No
álbum em quadrinhos El partido de la muerte, o guionista Pepe Gálvez (Teruel,
1950) e o desenhador Guillem Escriche (Barcelona, 1972) descrevem uma história
real de heroísmo frente à barbárie. Em 9 de Agosto de 1942, em Kiev,
disputou-se um jogo de futebol que fez murchar o sorriso dos ocupantes nazis.
Dentro de campo eram 11 contra 11, mas a diferença de circunstâncias entre as
duas equipas era enorme.
A
equipa local era formada por jogadores desnutridos, com profundas cicatrizes
pela repressão, quase sem tempo de preparação e com o ódio de uma invasão
genocida. Como diz um dos protagonistas da história, eram “os restos de uma
derrota”. Já a equipa visitante era um combinado preparado pela Luftwaffe com o
único objectivo de vencer e humilhar o rival; queriam demonstrar que a raça
ariana era superior também no terreno de jogo frente aos que considerava
untermensch (sub-gente), por serem eslavos. Eram o time de futebol que
representava a Operação Barbarossa, a descomunal ofensiva de Hitler contra a
União Soviética. Uma frente de guerra que se engasgou primeiro às portas de
Moscovo, e depois em Estalinegrado, deixando milhões de mortos à sua passagem.
Essa
perspectiva de um jogo disputado num tempo de tantas agruras é a base de uma
banda desenhada narrada em ritmo ágil, um guião bem documentado e um tratamento
de cor, nas ilustrações e personagens, que reflecte à perfeição aquele tempo.
Gálvez e Escriche contam as desventuras desse grupo de jogadores que se
reencontram depois da invasão nazi a trabalhar numa padaria. O dono contratou-os
com a intenção de voltar a montar uma equipa de futebol com jogadores de dois
conjuntos emblemáticos da cidade: Dínamo e Lokomotiv. O novo elenco assumiria o
nome de FC Start e tornar-se-ia uma equipe imbatível, exemplo de resistência
colectiva, cujos jogadores entravam em campo cheios de dignidade, até a partida
final contra a equipa nazi.
Gálvez
e Escriche recuperam as vicissitudes daquele grupo e suas circunstâncias pela
perspectiva da importância da memória histórica e da necessidade de não
relativizar os horrores do passado. Para Gálvez, “os jogadores ucranianos eram
um grupo de sobreviventes perante um desafio brutal”, que entraram no relvado
motivados “pela reivindicação da vida”. E Escriche acrescenta: “Tínhamos a
responsabilidade de sermos muito honestos com o que íamos contar. Em geral há
duas versões desse jogo: uma muito heróica, e outra que minimiza. Então,
tínhamos a obrigação de ser sinceros, pois parte do nosso trabalho é termos
posição, mas sem mentir nem alterar o ocorrido”.
No
estádio do Zenit de Kiev, quem ganhou foi o FC Start – e muitos jogadores
vieram a ser detidos, torturados e deportados para campos de concentração.
Vários morreram antes que Kiev fosse liberada, em 6 de Novembro de 1943. A
façanha ecoou depois da guerra em livros, filmes e documentários.
O
cinema reflectiu em diferentes visões esse duelo entre David e Golias. Houve
relatos mais ou menos aproximados do que realmente passou, às vezes tratados
pela exaltação patriótica, em outras vezes como referência difusa para contar
uma história de resistência. O filme mais conhecido é Victory (1981), de John
Houston, protagonizado por Michael Caine, Sylvester Stallone e Max von Sydow, e
com a participação especial de grandes referências do futebol, como Bobby
Moore, Osvaldo Ardiles e Pelé.
Contudo,
o argumento, a composição dos personagens e a localização do encontro final, em
Paris, pouco têm a ver com a história original. Da documentação que
consultaram, os autores consideram que a mais fidedigna é o livro Gagner à en
mourir, de Pierre-Louis Basse, publicado na França em 2012.
El partido de la muerte é também um testemunho útil para não esquecer os
desmandos do totalitarismo. O escritor soviético Alexei Tolstói, num intervalo
do julgamento de Nuremberga, dirige-se aos seus colegas da imprensa: “Por que
matar os feridos? Por que aniquilar milhares de pessoas pacíficas? Que
racionalidade há nisso? Tudo para que alguém, não fique a saber que você não é
um gigante, mas sim, simplesmente, um psicopata medroso, e para que as pessoas continuem
a ter medo de si …”.
Essa
cobardia genocida foi derrotada nas quatro linhas por um grupo de futebolistas
e amigos, “felizes dentro de campo”, como observa Mario Kempes no prólogo do
livro, numa partida que confrontou a vida contra a morte. In “Jornal
Tribuna de Macau – Macau com “Agências
internacionais”
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