Lutou pela independência de Angola, lutou pela liberdade
em Portugal e luta pelo bem-estar dos animais em Macau. Albano Martins tem
passado a vida em batalhas das quais não só tem escapado ileso como tem saído
vitorioso. Agora, o economista quer voltar para Portugal, para junto da
família, mas promete que a luta pelos animais vai continuar, deste e do outro
lado do mundo
José
Resistência Popular e António Ofensiva Popular. Estes eram os nomes dos dois
cães que Albano Martins teve depois do 25 de Abril de 1974, quando vivia em
Estremoz. Um dia, José saiu a correr do carro que Albano conduzia e foi
atropelado. “Morreu logo ali, eu fiquei chocado”, conta ao Ponto Final. Morreu
Resistência Popular e Albano ficou de cama durante um mês. A história ilustra
dois dos traços mais vincados da figura: o homem revolucionário e o amor pelos
animais.
Os
70 anos de Albano Martins são divididos entre três continentes: Dezoito anos em
Angola, 14 anos em Portugal e 38 em Macau. Isto “faz de mim mais chinês do que
português”, diz a brincar, para depois corrigir: “Eu sinto-me bem cá, mas não
sou cidadão chinês nem quero ser cidadão chinês”.
Albano
Martins nasceu em Moçâmedes, no Sul de Angola, e, com um “pá” no final de cada
frase, conta que cresceu num meio pobre. O pai trabalhava na Companhia Nacional
de Navegação, era mestre de estaleiros e carpinteiro naval, e a mãe ficava em
casa a tomar conta dos 11 filhos. Tanto os pais como os avós de Albano Martins
já nasceram em Angola. Os bisavós é que foram do Algarve para Angola numa
altura em que Portugal pedia às famílias portuguesas que fossem para África
para que aquele que ficou conhecido como “Mapa Cor-de-Rosa” se tornasse uma
realidade.
Em
jovem, aquele que é hoje o director financeiro da Sociedade de Empreendimentos
Nam Van não tinha interesse pela economia. Foi para Sá da Bandeira, para a
escola comercial, apenas porque queria ir para a universidade. “Eu só teria uma
hipótese se quisesse seguir um curso superior, era ser economista”, lembra
Albano, que até preferia ter ido para Belas-Artes. O facto de ser bom aluno
valeu-lhe um “padrinho rico” que lhe pagou todos os estudos na escola comercial
e uma bolsa da Associação Comercial de Luanda para ir estudar para Lisboa, para
o Instituto Superior de Economia e Finanças.
A batalha pela independência de Angola
“Saí
de Angola em 1967 para a faculdade e, ao fim do segundo ano, fui bebendo um
pouco do que se passava e fui percebendo que eu era um grande fascista”, diz,
entre risos. “É na faculdade que os olhos se abrem e nessa altura eu tinha uma
visão muito fascista da realidade angolana e acabei por ficar com a visão
completamente ao contrário”.
Fascista,
porquê? Albano Martins diz que, apesar de a sua família ser “muito pobre”, “a
população negra ainda vivia pior do que a população branca local”. Assim, em
plena guerra colonial, Albano Martins começou, na clandestinidade, a apoiar o
MPLA e a integrar-se em células “da chamada esquerda revolucionária”.
Em
Lisboa torna-se, então, líder estudantil. Houve até um episódio em que quase
fez um antigo Presidente da República, que foi seu professor de Finanças
Públicas – e que, mesmo sendo claro de quem se trata, se recusa a nomear –
desmaiar depois de uma altercação numa aula. “Ele [Aníbal Cavaco Silva] continuava
a dizer que não era político e que não queria ser político e, enquanto toda a
gente lutava contra a ditadura, ele dizia que não se queria misturar nesses
movimentos. Eu fui mandatado para ser o orador de serviço e, depois de
terminada essa trapalhada toda, alguém teve de lhe ir dar um copo de água para
o homem não desmaiar”. Mais tarde, o antigo professor e Presidente da República
encontrou-o e disse-lhe: “Aprendi muito consigo”. “Eu diria que ele não
aprendeu o suficiente”, afirma.
A batalha pelo fim da guerra
“Consegui
nunca ser preso”, afirma com orgulho. “Uma vez, no Bairro Alto [em Lisboa],
andei a distribuir comunicados com colegas que depois foram presos. Eu não fui,
tive sempre a sorte não ter sido preso”, diz. Sorte ou engenho? “Arte”. E
completa a história do Bairro Alto: “Eram seis da manhã e passou uma ramona
cheia de polícias e prostitutas e o polícia da frente abriu o vidro, virou-se
para nós e disse: ‘Vocês têm muita sorte por isto estar cheio, da próxima volta
vão para a grelha’. Estávamos em pleno Verão, nós tínhamos casacos enormes e
por baixo estávamos cheios de comunicados contra a guerra colonial”.
