A Manteigaria abriu há quatro meses no centro de Macau com a missão de revolucionar o conceito de “pastel de nata”, tantas vezes associado a ‘egg tarts’ macaenses que apenas se assemelham ao doce conventual português no molde circular. Diogo Vieira, o gerente da marca, explica ao Ponto Final que a missão não termina aí: para além do “melhor pastel de nata autêntico”, apenas levemente retocado para se adaptar ao paladar chinês, a Manteigaria quer proporcionar em Macau uma experiência imersiva do que significa ser português

Em plena Avenida da Praia Grande, uma das artérias mais movimentadas da cidade de Macau, é possível regressar a Portugal apenas transpondo uma porta. Identifica-se a metros de distância pelo logótipo inconfundível da marca Manteigaria e uma campainha que soa a cada poucos minutos, anunciando uma nova fornada de pastéis de nata ainda fumegantes. No interior, os aromas a manteiga quente, canela e café misturam-se numa atmosfera pouco habitual em Macau e remetem para os cafés típicos da baixa lisboeta, em que o pastel de nata se quer doce e estaladiço e sempre acompanhado pelo caneleiro e a bica.
O ‘egg tart’ é um dos símbolos mais difundidos de Macau, em simultâneo com a iconografia das Ruínas de São Paulo ou a mascote do turismo Mak Mak. Em cada esquina, germinam estabelecimentos de comida que vendem as famosas tartes de recheio suave, semelhante a gema de ovos cozida a vapor, envolto numa massa de consistência quebradiça. Apesar das diferenças evidentes na textura e no sabor das duas variedades, algumas lojas optam por rotular os seus produtos como “pastéis de nata” ou “‘portuguese egg tarts’”, talvez para lhes conferir uma sonoridade mais exótica. O pastel de nata autenticamente português, com sabor intenso a nata e manteiga e textura folhada, é bem mais raro de encontrar.
“Não posso alegar que temos o único pastel de nata autêntico em Macau, mas somos garantidamente o melhor”, afirma Diogo Vieira, gerente da Manteigaria do território. Recebeu o Ponto Final na manhã da passada quinta-feira, no dia em que se completaram precisamente quatro meses desde a inauguração do espaço, em Janeiro. Há lojas da concorrência a meros minutos de distância, muitas delas com clientela fiel há décadas e um sabor leve, pouco adocicado e mais focado no ovo do que na nata, concebido com atenção ao paladar asiático. Ainda assim, o gerente não acredita que a Manteigaria tenha vindo integrar-se num mercado saturado. Pelo contrário: numa região com uma oferta tão pouco diversificada, a marca portuguesa distingue-se por apresentar o sabor genuíno do outro canto do mundo.
“Em comparação com a oferta local, não somos melhores nem piores”, ressalva. “Somos diferentes daquilo que eles oferecem. Chamam-no de ‘portuguese egg tart’, o que não é a denominação correcta; é um produto parecido visualmente, mas que tem uma consistência diferente, parecida com pudim, e um sabor completamente diferente do nosso”. Dentro da categoria específica de pastel de nata, correspondente aos mesmos padrões de Portugal, Diogo Vieira não se coíbe de admitir: “Existem outras padarias locais que até podem ter pastéis de nata portugueses, mas que não têm a mesma receita ou a qualidade do nosso. Basta ver a comparação das críticas que os clientes deixam ‘online’, tanto em Portugal como em Macau”.
Não é só o pastel de nata que veio do extremo ocidente europeu. No cardápio de bebidas, embora também surjam os cafés americanos e os ‘lattes’ muito apreciados localmente, são o expresso, o vinho do Porto e a ginja que solidificam as cores de Portugal na loja e suscitam a curiosidade dos clientes, pouco habituados a esta oferta. “A nossa ginja é um produto português produzido especificamente para Macau por uma marca local, a ginja do Senado. Queremos fazer parcerias com pequenos negócios locais, para incentivar o espírito de comunidade e de entreajuda”. Em alternativa, os clientes mais enraizados a velhos hábitos podem optar pelo chá caseiro de gengibre, menta e limão. “Tentamos ter bebidas mais localizadas para este mercado, que vão ao encontro dos gostos asiáticos e da cultura do chá”.
