A
4.ª Conferência das Comunidades Luso-Asiáticas (APCC, em inglês), em Díli, sob
o tema ‘Unidos na Diversidade – Desafios e Oportunidades de um Legado Secular’,
terminou com a assinatura da Declaração de Díli – Criação da Associação das
Comunidades Luso-Asiáticas – APCA, uma rede de pessoas e comunidades, em que a
partilha e a diversidade servem um objetivo comum.
O
evento de três dias, de 27 a 29 de junho, teve início na sexta-feira e foi
projetado para ser um espaço de partilha e de preservação da língua, da
história e da cultura de países asiáticos com rastos portugueses.
A APCC reúne comunidades de oito
países – Malásia, Myanmar, Sri Lanka, Tailândia, Índia, Indonésia, China e
Timor-Leste. A primeira conferência foi em 2016, em Malaca, na Malásia. O
objetivo foi claro desde o início: estabelecer valores históricos, despertar as
pessoas para o peso da herança cultural lusófona e iniciar uma cooperação
económica entre comunidades.
Criar
a associação, como explicou o presidente da República Democrática de
Timor-Leste, José Ramos-Horta, é uma forma de reconhecer o valor de comunidades
luso-asiáticas, geralmente ignoradas e desvalorizadas, e dar voz a possíveis
diálogos com governos e instituições internacionais.
“É
uma promessa e um compromisso de preservar, registar e capacitar. Apoiará [a
associação] a investigação, a educação e a sustentabilidade económica. Ajudará
a proteger as histórias e identidades de pessoas cujas culturas são mistas,
complexas e orgulhosas”, salientou.
Acrescentou
que a associação visa honrar o passado e projetar o futuro a partir de um
legado comum. “Isso inclui documentar histórias orais, apoiar festivais
culturais e fortalecer o desenvolvimento liderado pela comunidade.”
João
Paulo Oliveira e Costa, professor da Universidade Nova de Lisboa, observou que
cada comunidade apresenta uma realidade diferente: algumas são isoladas, outras
são muito fortes e numerosas e algumas estão bem implantadas no seu território,
como é o caso das Flores.
Mesmo
que nem todos falem português, para o professor, a cultura é aquilo que une as
comunidades na conferência, e aí há sempre aspetos em comum. “Há um conjunto de
traços culturais, desde a culinária ao folclore, além de histórias
semelhantes”, salientou, referindo também o cristianismo como um elemento que
serviu para a consolidação e resistência destas comunidades em meios onde a
maior parte das pessoas não é católica.
“A
língua portuguesa não é praticada da mesma maneira em todos os grupos. De
qualquer forma, é uma memória também e, em muitas comunidades, ainda faz parte
do dia-a-dia, já que é fácil encontrar pessoas que falam fluentemente português
em Goa ou aqui em Timor. No Sri Lanka, já não é bem assim”.
União na diversidade
Earl
Barthelot, presidente do Grupo “Burgher Folks”, de Batticaloa, no Sri Lanka,
falou no português crioulo, a versão antiga do português, que foi sofrendo
alterações ao longo dos tempos. “Quando os portugueses conquistaram o Sri
Lanka, não trouxeram mulheres de Portugal, casaram-se com locais e fizeram
negócios, levando coisas do Sri Lanka para Portugal, através de Goa, na vizinha
Índia”
A
língua que era utilizada nos negócios foi sofrendo alterações, estruturais e
gramáticas, até pelo contacto com as duas línguas principais do Sri Lanka: o
cingalês e o tâmil. O português crioulo não é usado todos os dias, mas as
pessoas conseguem dizer, por exemplo: ‘estou a tomar café’ – ‘eu avora teat
boe”.
A
descendência portuguesa no Sri Lanka é muito pequena e não há um número exato
de pessoas. O chefe do grupo calcula que existam sete mil pessoas no seu
distrito. Muitas delas mantêm-se em contacto através de eventos sociais,
familiares ou na igreja.
Em
Malaca, a história é diferente. Marina Linda Danker, dona do grupo cultural
português de Malaca – DomMarina –, contou que são descendentes dos portugueses
de 1511 e conservam a língua portuguesa de Malaca, dos séculos XVI e XVII.
Sem
livros e limitados ao uso do inglês e do malaio na escola, conseguiram manter a
língua portuguesa, praticando todos os dias em casa com os familiares. A
proximidade das 118 famílias, na mesma localidade, também ajuda nessa
comunicação em língua portuguesa. Quando cumprimentam alguém, dizem algo como,
‘que sorte, tá bom?’, equivalente a ‘estás bem?’; quando oferecem comida, ‘bem,
comi’; ou convidam alguém para dançar, dizendo ‘bem juntado, bem nos balar’;
‘onde tu vai?’, quando perguntam a alguém para onde vai. Além disso, dizem ‘boa
tarde, bom meio-dia, boa noite’ e ‘muito agradecida’. O português,
curiosamente, acaba por ser uma língua secreta, falada entre os membros da
comunidade naquela região.
“Vivemos
numa aldeia onde todos são portugueses e católicos romanos. Praticamos todas as
nossas tradições, incluindo as que estão ligadas à religião. Os números, um,
dois, três, e até alimentos e temperos dizemos em português: cebola, gengibre”,
explicou, acrescentando que há outras comunidades que podem já não falar
português por viverem isoladas e não conseguirem usar a língua todos os dias.
