“Portugal não dá o devido valor à língua portuguesa a
partir do momento em que permite o uso do inglês em sala de aula, que não luta
pela afirmação da quinta língua mais falada no mundo e a partir do momento em
que possui muito mais ferramentas em inglês para acolher os estudantes Erasmus
do que para acolher os estudantes lusófonos”
As
universidades portuguesas não estão preparadas para o actual boom de
alunos estrangeiros oriundos de outros países de língua oficial portuguesa como
é o caso do Brasil e de Timor. O alerta é de Juliana Chatti Iorio, uma investigadora
brasileira a viver em Portugal há 20 anos, e uma das autoras de um artigo
recente sobre as falhas no acolhimento destes estudantes internacionais.
O
trabalho, publicado na Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, resulta
de dois projectos de pesquisa e inclui testemunhos de vários estudantes
oriundos do Timor e do Brasil. Ao todo, foram feitas mais de 50 entrevistas em
profundidade e recolhidas 449 respostas de inquéritos. Em comum, há queixas
sobre a falta de “apoio efectivo e afectivo na chegada ao país”, devido à falta
de sensibilização dos professores para as dificuldades que os alunos enfrentam
e casos em que professores se viram para alunos brasileiros e lhes pedem para
“falar português”.
“Eu
estava usando um termo da psicologia que é usado no Brasil e o professor disse
‘fala em português’. Eu disse que estava falando e ele disse ‘não, isso aí é
brasileiro, fala português correcto'”, é um dos exemplos dados por uma aluna de
24 anos que em 2014 escolheu Portugal como destino de intercâmbio.
“Ainda
há muito a ser feito, como uma maior atenção às dificuldades de brasileiros e
timorenses com o português de Portugal”, lê-se nas conclusões do artigo
académico que Juliana Chatti Iorio assina juntamente com Sílvia Garcia Nogueira
(Universidade Estadual da Paraíba, Brasil).
Resultados não surpreenderam
Em
entrevista à agência Lusa, Juliana Chatti Iorio, que trabalha no Centro de
Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) e Instituto de Geografia e
Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa, disse que não ficou
surpreendida com os resultados. Nota, porém, que não tem queixas sobre o seu
próprio acolhimento anos antes.
“Quando
entrei para o mestrado, em 2003, havia cinco estrangeiros na minha sala. Era
outra realidade. Hoje, há cursos em Portugal que têm mais estudantes
estrangeiros do que portugueses, e eu penso que muitas faculdades ou institutos
não estavam preparadas para isso”, disse.
“Não
me refiro só à logística, mas sobretudo à compreensão das diferentes culturas
que pretendem receber. Se estão abertas para receberem estudantes de diferentes
culturas, os professores, funcionários, enfim, a comunidade docente e discente
tem que estar aberta para conhecer e procurar entender estas diferentes
culturas”, defendeu.
Juliana
Chatti Iorio admite que muita coisa tem sido feita para atrair os estudantes
internacionais.“Algumas [universidades] já têm núcleos de estudantes
internacionais (muitas vezes, núcleos de estudantes brasileiros, africanos,
etc), os departamentos de relações internacionais começam a estar mais
preparados para dar repostas, sobretudo as que tangem às burocracias exigidas
aos estudantes que vêm de outros países”, reconheceu.
Mas
a investigadora diz que falta trabalho ao nível das relações humanas. “Devido
mesmo ao choque de culturas, acaba por ser um problema, uma vez que muitos
funcionários e professores não conhecem a cultura desses alunos e muitos desses
alunos também não conhecem a cultura em Portugal”, defendeu.
“Portugal não dá o devido valor à língua”
No
artigo lê-se ainda que “a não-aceitação da língua portuguesa falada e escrita
por esses estudantes, bem como os casos de discriminação sofridos em sala de
aula por parte de alguns professores, evidenciou que ainda muito trabalho
deverá ser feito para desconstruir a representação de que o português é imune
ao racismo e possui uma predisposição para o convívio com outros povos e
culturas”.
A
investigadora explica que, à chegada, os alunos brasileiros depararam-se com algumas
dificuldades que não estavam à espera, nomeadamente ao nível da compreensão do
português. “Muitas vezes, os próprios professores não aceitam a língua
portuguesa falada e escrita no Brasil, discriminando mesmo o seu uso em sala de
aula e não permitindo o uso de livros cuja tradução seja feita no Brasil”,
disse.
Nesse
sentido, prosseguiu, “a discriminação é notada quando um professor se vira para
um aluno brasileiro e diz, por exemplo, ‘fala português!’”. “Portugal não dá o
devido valor à língua portuguesa a partir do momento em que permite o uso do
inglês em sala de aula, que não luta pela afirmação da quinta língua mais
falada no mundo e a partir do momento em que possui muito mais ferramentas em
inglês para acolher os estudantes Erasmus do que para acolher os estudantes
lusófonos”, considerou.
E,
acrescentou, “ainda age como se fosse a “metrópole” a ditar as regras do uso da
língua portuguesa às suas “colónias”, quando inferioriza a maneira como a
língua portuguesa é utilizada pelos outros países lusófonos”. In “Diário
do Centro do Mundo“ – Brasil com “Público”
Sem comentários:
Enviar um comentário