Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Macau – Albano Martins, uma história, uma vida

Lutou pela independência de Angola, lutou pela liberdade em Portugal e luta pelo bem-estar dos animais em Macau. Albano Martins tem passado a vida em batalhas das quais não só tem escapado ileso como tem saído vitorioso. Agora, o economista quer voltar para Portugal, para junto da família, mas promete que a luta pelos animais vai continuar, deste e do outro lado do mundo



José Resistência Popular e António Ofensiva Popular. Estes eram os nomes dos dois cães que Albano Martins teve depois do 25 de Abril de 1974, quando vivia em Estremoz. Um dia, José saiu a correr do carro que Albano conduzia e foi atropelado. “Morreu logo ali, eu fiquei chocado”, conta ao Ponto Final. Morreu Resistência Popular e Albano ficou de cama durante um mês. A história ilustra dois dos traços mais vincados da figura: o homem revolucionário e o amor pelos animais.

Os 70 anos de Albano Martins são divididos entre três continentes: Dezoito anos em Angola, 14 anos em Portugal e 38 em Macau. Isto “faz de mim mais chinês do que português”, diz a brincar, para depois corrigir: “Eu sinto-me bem cá, mas não sou cidadão chinês nem quero ser cidadão chinês”.

Albano Martins nasceu em Moçâmedes, no Sul de Angola, e, com um “pá” no final de cada frase, conta que cresceu num meio pobre. O pai trabalhava na Companhia Nacional de Navegação, era mestre de estaleiros e carpinteiro naval, e a mãe ficava em casa a tomar conta dos 11 filhos. Tanto os pais como os avós de Albano Martins já nasceram em Angola. Os bisavós é que foram do Algarve para Angola numa altura em que Portugal pedia às famílias portuguesas que fossem para África para que aquele que ficou conhecido como “Mapa Cor-de-Rosa” se tornasse uma realidade.

Em jovem, aquele que é hoje o director financeiro da Sociedade de Empreendimentos Nam Van não tinha interesse pela economia. Foi para Sá da Bandeira, para a escola comercial, apenas porque queria ir para a universidade. “Eu só teria uma hipótese se quisesse seguir um curso superior, era ser economista”, lembra Albano, que até preferia ter ido para Belas-Artes. O facto de ser bom aluno valeu-lhe um “padrinho rico” que lhe pagou todos os estudos na escola comercial e uma bolsa da Associação Comercial de Luanda para ir estudar para Lisboa, para o Instituto Superior de Economia e Finanças.

A batalha pela independência de Angola

“Saí de Angola em 1967 para a faculdade e, ao fim do segundo ano, fui bebendo um pouco do que se passava e fui percebendo que eu era um grande fascista”, diz, entre risos. “É na faculdade que os olhos se abrem e nessa altura eu tinha uma visão muito fascista da realidade angolana e acabei por ficar com a visão completamente ao contrário”.

Fascista, porquê? Albano Martins diz que, apesar de a sua família ser “muito pobre”, “a população negra ainda vivia pior do que a população branca local”. Assim, em plena guerra colonial, Albano Martins começou, na clandestinidade, a apoiar o MPLA e a integrar-se em células “da chamada esquerda revolucionária”.

Em Lisboa torna-se, então, líder estudantil. Houve até um episódio em que quase fez um antigo Presidente da República, que foi seu professor de Finanças Públicas – e que, mesmo sendo claro de quem se trata, se recusa a nomear – desmaiar depois de uma altercação numa aula. “Ele [Aníbal Cavaco Silva] continuava a dizer que não era político e que não queria ser político e, enquanto toda a gente lutava contra a ditadura, ele dizia que não se queria misturar nesses movimentos. Eu fui mandatado para ser o orador de serviço e, depois de terminada essa trapalhada toda, alguém teve de lhe ir dar um copo de água para o homem não desmaiar”. Mais tarde, o antigo professor e Presidente da República encontrou-o e disse-lhe: “Aprendi muito consigo”. “Eu diria que ele não aprendeu o suficiente”, afirma.