Foi
refratário à guerra e, ainda na faculdade, chegou mesmo a passar soldados para
Espanha. “Passei vários soldados nessa altura, íamos alugar carros no aeroporto
de Lisboa. Lembro-me de um Ford Carrera onde transportávamos soldados ou
capitães que não queriam ir para a guerra, levávamo-los para Espanha”, conta.
Uma vez quis ir à Holanda e foi chamado à PIDE: “Lembro-me de eu de pé e o gajo
no púlpito a dizer: ‘Você não vai nada à Holanda, você tem de acabar o curso e,
se não acabar o curso em cinco anos, vai para a Guiné’. Eu acabei por sair à
mesma, na clandestinidade. Saí várias vezes sem nunca ser apanhado”.
Deu-se,
então o 25 de Abril. Albano Martins recebe um convite para integrar o Governo
de Angola, mas recusou porque o país africano não reconhecia a sua cidadania
portuguesa. “Embora eu seja angolano, tenha nascido em Angola, toda a minha
família era portuguesa. Eu achava que devia ser angolano e português. Mas eles
não aceitavam isso e eu não fui”.
Depois
de especializado em macroeconomia, virou-se para a microeconomia e, depois da
Revolução de Abril, foi presidente de uma cooperativa de habitação em
pré-falência. “Eu meto-me em jogadas de que toda a gente acha que é impossível
sair-se vivo”. Mas também da cooperativa saiu vivo “e ninguém ficou falido”.
Em
Estremoz, onde casou e teve dois filhos, acabou por ser presidente do conselho
directivo de uma escola. Esta era uma “escola-problema”, de filhos de
latifundiários alentejanos. “Toda a gente sabia que eu era um indivíduo da
esquerda revolucionária”, e foi por isso que foi colocado em Estremoz quando
tinha 30 anos. “Nunca mais houve ninguém a entrar com cavalos dentro da sala de
aula”, lembra.
Após
Estremoz, Macau. Em 1981 decidiu aceitar o convite de amigos seus que estavam
no território para integrar o gabinete de estudos do Instituto Emissor de
Macau, actual Autoridade Monetária de Macau. O economista explica: “A vida era
muito complicada, a vida política que levávamos consumia a maior parte do
dinheiro que tínhamos. Eu ganhava quatro mil escudos por mês, pagava a renda,
dava de comer à mulher e filhos, mas, com a vida política que tinha, em metade
do mês tinha de ir comer para casa do meu sogro”. A mulher, que o incentivou a
seguir viagem para Macau, acompanhou-o, juntamente com os dois filhos.
O
economista ficou então encarregue de preparar os bancos a operar em Macau para
fazer a compra e venda de moeda externa. “Não havia praticamente técnicos em
Macau, na altura Macau nem tinha operações de ‘dealing room’, o mercado
era fechado”, lembra.
A batalha pelos animais
Albano
é, desde 2007, presidente da Sociedade Protectora dos Animais de Macau – Anima,
mas o interesse vem de trás. Ainda em Moçâmedes, o pai, carpinteiro naval,
levava para casa animais que dessem à costa mal-tratados, aves, pinguins, focas,
cães, por exemplo. “Foi ali que comecei a ter uma relação com os animais”.
Em
Portugal, à excepção de José Resistência Popular e António Ofensiva Popular,
não teve mais animais e o mesmo aconteceu nos primeiros anos de Macau. Foi só
em 2003 que a paixão pelos animais o fez tomar uma atitude, e é quando cria a
Anima, por sugestão de Fátima Galvão, outra das fundadoras. “Era muito difícil
criar uma associação, era preciso fazer os estatutos e os advogados não tinham
tempo. Eu fui gestor outra vez. ‘Quanto é que custa? 20 mil patacas? Primeiro
donativo à Anima: Albano Martins’. Chamei advogados, trabalhámos três meses em
‘inputs’. A 11 de Dezembro de 2003 criámos a associação”.
