I
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (1941) é hoje,
com certeza, a pesquisadora que mais conhece a história do Nordeste, em razão de
seus estudos sobre catolicismo popular, com trabalhos sobre o padre Cícero
Romão Batista (1844-1934), Antônio Conselheiro (1830-1897) e a Guerra dos
Canudos (1896-1897), entre outros ensaios sobre questões da globalização e do
pensamento social brasileiro. Mas o mais importante de seus trabalhos, sem
dúvida, é este: A Derradeira Gesta: Lampião e os Nazarenos Guerreando no
Sertão (Rio de Janeiro, Editora Mauad X, 2018), resultado de mais de 40
anos de pesquisa e análise teórica sobre a violência social no Nordeste, sua
tese de doutoramento defendida em 1997 e publicada em 2000, com segunda edição
em 2007, que agora alcança uma terceira edição revista e aumentada.
Ao desenvolver esta pesquisa, Luitgarde, nascida em
Santana de Ipanema, no sertão de Alagoas, além da própria história familiar,
percorreu os sertões e capitais de sete Estados nordestinos – Alagoas, Bahia,
Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe – para ouvir
remanescentes e descendentes daqueles que protagonizaram esta saga sertaneja dos
anos 20 e 30 do século passado, ou seja, o violento confronto entre os
Ferreiras (Lampião e familiares) e os Nazarenos, gente da então vila de
Nazaré, município de Floresta, em
Pernambuco.
Os nazarenos eram membros de uma comunidade de
homens desarmados, na maioria agricultores, que tiveram de deixar de lado o
pacifismo para virar guerreiros, tornando-se os maiores perseguidores dos
cangaceiros, o bando armado de Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião
(1898-1938), que passou para a História como o rei do cangaço. Na defesa de
Nazaré, ameaçada de destruição pelos cangaceiros, morreriam 16 nazarenos.
Atacados pelo bando de Lampião, os nazarenos, como diz a autora, transformaram
a sobrevivência de um vilarejo, “bem como a preservação de suas famílias e de
seu modo de vida, numa questão de honra”, enfrentando os cangaceiros, às vezes
ao lado dos volantes, grupos de voluntários civis geralmente comandados por um
policial de carreira, às vezes contando apenas com as próprias forças.
II
Ao contrário de historiadores mais antigos e
cantadores da literatura de cordel, os cordelistas, que glamourizaram a
saga de Lampião, morto numa emboscada em Angicos, no dia 27 de julho de 1938,
transformando-o num “herói do sertão na luta contra a injustiça”, Luitgarde,
com sua vasta experiência de antropóloga, soube dar uma visão mais cética e
realista de uma guerra sertaneja que nada teve de reformista, expondo a ligação
do cangaceiro-chefe não só com a polícia, por meio de um esquema que lhe
permitia receber armas e munições, como com grandes fazendeiros que tinham
interesse em manter uma estrutura feudal e patrimonialista que vinha dos
séculos XVII e XVIII e que persiste até hoje, em que algumas poucas famílias
assumem o Estado como extensão de suas próprias casas, tal como define o
sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Ao mesmo tempo, explica como esse
estado de coisas é até hoje responsável pelo deslocamento de populações
nordestinas para o Sudeste e Sul, fugindo da miséria e em busca de
oportunidades de ascensão social.
Ou como diz a própria autora: “Nas grotas
ensanguentadas das caatingas, a covardia de poderosos impunes plantou a semente
da violência mascarada, modernizada, sem honra e sem coragem, fazendo nascer,
em oposição ao estardalhaço aterrorizante do cangaço, o mais desumano,
subterrâneo e desestruturador sistema de crimes empresariados no silêncio dos
conchavos políticos e econômicos – o mundo pistoleiro”.
Na introdução que escreveu para esta terceira
edição, a pesquisadora lembra que “a singularidade de Lampião foi seu
envolvimento num processo de degradação do campo legal, ao se associar a
juízes, comandantes de volantes, fuzis,
punhais, governador, enfim a
membros corruptos das camadas mais ricas do Nordeste, frequentando mansões de
industriais e grandes, proprietários, alardeando, entre “os pequenos”, seu
cargo de governador do Sertão”.
É de se ressaltar que na frase acima os “fuzis”
caracterizam a violência legal utilizada pelo Estado no controle da população,
enquanto os “punhais” representam a arma mais ao alcance das baixas camadas
sociais do mundo rural. Segundo a professora, diferentemente de outros
bandoleiros que agiam sob o comando dos patrões para praticar a rapinagem em
vilas e pequenas comunidades, ou à margem de conluios protetores, Lampião viveu
vinte e dois anos assombrando o sertão e enriquecendo ainda mais os muito ricos
e poderosos.
Para a autora, os cangaceiros não estavam
preocupados com a “situação de miséria das massas”, mas com uma forma de,
individualmente, poderem ter acesso aos bens de que dispunham os ricos. “Daí a
indiferença com que dilapidavam as economias dos sertanejos, agudizando a
situação de miséria das populações mais pobres”, acrescenta.