Um cliente entra na loja e dirige-se ao balcão. Seguem-se “bom dia” e “como está?” trocados de um lado para o outro, enquanto a combinação clássica do café e da nata é servida. Ser português, nota Diogo Vieira, refere-se a mais do que um pastel polvilhado com canela ou um expresso curto e cremoso – é exalar hospitalidade e acolher cada cliente como um amigo de longa data, com as suas próprias características que o individualizam do anterior. “Sabemos que nas pastelarias há muito o hábito de colocar os produtos nos expositores e é o cliente que se vai servindo no tabuleiro, para depois ir à caixa pagar. Isso faz com que não haja uma interacção directa entre as duas partes”, lamenta. A Manteigaria, como reduto da cultura portuguesa em território macaense, procura destacar-se do ‘self-service’ comum nas pastelarias em redor com uma cordialidade muito característica dos países do sul da Europa.
“Tentamos ao máximo dar uma experiência portuguesa na globalidade, incluindo um serviço à portuguesa. É algo que tento incutir à minha equipa, mesmo que os funcionários sejam filipinos ou chineses: uma vontade genuína de interagir com o cliente, perguntar como está, como foi o seu dia… lógico que, quando a loja está cheia e a fila é grande, as pessoas querem consumir rápido e sair. Mas, sempre que houver oportunidade, queremos ter esse tipo de interacção com as pessoas. Faz parte da nossa portugalidade e da nossa maneira de estar”. A intenção é que o cliente, do outro lado do balcão, mimetize estes hábitos culturais e os retribua de igual maneira, começando por um “olá” e terminando num “obrigado”.
Rumo à expansão na Ásia, com menos 50% do açúcar
“A nossa produção é aberta ao público. Esta área foi concebida exactamente para o processo estar à vista e para que os clientes possam ver os nossos pasteleiros a trabalhar. Não temos nada a esconder”. Diogo Vieira e Pedro Quintaneiro, subchefe pasteleiro, guiam o Ponto Final até ao andar de cima. Não há mesas nem cadeiras: embora seja possível consumir no local, não é tanto uma zona de degustação como uma ocasião para parar e admirar o método de confecção do doce português desde a incipiência. E, talvez, para tirar umas quantas fotos para as redes sociais.
A produção da doçaria teve de ser dividida em dois pisos, devido às limitações logísticas. “Não conseguimos colocar tudo no mesmo espaço, como fazemos em Portugal”, explica o gerente, apontando para o andar de baixo onde uma das características mais distintivas será, provavelmente, um separador de vidro que permite ao cliente acompanhar o processo a que os pasteleiros chamam de “abertura, enchimento e cozimento”. “Essa parte lá em baixo talvez seja a mais fotografada, em que se trabalha com as mãos a abrir os moldes, encher o forno, tirar do forno… Até porque, aqui em cima, é um processo de preparação que se faz numa altura específica do dia, da parte da manhã. O resto do trabalho é focado lá em baixo durante a tarde”.
Um dos principais selos de qualidade da Manteigaria é a garantia de que tudo é confeccionado no instante pelas mãos dos pasteleiros, desde a pesagem da farinha à cozedura. “O processo é todo manual; nada é automatizado. Não temos máquinas a dar-nos esse apoio”. O número de tabuleiros é gerido consoante a procura do dia, garantindo que o tempo entre a saída do forno e o consumo pelo cliente é o mais reduzido possível. Como explica Diogo Vieira, “o pastel vendido à tarde não foi cozido de manhã. Cozinhamos para períodos de uma ou duas horas, o que nos dá a possibilidade de fazer o ‘stock’ do dia desde as oito da manhã até perto das oito da noite, quando fechamos”.
