I
A iniciativa não passa de uma gota no oceano, como
admite o poeta Anderson Braga Horta, organizador de Camões na Rua, uma
antologia com alguns dos versos mais famosos do vate Luís Vaz de Camões (c.
1524-1580), mas constitui também um inocente protesto contra a situação de
descalabro a que chegou a educação no País, a ponto de a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) já ter concluído que o
Brasil precisará de mais de um século para atingir o nível de leitura dos
países economicamente mais favorecidos.
Trata-se de um reconhecimento cabal de que a nossa e
as gerações anteriores fracassaram na tentativa de dotar o País de uma
estrutura educacional que fizesse do brasileiro um ser humano mais educado. E o
nivelamento não se dá por baixo, apenas com as classes menos favorecidas, mas
em todos os níveis, como são provas as manifestações diárias de ignorância,
marcadas por ofensas ao vernáculo, que partem da maioria dos homens e mulheres
em cujos ombros repousa a responsabilidade de administrar a Nação.
Principal baluarte que impediu a dissolução do País
em pequenas nações, a exemplo do que ocorreu na América espanhola, a Língua
Portuguesa tem sofrido, nos últimos anos, o mais cerrado combate daqueles que a
querem degradar de vez, a pretexto de adaptar o Brasil à modernidade, que hoje
se traduz na utilização de novas tecnologias de comunicação em que o idioma
pátrio é violentamente agredido.
A situação é tão dramática que não se consegue
sequer imaginar o que será o País daqui a 15 ou 20 anos quando as crianças de
hoje tiverem de entrar no mercado de trabalho. Foi o que este articulista
pensou quando, há poucos dias, sentado na sala de estar de um salão de beleza,
à espera da esposa, viu o livro que tinha nas mãos chamar a atenção de uma
criança de presumíveis cinco anos de idade como se fosse algo muito estranho.
Não é preciso dizer que a criança tinha nas mãos um tablet de jogos
eletrônicos.
II
Ainda que não passe de um quixotesco combate contra
moinhos de vento, esta antologia de poemas de Camões constitui um solitário
protesto contra “os germes de dissolução, que tendem a pulverizar o ordenamento
fora do qual o pensar pode tornar-se uma falácia, o belo uma coisa irreal,
ininteligível ou piegas”, como observa o seu organizador no estudo introdutório
que escreveu para esta edição. Ou seja: Braga Horta reconhece que, nas atuais
circunstâncias, só nos resta “recorrer a Camões e os outros clássicos das
literaturas lusógrafas, ao invés de sepultá-los com pretextos de modernidade,
não para uma inútil e tola tentativa de deter as transformações linguísticas
inevitáveis, sim como um dique à degradação pseudoatualizadora e pseudoliberal
promovida pelas novas tecnologias de comunicação”.
Autor da ideia de se imprimir uma antologia destinada
ao público não especializado, o editor e
livreiro Victor Alegria, um português de Arouca que em 1963 emigrou para o
Brasil em fuga das perseguições do regime salazarista (1933-1974), no texto de
apresentação deste volume, lamenta o profundo desprezo que, nas duas últimas
décadas, tem se verificado no País pela ideia de melhorar o incentivo à língua
bem falada.
Como exemplo, lembra que, no Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem) de 2016, cerca de 1,3 milhão de crianças tiraram nota zero
nas disciplinas de Português e Matemática. E acrescenta: “O custo social desse
descalabro praticamente ficou no esquecimento”. Por isso, espera que a
publicação desta antologia signifique “um ponto de partida e de reflexão para
um esforço patriótico e afirmativo da língua que falamos”.
III
Para fazer esta edição, Braga Horta coligiu textos
da Antologia da Poesia Portuguesa (Porto, Lello & Irmão Editores,
1977), organizada por Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999), e das Obras
Completas (Lisboa, Livraria Sá da Costa, v. I, 1954, e IV e V, 1947),
organizadas por Hernâni Cidade (1887-1975), todos atualizados ortograficamente.
A edição abre com três redondilhas, seguidas por 31 sonetos, dos quais talvez o
mais conhecido seja este:
Alma
minha gentil, que te partiste
Tão
cedo desta vida, descontente,
Repousa
lá no Céu eternamente
E
viva eu cá na terra sempre triste.
Se
lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória
desta vida se consente,
Não
te esqueças daquele amor ardente
Que
já nos olhos meus tão puro viste.
E
se vires que pode merecer-te
Algüa
cousa a dor que me ficou
Da
mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga
a Deus, que teus anos encurtou,
Que
tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão
cedo de meus olhos te levou.
IV
Metade da edição está dedicada a fragmentos de “Os
Lusíadas”, o mais conhecido poema da Língua Portuguesa, obra composta por dez
cantos, 1102 estrofes e 8816 versos que são oitavas decassílabas. A ação
central do poema é a descoberta do caminho marítimo para a Índia pelo navegador
Vasco da Gama (1469-1524), à volta da qual se vão descrevendo outros episódios
da História de Portugal, glorificando o povo português. Um desses fragmentos é
o “LII” do Canto IX (“A Ilha dos Amores”), que recupera a passagem do poeta
pela Ilha de Moçambique, na contracosta do continente africano:
De
longe a ilha viram, fresca e bela,
Que
Vênus pelas ondas lha levava
(Bem
como o vento leva branca vela)
Pera
onde a forte armada se enxergava;
Que,
por que não passassem sem que nela
Tomassem
porto, como desejava,
Pera
onde as naus navegam a movia
A
Acidália, que tudo enfim podia.
V
Nascido em Lisboa, Luís Vaz de Camões, provavelmente,
teve sólida educação, tendo estudado história, línguas e literatura. Estudos
indicam que era indisciplinado e que supostamente teria ido a Coimbra para
estudar, mas não há registros de que tenha cursado a universidade. Foi um poeta
lírico na corte de dom João III (1502-1557). Ainda jovem, teria passado por uma
desilusão amorosa, razão pela qual decidiu ingressar no exército da Coroa em
1547 e, no mesmo ano, embarcou como soldado para a África, onde combateu os
celtas, no Marrocos. Foi ali que perdeu o olho direito.
Voltou em 1552 a Lisboa, mas, no ano seguinte,
embarcou para as Índias, onde participou de várias expedições militares.
Estudos apontam que ele foi preso tanto em Portugal como no Oriente. Foi durante
uma de suas prisões que ele escreveu “Os Lusíadas”. Quando retornou a Portugal,
resolveu publicar sua obra. À época, teria recebido recursos do rei dom
Sebastião (1554-1578). Só depois de sua morte é que passou a ser reconhecido
como grande poeta, a ponto de hoje ser considerado um dos maiores escritores da
Língua Portuguesa. Seu nome é conhecido em todo o mundo. Adelto Gonçalves - Brasil
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Camões na Rua:
antologia, de Luís de Camões, com estudo introdutório de Anderson
Braga Horta (organizador) e prefácio de Victor Alegria (editor). Brasília:
Thesaurus Editora, 140 páginas, 2019. E-mail: financeiro@thesaurus.com.br
Site: www.thesaurus.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003), Tomás Antônio Gonzaga
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o
Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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