III
O que também surpreende neste surpreendente ensaio é
o número de pessoas entrevistadas pela autora que confirmam a promiscuidade que
havia entre ricos proprietários de terras e governantes e seus auxiliares
diretos com o grupo de Lampião. Por isso mesmo, esses auxiliares dos donos do
poder recebiam o nome popular de coiteiros, que, nas palavras de Raimundo
Ferreira de Carvalho, irmão de Eronildes Ferreira de Carvalho (1895-1969),
médico-cirurgião que foi presidente do Estado de Sergipe de 1935 a 1937 e
interventor de 1937 a 1941, “eram aqueles que davam guarida, que davam
agasalho, que não diziam para onde (os cangaceiros) partiram, onde (Lampião) chegou,
onde está e assim por diante”. À guisa de explicação, acrescente-se aqui que foi
só a partir de 1947 que a denominação de presidente de Estado passou a ser a de
governador de Estado.
É de se destacar que Raimundo, que foi secretário
particular do presidente do Estado durante seis anos e meio, garantiu ainda na
entrevista que seu pai, que “chegou a possuir umas quarenta fazendas” em
Sergipe, “comandava na época o coronelato do sertão e todo mundo (o) respeitava
com muito rigor (risos)”. Segundo ele, à época do mandato de seu irmão, nunca o
governo federal pediu qualquer ação contra os cangaceiros, o que só se teria
dado ao tempo do general Augusto Maynard (1886-1957), que foi presidente do
Estado de 1930 a 1935 e de 1942 a 1945. Em contrapartida, houve também
integrantes da classe dominante de outros Estados nordestinos, que se distinguiram
como inimigos de Lampião, como João Suassuna (1886-1930), presidente da Paraíba
de 1924 a 1928.
Por fim, não há como deixar de registrar que as
pesquisas da professora Luitgarde comprovam também que o governo federal, ao
tempo do presidente Arthur Bernardes (1875-1955), lançou o grupo de Lampião
contra a Coluna Prestes, comandada pelo militar Luiz Carlos Prestes
(1898-1990), participante do movimento tenentista de 1922 e que seria
secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro de 1943 a 1980.
IV
Por aqui já se vê que Luitgarde conseguiu fazer uma
radiografia do esquema de poder que funcionou (e, de certo modo, funciona) no
Brasil desde os tempos coloniais, obviamente com as adaptações necessárias para
manter os privilégios das classes dominantes. Depois de demonstrar o fracasso
do Exército no combate aos cangaceiros na caatinga, a antropóloga mostra como a
segurança da população do sertão nunca constituiu prioridade dos governos
locais. E revela como, a partir de 1930, as forças privadas dos senhores do
sertão, que não só fustigaram os cangaceiros como a Coluna Prestes, são
substituídas pelas forças estaduais, dentro de uma nova ordem travestida de
modernização, de fortalecimento do Estado em substituição ao poder privado.
Para a autora, na verdade, esse foi o início do
mascaramento da privatização do Estado. Em outras palavras: “(...) um novo
grupo assumia a direção do Estado com um discurso modernizador, falando em nome
dele e da cidadania, universalizando como públicos os interesses de um setor da
população, a burguesia agrária do Sudeste, que iria diversificar seus
investimentos na industrialização e no capital financeiro”.
De fato, como observa a autora, era a mesma
burguesia que patrocinara o estado de sítio de Epitácio Pessoa (1865-1942),
presidente do Brasil de 1919 a 1922, e Arthur Bernardes, presidente do Brasil
de 1922 a 1926, e a “ditadura policial” de Washington Luís (1869-1957),
presidente do Brasil de 1926 a 1930. “Mudavam apenas os indivíduos. Mas nem
todos. Getúlio Vargas (1882-1954), por exemplo, fora autoridade nos governos de
Epitácio Pessoa e Washington Luís”.
V
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros é professora
aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora há 52 anos, é doutora e mestra
em Ciências Sociais na área de Antropologia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutoramento também em Antropologia
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-doutorado em Ciências da
Literatura pela UFRJ. Fez os primeiros estudos em Maceió, até o curso
científico. No Rio de Janeiro, em 1968, bacharelou-se e licenciou-se em
Ciências Sociais pela UFRJ e, em 1966, em Fisioterapia.
É autora também de Pelos Sertões do Nordeste
(Eduneal, 2015), Nelson Werneck Sodré, um Perfil Intelectual (Edufal,
2011), Arthur Ramos e as Dinâmicas do seu Tempo (Edufal, 2005), Octávio
Brandão: Centenário de um Militante na Memória do Rio de Janeiro (UERJ,
1996) e A Terra da Mãe de Deus – um estudo do movimento religioso de
Juazeiro do Norte (Francisco Alves, 1988). Adelto Gonçalves - Brasil
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A Derradeira
Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão, de Luitgarde
Oliveira Cavalcanti Barros. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, terceira edição – revista e ampliada, 280
páginas, R$ 62,30, 2018. Site: www.mauad.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa
pela USP e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003), Tomás Antônio Gonzaga
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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