Marina
Danker mostrou-se feliz por participar na conferência. “Queremos unir o nosso
povo para aprender a língua e a cultura. Queremos saber o que os outros têm de
igual e quais são as diferenças. Portugal dominou Malaca por 130 anos e
mantém-se a influência na cultura”, exemplificou.
O
grupo DomMarina faz viver a cultura através das roupas tradicionais, da comida,
de conversas, de exposições e de festivais anuais.
A
comunidade em Jacarta, na Indonésia, já não fala português, uma vez que o Papia
Tugu, a língua crioula falada pelos portugueses nos arredores de Jacarta, é
considerada extinta. “O português crioulo que temos não é o português moderno,
nem autêntico. Chama-se Papia Tugu”, explicou Guido Quiko, líder comunitário na
aldeia portuguesa de Tugu e do grupo musical Tugu Keroncong. É o grupo musical
que acaba por manter o legado do Papia Tugu, através de canções escritas
naquele crioulo português-javanês.
Em
Jacarta, dizem ‘yo kere bebe’ (eu quero beber) e ‘yo kere pasa’ (quero dar uma
volta). Como não usam a língua todos os dias e por falta de vocabulário, os
resquícios da língua portuguesa foram desaparecendo, misturando-se com línguas
das regiões da Indonésia, desde meados do século XVIII.
“Temos
apenas algumas canções compostas pelos nossos pais: Kaprinyo, Gatumatu,
Yankagaleti e Meninabobo. Estas são as que ainda cantamos com frequência. Mas o
nosso conhecimento da língua não é suficiente para manter uma conversa”. As
canções – Kaprinyo, Gatumatu, Yankagaleti e Meninabobo – foram tocadas ao longo
da conferência em Díli.
A
comunidade foi formada por cerca de 800 pessoas de descendência portuguesa em
Malaca, que foram capturadas pelos holandeses em 1641 e, dois anos depois,
exiladas em Batávia (nome dado pelos holandeses à atual cidade de Jacarta),
numa aldeia que se passou a chamar Tugu, cujo nome é retirado da palavra
‘português’.
“Em
Batávia, em 1661, os holandeses impunham duas condições a quem quisesse viver
na região: converter-se ao catolicismo ou ao protestantismo e substituir os
apelidos portugueses por apelidos holandeses”, contou Guido Quiko.
Os
23 chefes de família concordaram e permaneceram no sudeste de Batávia, agora
Kampung Tugu, acabando por casar com outros clãs daquela região. Existem seis
clãs no local: Andris, Cornelis, Mihils, Abraham, Brone e Quiko. O último é o
único clã de origem portuguesa, o resto é da Holanda.
A
música Keroncong surgiu pela falta de divertimento naquele local, já que viviam
isolados. Para ter entretenimento, tinham de caminhar 23 km, desde a vila Tugu,
até à cidade de Atuwa.
Criaram
um instrumento musical, de cordas, com a forma de um cavaquinho, que ficou
conhecido como ‘macina’. “Tem o formato de uma pequena viola e, quando tocado,
emite um som metálico ‘chong chong’ [tenta reproduzir o som], então
chamaram-lhe keroncong”. Foi assim que surgiu a música keroncong na Indonésia,
com a qual a comunidade se divertia depois do trabalho, ou durante o dia, a
pescar ou a caçar.
Quando
os holandeses ouviram que havia eventos musicais naquela aldeia isolada, foram
lá, juntaram as pessoas, e levaram instrumentos musicais europeus. Mais tarde,
foi instituída uma Orquestra em 1925: ‘Orkes Pusaka Keroncong Moresko Tugu’,
que agora se chama Tugu Keroncong.
A
comunidade luso-asiática em Jacarta não recebe apoio ou atenção por parte do
Governo, pois são uma minoria, sem grande expressão num país/arquipélago tão
grande como a Indonésia. Nesse sentido, nem as línguas crioulas, como o
português, são reconhecidas. Guido Quiko não fala português crioulo, mas conta
que o seu falecido avô falava um pouco.
Além
da língua, há tradições culturais: a tradição de Rabu-Rabu (tradução literal de
quartas-feiras) e a tradição de Mandi-Mandi (banhos). A Rabu-Rabu é celebrada a
1 de janeiro – os músicos tocam música pelas ruas da aldeia de Tugu para
desejar um ‘Feliz Ano Novo’. A Mandi-Mandi acontece no primeiro domingo de
janeiro e é o dia que as pessoas pedem desculpas umas às outras, ao som de
músicas de keroncong. A música é reconhecida como património cultural imaterial
da Indonésia.
Timor-Leste como ponto de encontro
A
4.ª Conferência da APCC serviu ainda para destacar o papel de Timor-Leste como
a única nação asiática que tem o português como língua oficial. O facto de ser
membro da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP), de estar associado
aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e de estar já com um
pé na Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) ainda dá mais peso ao
papel de Timor-Leste na região.
Ter
português como língua oficial faz de Timor-Leste “um farol para todas as
comunidades de língua portuguesa que existem na Ásia”, além de ser uma marca de
distinção que reforça a individualidade do povo timorense, segundo o professor
João Paulo Oliveira e Costa.
O
professor destacou ainda a importância de Timor-Leste como ponto de ligação
entre as comunidades luso-asiáticas, por ser o único Estado de língua oficial
portuguesa da Ásia. “Aquilo que temos todos em comum é partilharmos um passado
e aspirarmos a um presente em que podemos estar juntos e apoiarmo-nos
mutuamente.” Antónia Martins – Timor-Leste in “Diligente”