Há
um trecho no romance Vale das ameixas, de Hugo Almeida (Editora Sinete,
2024), em que o narrador adverte: “Um romance é um buraco negro que suga tudo.
Mas ilumina a vida” (p. 245). Grande verdade. Iluminado fiquei após a leitura
desse livro que, em muitos momentos, também nos dá a sensação de estar num
buraco negro, de estar perdendo o fio da meada. Isso porque há um entrelaçar de
narradores, embora predomine a voz do polaco Harley Tymozwski, apelidado de
Timo, ex-alfaiate e ex-professor, que vive em Belo Horizonte. Figura complexa,
às vezes me lembra o narrador de Migo, de Darcy Ribeiro, ou, também, o
narrador de Morte em V., de Reinaldo Santos Neves.
O
autor, que é um especialista em Osman Lins, aliás muito citado ao longo da
obra, principalmente A rainha dos cárceres da Grécia, insere
ironicamente esse jogo de alteração de narradores na p. 221, em que um
personagem que detém o ponto de vista avisa: “Ah, eu sou o Túlio”. Túlio,
Zacarias e algumas personagens femininas vão se alternando num livro repleto de
referências a artistas poloneses, como escritores, poetas, pintores cineastas,
escultores, prevalecendo a imagem de Chopin. Assim como há vários dados
biográficos de Ziembinski, extraídos do livro de Yan Michalski e do de Silvia
Czapski. Na p. 227, como se fosse um Avalovara
ou Jogo da amarelinha, o personagem
Zacarias, filho de Timo, explica a montagem do livro, do qual Túlio também
participou. E, através de seu personagem, Hugo Almeida sintetiza: “A descoberta
de quem fala é um dos prazeres da leitura de um romance. Surpresas a cada
página” (p. 244).
Das
várias epígrafes do romance, destaco a extraída do conto “Pentágono de Hahn”,
de Nove, novena, de Osman: “Atravessa o mundo e suas alegrias,
procura o amor, aguça com astúcia a gana de criar.” Daqui, aponto três linhas que vejo como
elementos fortes da obra: a imigração dos poloneses, o erotismo e o dom de
criar.
São
vários os poloneses citados. Polônia, pátria ferida nas duas grandes guerras,
tem seus filhos espalhados por outros países. Sua liberdade é golpeada, aliás,
desde tempos mais remotos. Por exemplo, o cineasta Andrzej Wajda, em seu filme Danton,
intercala Revolução Francesa e época contemporânea ao colocar na boca do
personagem a frase: “Um homem sem pão não tem liberdade; nem justiça, não tem
nada”. É o que vemos na p. 28, para, logo a seguir, nos surpreendemos pela
inserção de versos de Machado de Assis, no poema “Polônia”, de Crisálidas,
em que há este trecho: “A mãe via partir sem pranto os filhos [...] / Pobre
nação! – é longo o teu martírio; a tua dor pede vingança e termo;/ Muito hás
vertido em lágrimas e sangue [...] Não ama a liberdade / Quem não chora contigo
as dores tuas”.
Com
relação à questão da imigração, há duas passagens bem hilariantes: em uma
delas, na p. 158, um polonês em Chicago, num exame oftalmológico, ao ver
consoantes aleatórias na parede, afirma que não apenas reconhece as letras, mas
conhece quem era aquele cara. E, na p. 219, há o diálogo do protagonista com
agente da imigração em Lisboa: “Não podes perman’cer mais do que noventa dias. O
quê?! Noventa dias!? Vocês ficaram no Brasil por mais de trezentos anos”. Porém,
são pausas para respirar, pois a temática da diáspora é repleta de dor, como se
lê na p. 120: “Sim, impossível fechar os olhos, ainda há guerras e guerras,
famílias destroçadas, covas rasas e mutilados, crianças sem pais nem país,
milhares sem chão nem identidade cultural ou psíquica. Ilegais aqui e acolá.
Presos e deportados. O homem segue louco, vil, voraz, um sorvo”.
Contrastando
com a guerra, há o núcleo amoroso do livro. As intertextualidades comparecem
para sublinhar o tema: “[...] ‘diz que é homem do amor, ouvintes, e não homem
da guerra’. Nessa passagem ‘radiofônica’ de A rainha dos cárceres da Grécia,
vejo que Osman Lins fez paráfrase de uma fala de Antígona, de Sófocles: ‘Eu não
nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!’. Ou, talvez, da frase
original, que é de Homero, na Ilíada: Dione, com a filha Afrodite (ou
Vênus) ferida no colo, lhe diz ter sido feita para combates de amor, não de
guerra” (p. 111).
A
temática amorosa aponta para os instantes mais líricos e eróticos do romance,
em que Timo evoca suas várias amadas, como Laura: “Laura, Laura, Laura. Sim,
sim. Luz, poema vivo. [...] voz que belisca a alma. Gotas de mel no lábio de
abelha-beija-flor”. (p. 13). Na p. 95, na esteira de Baudelaire, o protagonista
se pergunta: “O que é o amor? Sim, a necessidade de sair de si”. O título do
livro, além de acenar metonimicamente para a Polônia, serve como metáfora para
o corpo feminino, notadamente os seios, como se lê em algumas passagens, como
esta, da p. 178: “[...] mergulha e chora na minha tua aljava, gruta
enlouquecida, o teu vale de ameixas rosadas...”.