No piso de cima, um pasteleiro vai trabalhando a massa folhada e envolvendo-a num bloco espesso de manteiga, que segue depois para os frigoríficos. Pedro Quintaneiro, responsável pela formação dos pasteleiros desde o início do projecto, mantém os olhos fixos no que acontece do outro lado do vidro e, ocasionalmente, entra para trocar uma palavra ou um conselho. Pedro foi convidado a integrar a equipa sob uma condição: teria de passar quase três meses em Portugal imerso no mundo da Manteigaria, a receber formação com mestres pasteleiros que incluíam os próprios criadores da receita exclusiva da marca. De regresso a Macau, tornou-se o formador da equipa local e o responsável por garantir a qualidade do produto, sobretudo durante as duas semanas iniciais de grande adesão – não apenas pela população residente, mas consequente do enorme fluxo de turistas do Ano Novo Chinês.
“Na altura, tivemos o reforço de outros dois pasteleiros portugueses, exactamente porque já calculávamos que teríamos uma grande procura ao início e não dispúnhamos de mão-de-obra local suficiente para dar resposta. Depois, as coisas acalmaram e eles voltaram à base”, restando Pedro Quintaneiro como responsável a tempo inteiro. Se, na abertura em Janeiro, eram vendidos mais de quatro mil pastéis de nata diários, actualmente o número desceu para entre 1500 e dois mil, “dependendo dos dias”. Diogo Vieira desdramatiza: “Abrimos numa altura muito forte, com muito turismo. A comunidade local estava curiosa, os turistas fizeram filas… é normal, numa fase de abertura. Agora, como podemos ver, a cidade está mais calma. Estamos à espera de um aumento em Maio, na altura da semana dourada”.
O responsável refere-se aos feriados do dia do Trabalhador no interior da China, que coincidem com os cinco primeiros dias do mês. A receita original dos pastéis de nata foi, aliás, adaptada para corresponder ao paladar chinês, menos tolerante a sobremesas adocicadas do que o português. “Antes de abrirmos o projecto, fizemos testes com grupos de clientes locais e chineses para aferir a receptividade à receita portuguesa. Concluímos que a receita que usamos em Lisboa é demasiado doce para o mercado local e tivemos de fazer um ajustamento ao nível do açúcar, com uma redução de 50%”. Frisa, porém: “O processo e os ingredientes continuam iguais. Ficou uma receita boa, bastante equilibrada”, sem mudar o essencial daquilo que popularizou a fábrica de doces conventuais desde a inauguração da primeira casa, no Chiado, há mais de uma década. Até os ingredientes são importados directamente de Lisboa, com excepção daqueles que podem ser comprados em Macau sem comprometer a qualidade do resultado final, como o açúcar ou o limão.
À medida que a manhã tardia se aproxima da hora de almoço, o movimento de clientes portugueses e turistas vai aumentando no piso de baixo. É dia de comemoração, mas Diogo Vieira, mergulhado na gestão da Manteigaria e na projecção de planos futuros, não se apercebeu da data no calendário. “Dia 24, Janeiro… pois é, pois é”, reconhece, com uma mão aberta em contagem dos quatro meses que passaram desde a abertura do espaço. Para o próximo punhado de meses, as expectativas passam por consolidar o alcance da marca no território, atraindo turistas e residentes de origem asiática a um mercado de clientes portugueses que já se habituou a pedir “um café e um pastel de nata, por favor” nas pausas do emprego.
Os planos mais ambiciosos estão agendados para depois do Verão, com a expansão da marca para a Rua do Cunha, na Taipa Velha – uma zona com forte atracção turística, grande visibilidade e uma proximidade estratégica com o restaurante Portugália, do mesmo grupo. Cobertas as “duas principais zonas turísticas de Macau”, o próximo passo natural será o de alargar a marca até à vizinha Hong Kong – região com as suas próprias heranças gastronómicas influenciadas pelo colonialismo e uma tradição de ‘egg tarts’ adaptadas das ‘custard tarts’ inglesas em sabor e textura. Em qualquer parte do mundo, a ambição é a mesma: criar uma espécie de bolha intacta de portugalidade dentro da loja, independentemente do país que a acolhe no exterior. In “Ponto Final” - Macau