A batalha pelo fim da guerra

“Consegui nunca ser preso”, afirma com orgulho. “Uma vez, no Bairro Alto [em Lisboa], andei a distribuir comunicados com colegas que depois foram presos. Eu não fui, tive sempre a sorte não ter sido preso”, diz. Sorte ou engenho? “Arte”. E completa a história do Bairro Alto: “Eram seis da manhã e passou uma ramona cheia de polícias e prostitutas e o polícia da frente abriu o vidro, virou-se para nós e disse: ‘Vocês têm muita sorte por isto estar cheio, da próxima volta vão para a grelha’. Estávamos em pleno Verão, nós tínhamos casacos enormes e por baixo estávamos cheios de comunicados contra a guerra colonial”.

Foi refratário à guerra e, ainda na faculdade, chegou mesmo a passar soldados para Espanha. “Passei vários soldados nessa altura, íamos alugar carros no aeroporto de Lisboa. Lembro-me de um Ford Carrera onde transportávamos soldados ou capitães que não queriam ir para a guerra, levávamo-los para Espanha”, conta. Uma vez quis ir à Holanda e foi chamado à PIDE: “Lembro-me de eu de pé e o gajo no púlpito a dizer: ‘Você não vai nada à Holanda, você tem de acabar o curso e, se não acabar o curso em cinco anos, vai para a Guiné’. Eu acabei por sair à mesma, na clandestinidade. Saí várias vezes sem nunca ser apanhado”.

Deu-se, então o 25 de Abril. Albano Martins recebe um convite para integrar o Governo de Angola, mas recusou porque o país africano não reconhecia a sua cidadania portuguesa. “Embora eu seja angolano, tenha nascido em Angola, toda a minha família era portuguesa. Eu achava que devia ser angolano e português. Mas eles não aceitavam isso e eu não fui”.



Depois de especializado em macroeconomia, virou-se para a microeconomia e, depois da Revolução de Abril, foi presidente de uma cooperativa de habitação em pré-falência. “Eu meto-me em jogadas de que toda a gente acha que é impossível sair-se vivo”. Mas também da cooperativa saiu vivo “e ninguém ficou falido”.

Em Estremoz, onde casou e teve dois filhos, acabou por ser presidente do conselho directivo de uma escola. Esta era uma “escola-problema”, de filhos de latifundiários alentejanos. “Toda a gente sabia que eu era um indivíduo da esquerda revolucionária”, e foi por isso que foi colocado em Estremoz quando tinha 30 anos. “Nunca mais houve ninguém a entrar com cavalos dentro da sala de aula”, lembra.

Após Estremoz, Macau. Em 1981 decidiu aceitar o convite de amigos seus que estavam no território para integrar o gabinete de estudos do Instituto Emissor de Macau, actual Autoridade Monetária de Macau. O economista explica: “A vida era muito complicada, a vida política que levávamos consumia a maior parte do dinheiro que tínhamos. Eu ganhava quatro mil escudos por mês, pagava a renda, dava de comer à mulher e filhos, mas, com a vida política que tinha, em metade do mês tinha de ir comer para casa do meu sogro”. A mulher, que o incentivou a seguir viagem para Macau, acompanhou-o, juntamente com os dois filhos.

O economista ficou então encarregue de preparar os bancos a operar em Macau para fazer a compra e venda de moeda externa. “Não havia praticamente técnicos em Macau, na altura Macau nem tinha operações de ‘dealing room’, o mercado era fechado”, lembra.

A batalha pelos animais

Albano é, desde 2007, presidente da Sociedade Protectora dos Animais de Macau – Anima, mas o interesse vem de trás. Ainda em Moçâmedes, o pai, carpinteiro naval, levava para casa animais que dessem à costa mal-tratados, aves, pinguins, focas, cães, por exemplo. “Foi ali que comecei a ter uma relação com os animais”.

Em Portugal, à excepção de José Resistência Popular e António Ofensiva Popular, não teve mais animais e o mesmo aconteceu nos primeiros anos de Macau. Foi só em 2003 que a paixão pelos animais o fez tomar uma atitude, e é quando cria a Anima, por sugestão de Fátima Galvão, outra das fundadoras. “Era muito difícil criar uma associação, era preciso fazer os estatutos e os advogados não tinham tempo. Eu fui gestor outra vez. ‘Quanto é que custa? 20 mil patacas? Primeiro donativo à Anima: Albano Martins’. Chamei advogados, trabalhámos três meses em ‘inputs’. A 11 de Dezembro de 2003 criámos a associação”.