As mulheres, ademais, como as passantes de
Baudelaire, arrancam de Timo frases assim: “Deus é melhor do que Rodin. Basta
olhar algumas moças que passam. Que passos! Que pássaras!” (p. 110). Na p. 122,
enfileiram-se as evocações: “Laura, poema vivo, vulcão em repouso. Oh, Laís,
meu sonho e meu pecado. Piedade, a fiel Alzira. Léa, Léa do meu devaneio. Éden,
mestre que Túlio me trouxe. Núbia de meus sonhos fugazes, permanentes. Loren,
Loren, minha febre”. Diga-se, de passagem, que a voz feminina também se ouve,
tanto em contraponto erótico (“mergulha e chora na minha tua aljava, gruta
enlouquecida, o teu vale de ameixas rosadas”, p. 178), como em reflexões
antimachistas (“O homem é uma devastação para a mulher”, p. 129). Lembro que, entre as mulheres citadas, há uma
guerrilheira, assassinada no Araguaia, e que continua a fazer suas denúncias
mesmo depois de morta. Na p. 193 há a informação de que “Mulheres que leem são
mesmo perigosas”.
Finalizando,
destaco o tema da criação, das reflexões sobre o escrever literatura. Com ressonâncias de Mário de Andrade, lemos,
na p. 120: “Quando sinto o impulso poético pulsar, deslizo a caneta sem medo e
sai o que meu peito grita. Depois, bem depois, releio, penso e altero alguma
coisa, corto ou troco palavras, reviro alguma frase”. Na p. 123, esta frase, que é uma redenção:
“Literatura, pássaro livre”. Das várias reflexões sobre o ato de criar, uma
delas diz que “Uma narrativa não é detentora de significação, mas deflagradora
de significação. O título de um romance – essa máquina complexa que não nasce
de ovo nem útero – deve misturar as ideias, e não orientá-las. Escrever,
triunfo da liberdade, solidão fraterna”. (p. 204)

Na
p. 199, numa passagem que me lembra Graciliano Ramos estabelecendo analogia
entre o fazer literário e o trabalho do sapateiro, o narrador faz relação entre
escritor e alfaiate: “Ambos enfrentam a mesma faina, a mesma feliz agonia de
trabalhar com fios leves, da memória ou fantasia, e acertar a proporção dos
cortes, o ajuste das dobras e curvas, não exceder nas medidas”. Não é gratuita
na obra uma citação de Julia Kristeva, pois o romance de Hugo Almeida, sendo um
mosaico de citações, opera trazendo paráfrases, pastiches, alusões. Por
exemplo, ao abordar Catatau, de Leminski, busca em Agora que são elas
a frase “Vou lhe mostrar com quantos plágios se faz o original” (p. 113). Quando Timo escreve que tem uma vida que
poderia ter sido mas não foi, logo a seguir fala de sua bandeira, explicitando
de quem é o célebre verso. Porém, ao descrever um enterro, na p. 215,
parafraseia o poema “Momentos num café”, sem dar dica ao leitor incauto que
aquilo era uma paráfrase. Das várias citações, há esta, na p. 88, Celso Adolfo,
“E a porta continua proibida a quem precisa entrar”. Se, de um lado, o
narrador cita explicitamente autores como Machado de Assis, Flaubert, Leopardi,
Wislawa Szymborska, Otto Maria Carpeaux, Joseph Roth, Leminski, Mário de
Andrade, W. J. Solha, por outro dá apenas pistas, como na p. 48, ao referir-se
a um poeta chamado Vastafala, aluno do célebre Colégio Estadual dos anos 60.
Quem conhece Antônio Barreto, sabe que é o título de um de seus livros. Porém,
p. 209, cita versos nos quais vejo ressonâncias cabralinas: “Entras nessa sala/
e tudo inundas/ o mar começa/ em teus pés/ são de água/ esses seus passos”.
Demorei a encontrar o autor: trata-se de Moacir Amâncio, no livro Câmara
escuro, publicado pela editora Hedra.
A
obra, enfim, é uma grande e prazerosa dança do espírito, uma polonaise,
cuja chave de interpretação está nela própria, como se lê na p. 204: “Onde
procurar as chaves de um romance? Nele mesmo. Um texto traz a memória da
cultura em que se insere. [...] Concluído o romance, o escritor deveria morrer.
Ou calar-se. O livro segue, livre, o seu caminho. Agora é com o leitor”. E, se
“os mares nunca descansam” (p. 164), as leituras vêm em incessantes ondas, como
o mar. Caio Maciel
– Brasil
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Vale das ameixas, de Hugo
Almeida. São Paulo: Editora Sinete, 248 páginas, R$ 65,00, 2024.
www.editorasinete.com.br O romance está disponível na Amazon.
Site
do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br
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Caio Junqueira Maciel é mestre em Literatura pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), autor dos livros de ensaios A escritura do
tempo na poesia de Dantas Mota e O sangue que rejuvenesce o Conde
Drácula. Como poeta, entre outros títulos, escreveu Pele de jabuticaba.
Autor do romance Um estranho no Minho, fruto do período em que viveu em
Portugal.