Depois,
foi gestor outra vez. “Eu disse que, para sermos inteligentes tínhamos de
estender os estatutos a mais 50 pessoas, e fui convidando as personalidades
importantes cá da terra para serem parte. Neto Valente, Chui Sai Cheong, Ambrose
So, Cruz Vermelha de Macau, BNU, CEM, CTM, foram todos fundadores da Anima”,
refere, dizendo que “aceitaram todos”. “Convites do Albano Martins pouca gente
recusava, por uma questão de honestidade”, afirma, frisando: “O que leva muita
gente a apoiar-me é, para além da alguma capacidade que eu tenho, é a questão
da honestidade. Nunca recebi uma pataca sequer da Anima. Pelo contrário, já
doei mais de um milhão de patacas à Anima”.
A batalha do canídromo
‘Fast
forward’ para 2011, ano em que tem início a batalha pelos galgos do
Canídromo de Macau. Albano assume que nunca tinha pensado nos galgos que
corriam na pista, até ao dia em que um antigo veterinário do canil municipal
denunciou a situação: Eram abatidos cerca de 30 cães todos os meses. A Anima investigou
e confirmou as denúncias.
Depois
de várias tentativas, o Governo promoveu uma reunião entre Albano Martins e
Stanley Lei Chi Man, director executivo do Canídromo. “A primeira reunião ia
dando pancadaria”, diz o presidente da Anima, falando do que diz terem sido as
provocações do executivo: “Disse que matavam tantos animais quanto a Anima
matava”. Para Albano, Angela Leong foi “impecável” durante todo o processo de
adopções, que decorreu entre 2018 e 2019.
Inicialmente,
a Anima só queria que o Canídromo entregasse galgos à associação para que estes
pudessem ser adoptados. Mas, mais uma vez, Lei Chi Man complicou e quebrou a
promessa de, em sinal de boa vontade, entregar um galgo à Anima para que fosse
adoptado. “O gajo estava a gozar connosco. Eu mandei uma carta ao Governo: a
partir de agora, eu quero encerrar a pista. Acabou”, lembra agora.
Com
a ajuda das associações de protecção de animais da Austrália e da Irlanda, a
Anima conseguiu que o Canídromo deixasse de importar cães para corridas: “Os
gajos deixaram de receber galgos e nós abrimos a porta para que o Governo
pudesse, com mais facilidade, fechar”. Angela Leong e Albano Martins chegaram
então a acordo para que a Anima pudesse escoar os galgos que estavam dentro do
Canídromo e, entre Setembro de 2018 e Março de 2019, 517 galgos foram
distribuídos por Macau, Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Pelo caminho,
ficou a ideia da criação de um centro internacional de realojamento de galgos.
“O Governo de Macau não teve visão”, lamenta.
As batalhas futuras
Albano,
apesar de querer voltar para Portugal, tem agora novas lutas: continua a querer
um centro internacional de realojamento de animais, que o presidente da Anima
gostava que fosse construído no Alentejo; quer o fim do Matadouro de Macau,
porque “já não há razão nenhuma para haver um matadouro em Macau”; quer o fim
das corridas de cavalos no Jockey Club; quer a licença para um terreno em
Coloane para a segunda fase de construção do abrigo da Anima; e quer cortar
pela raiz as corridas de cães em Portugal. “O PAN já teve conversas comigo
várias vezes e eu acredito que, entre Dezembro e Janeiro, vou começar a
explorar isso em Portugal”, diz.
O
futuro será entre Portugal e Macau. Mais em Portugal do que em Macau. Albano já
está a preparar a saída da Anima e o seu sucessor. “Eu continuo a ser um
gestor, eficiente seria ter um gestor a ‘full-time’ e a Anima vai pagar
um gestor a ‘full-time’”, conta, adiantando que as regras obrigam a que
se procurem candidatos locais, ainda que esteja de olho num candidato
internacional. “Tenho o currículo de uma pessoa que, se viesse, seria uma
maravilha para a Anima. O problema é que não posso pedir ninguém sem passar
pelo filtro local”. Albano não quer dizer de quem se trata, mas avança que se
trata de um inglês “de currículo brilhante”, que esteve ligado a várias
associações de animais no Reino Unido e que está disponível para vir para
Macau.
Por
causa da Anima, a família tem ficado para segundo plano. No pico da crise do
Canídromo não acompanhou a mulher numas férias ao Vietname, esteve a trabalhar,
sem folgas, durante quatro meses seguidos. “Foi mais uma facada aqui no
velhote”, ri-se. “Ela regressou para ir para Portugal e eu tive de lhe dizer
que não podia ir”. “Agora quero voltar, não é viável do ponto de vista familiar”,
lamenta. André Vinagre – Macau in “Ponto Final”
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