Depois, foi gestor outra vez. “Eu disse que, para sermos inteligentes tínhamos de estender os estatutos a mais 50 pessoas, e fui convidando as personalidades importantes cá da terra para serem parte. Neto Valente, Chui Sai Cheong, Ambrose So, Cruz Vermelha de Macau, BNU, CEM, CTM, foram todos fundadores da Anima”, refere, dizendo que “aceitaram todos”. “Convites do Albano Martins pouca gente recusava, por uma questão de honestidade”, afirma, frisando: “O que leva muita gente a apoiar-me é, para além da alguma capacidade que eu tenho, é a questão da honestidade. Nunca recebi uma pataca sequer da Anima. Pelo contrário, já doei mais de um milhão de patacas à Anima”.

A batalha do canídromo

Fast forward’ para 2011, ano em que tem início a batalha pelos galgos do Canídromo de Macau. Albano assume que nunca tinha pensado nos galgos que corriam na pista, até ao dia em que um antigo veterinário do canil municipal denunciou a situação: Eram abatidos cerca de 30 cães todos os meses. A Anima investigou e confirmou as denúncias.

Depois de várias tentativas, o Governo promoveu uma reunião entre Albano Martins e Stanley Lei Chi Man, director executivo do Canídromo. “A primeira reunião ia dando pancadaria”, diz o presidente da Anima, falando do que diz terem sido as provocações do executivo: “Disse que matavam tantos animais quanto a Anima matava”. Para Albano, Angela Leong foi “impecável” durante todo o processo de adopções, que decorreu entre 2018 e 2019.

Inicialmente, a Anima só queria que o Canídromo entregasse galgos à associação para que estes pudessem ser adoptados. Mas, mais uma vez, Lei Chi Man complicou e quebrou a promessa de, em sinal de boa vontade, entregar um galgo à Anima para que fosse adoptado. “O gajo estava a gozar connosco. Eu mandei uma carta ao Governo: a partir de agora, eu quero encerrar a pista. Acabou”, lembra agora.



Com a ajuda das associações de protecção de animais da Austrália e da Irlanda, a Anima conseguiu que o Canídromo deixasse de importar cães para corridas: “Os gajos deixaram de receber galgos e nós abrimos a porta para que o Governo pudesse, com mais facilidade, fechar”. Angela Leong e Albano Martins chegaram então a acordo para que a Anima pudesse escoar os galgos que estavam dentro do Canídromo e, entre Setembro de 2018 e Março de 2019, 517 galgos foram distribuídos por Macau, Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Pelo caminho, ficou a ideia da criação de um centro internacional de realojamento de galgos. “O Governo de Macau não teve visão”, lamenta.

As batalhas futuras

Albano, apesar de querer voltar para Portugal, tem agora novas lutas: continua a querer um centro internacional de realojamento de animais, que o presidente da Anima gostava que fosse construído no Alentejo; quer o fim do Matadouro de Macau, porque “já não há razão nenhuma para haver um matadouro em Macau”; quer o fim das corridas de cavalos no Jockey Club; quer a licença para um terreno em Coloane para a segunda fase de construção do abrigo da Anima; e quer cortar pela raiz as corridas de cães em Portugal. “O PAN já teve conversas comigo várias vezes e eu acredito que, entre Dezembro e Janeiro, vou começar a explorar isso em Portugal”, diz.

O futuro será entre Portugal e Macau. Mais em Portugal do que em Macau. Albano já está a preparar a saída da Anima e o seu sucessor. “Eu continuo a ser um gestor, eficiente seria ter um gestor a ‘full-time’ e a Anima vai pagar um gestor a ‘full-time’”, conta, adiantando que as regras obrigam a que se procurem candidatos locais, ainda que esteja de olho num candidato internacional. “Tenho o currículo de uma pessoa que, se viesse, seria uma maravilha para a Anima. O problema é que não posso pedir ninguém sem passar pelo filtro local”. Albano não quer dizer de quem se trata, mas avança que se trata de um inglês “de currículo brilhante”, que esteve ligado a várias associações de animais no Reino Unido e que está disponível para vir para Macau.

Por causa da Anima, a família tem ficado para segundo plano. No pico da crise do Canídromo não acompanhou a mulher numas férias ao Vietname, esteve a trabalhar, sem folgas, durante quatro meses seguidos. “Foi mais uma facada aqui no velhote”, ri-se. “Ela regressou para ir para Portugal e eu tive de lhe dizer que não podia ir”. “Agora quero voltar, não é viável do ponto de vista familiar”, lamenta. André Vinagre – Macau in “Ponto Final”

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