado de ser usado. As ações da
empresa estavam bem cotadas no mercado, estavam até em alta, pois os negócios
com sua forçada ausência não pararam (...).
Reintegrado
ao mundo caipira da nova Itararé, o ex-executivo não deixa de voltar a percorrer
os ambientes da cidade, de frequentar seus restaurantes, de comprar prendas
para o sobrinho-filho Perci, a ouvir o sino da Catedral de Lírios, o coral de
crianças carentes do Educandário São Vicente de Paula ou o som da banda da
cidade, a Lira Itarareense chamada popularmente de “A Furiosa”, sons que o
transportavam para algum lugar do passado.
O
enredo, porém, não avança muito sobre o que a vida de Perci pode ter sido ou
que não foi – para se repetir aqui um verso famoso de Manuel Bandeira
(1886-1968) – e conclui com uma reunião de relatos que seriam do próprio punho
do antigo executivo. Por isso, não se pode dizer que Cavalos Selvagens
seja propriamente um romance, nem mesmo uma novela, pois este não parece ser o
intuito do narrador, ao acrescentar depoimentos por escrito do principal
protagonista. Portanto, melhor seria defini-lo como um memorial, a lembrar um
pouco o Memorial de Aires, de Machado de Assis (1839-1908), “uma espécie
de tratado acerca da velhice”, na definição do professor Massaud Moisés
(1928-2018), que se pode ler em Machado de Assis: Ficção e Utopia (São
Paulo, Cultrix, 2001, p. 55).
Enfim,
como o leitor já deve ter percebido, o estilo de Silas Corrêa Leite continua
ágil e criativo, às vezes permeado por frases curtas ou expressões de cariz
popular. Como observa no texto de apresentação o crítico Antônio T. Gonçalves,
“Cavalos Selvagens expõe as contingências e fragilidades da condição
humana, num enredo diferenciado, otimizado por uma conotação que prende o
leitor até a “viagem” para dentro da alma de todas as coisas, quando a natureza
humana “visita” a orquestra sagracial da casa dos espíritos, universo
fantástico”.
Já
no prefácio o jornalista e escritor Joaquim Maria Botelho, mestre em Crítica
Literária e ex-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), define esta
obra como “um livro de indagações”. E acrescenta: “É um mergulho, uma nova
forma de ver o mundo. As respostas – se existem – estão soltas no ar, entre a
materialidade e a espiritualidade, entre o urbano e o rural, o dito civilizado
e o dito primitivo. O leitor lerá indagações de mãos cheias. E fará o seu
julgamento. Talvez obtenha algumas respostas. É ler para – se possível – crer”.
Diante
disso, só resta ao leitor conferir todas essas observações com a leitura de Cavalos
Selvagens, quando, com certeza, irá constatar que ficou à frente de uma
obra muito imaginativa, que cativa à medida que é desvendada.
III
Nascido
em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, e tendo vivido sua juventude
na mítica cidade de Itararé, localizada na divisa entre os Estados de São Paulo
e Paraná, Silas Corrêa Leite é poeta, romancista, letrista, professor, desenhista,
jornalista, resenhista, ensaísta, conselheiro diplomado em Direitos Humanos e
membro da União Brasileira de Escritores (UBE), além de blogueiro e ciberpoeta.
Tendo
começado a escrever aos 16 anos de idade, migrou em 1970 para São Paulo, onde
se formou em Direito e Geografia, sendo especialista em Educação pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de ter cursado extensões e
pós-graduações nas áreas de Educação, Filosofia, Inteligência Emocional,
Jornalismo Comunitário e Literatura na Comunicação, curso este que fez na
Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).
Nos
últimos tempos, o romancista lançou também O lixeiro e o presidente
(Curitiba, Kotter Editorial, 2019), romance social, Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro, Editora
Autografia, 2015), Goto, a lenda do reino
encantado do barqueiro noturno do Rio Itararé (Florianópolis, Clube de
Autores Editora, 2013), romance pós-moderno, considerado a melhor obra do
escritor. Tem mais de 20 livros publicados, entre os quais Porta-Lapsos (poemas) e Campo
de Trigo Com Corvos (contos). É autor ainda do primeiro livro interativo da
Internet, o e-book O rinoceronte de Clarice, que virou tema
de tese de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de doutorado na
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi finalista do Prêmio Telecom, em Portugal,
em 2007.
Seus
textos fazem parte de mais de cem antologias literárias de renome, inclusive na
Itália e nos Estados Unidos, e estão espalhados por mais de 800 sites,
inclusive na América Latina, Europa, Ásia e África. Seu texto “O estatuto do poeta”
foi vertido para o espanhol, inglês, francês e russo. Adelto Gonçalves -
Brasil
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Cavalos
Selvagens, de Silas
Corrêa Leite. Curitiba: Kotter Editorial; Taubaté-SP: Letra Selvagem, 304
páginas, R$ 59,30, 2021. E-mails das editoras: contato@kotter.com.br editoraelivrarialetraselvagem@gmail.com E-mail do autor:
poesilas@terra.com.br
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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