Obra
reconstitui trajetória do vate espanhol em périplo poético que soa como uma
conversa íntima com o espírito do poeta
I
Uma ode formada por versos inspirados na vida e na obra do poeta espanhol Federico García Lorca (1898-1936) é o que o leitor irá encontrar no livro mais recente da dramaturga, poeta e ensaísta portuguesa Maria Estela Guedes, que acaba de sair pela Editora Urutau, estabelecida no Barreiro, em Setúbal, do lado de lá do rio Tejo, em Portugal, e em Cotia, no Estado de São Paulo, no Brasil. Com capa que reproduz desenho do próprio poeta, a obra Conversas com Federico García Lorca traz 107 poemas que procuram reconstituir a breve e fulgurante trajetória do vate que seria interrompida com o seu fuzilamento por hordas direitistas comandadas pelo general Francisco Franco (1892-1975).
Lenda
em vida, e ainda longe da idade madura, Lorca já era à época um ícone daquela
que, mais tarde, viria a ser definida como a geração de 27, que incluía, entre
outros, Pedro Salinas (1891-1951), Jorge Guillén (1893-1984), Rafael Alberti
(1902-1999), Vicente Aleixandre (1898-1984) e Luis Cernuda (1902-1963), ainda
que não constituísse um grupo movido por qualquer motivação histórica ou
influxo literário ou mesmo por um líder.
Como
se sabe, toda a obra de Lorca, que inclui Romanceiro Gitano e Bodas de
Sangue, Pranto por Ignacio Sánchez Mejías e Seis Poemas Galegos, entre
outros textos poéticos, está profundamente enraizada na cultura popular
espanhola. Nascido em Fuente Vaqueros, província de Granada, na região da Andaluzia,
ao Sul da Espanha, ainda bem jovem, desde logo se mostrou contra aquelas ideias
que defendiam a opressão promovida pelas classes privilegiadas.
Esteticamente,
sempre se mostrou moderno, a partir de sua estada no centro cultural Residencia
de Estudiantes, em Madrid, em 1919, quando compartiu sua amizade com o
poeta Juan Ramón Jiménez (1881-1957), que viria a se destacar na oposição ao
regime franquista e ganharia em 1956 o Prêmio Nobel de Literatura. Às expensas
do pai, grande proprietário rural de ideias liberais, viveria por uma década em
Madrid, sem deixar a Residencia de Estudiantes, onde se destacou também
por seus dotes de orador.
A
esse tempo, teria deixado de lado certa eloquência sentimental e piegas,
adotando um estilo eivado por metáforas ultraístas, provavelmente influenciado
também pelo pintor Salvador Dalí (1904-1989), outro frequentador daquela
hospedaria de estudantes. Como se sabe, o ultraísmo constituía uma vanguarda
poética que procurava sintetizar todas as tendências da vanguarda mundial com o
mesmo desejo de ruptura e de impacto.
II
Em
1928, publicou Romanceiro Gitano, seu trabalho de maior sucesso. Nos
anos seguintes, passaria a ser conhecido como renovador do drama com a
publicação de Mariana Pineda (1928), Bodas de Sangue (1933), Yerma
(1934) e A Casa de Bernarda Alba (1933-1936). Inquieto, em 1929,
viajou para Nova York, seduzido pela leitura das obras dos poetas norte-americanos
Walt Whitman (1819-1892) e T. S. Eliot (1888-1965). Lá, permaneceu na Universidade de Columbia, de
1929 a 1930, época em que escreveu poemas surrealistas, que seriam reunidos em Poeta
em Nova York (1940). Em abril de 1931, retornou a Espanha, entusiasmado com
a Segunda República Espanhola, quando criou o movimento teatral La Barraca.
A
essa época, fez uma travessia pelo Atlântico, com três escalas no Brasil: as duas primeiras aconteceram em outubro de
1933 a bordo do navio Conte Grande, que o levaria a Montevidéu e aportou
a 9 daquele mês no Rio de Janeiro e, dois dias depois, em Santos, onde, tomando
água de coco e comendo abacates, perdeu o navio que seguiria para Buenos Aires,
depois de passar um dia inteiro na companhia do jornalista Francisco de
Azevedo, o Azevedinho, à época repórter do jornal local O Diário.
No
Rio de Janeiro, Lorca fora recebido por Alfonso Reyes (1889-1959), poeta norte-americano
que foi o embaixador do México no Brasil de 1930 a 1935. Segundo o biógrafo Ian
Gibson, Reyes acompanhou-o em uma turnê pela cidade. A derradeira e fugaz estadia
de Lorca no Brasil teve lugar em 30 de março de 1934 no Rio de Janeiro, durante
a parada do Conte Biancamano, que zarpara de Buenos Aires e o levaria de
volta a Barcelona. Acusado de homossexual e odiado por seu entusiasmo pela
república, seria fuzilado a 19 de agosto de 1936 e seu corpo enterrado numa
fossa comum, que até hoje não teria sido localizada.
III
Essa vida breve, mas intensa, está perpassada em
cada poema e até em cada verso que Maria Estela Guedes reuniu neste livro, que
começou em Nova York com seis peças poéticas que foram publicadas no caderno Risco
da Terra (Lisboa, Apenas Livros, 2011), enquanto os demais, escritos e reescritos
em Portugal, Pontevedra, Madrid e Granada, são inéditos, como se lê em nota
aposta à abertura da obra. São composições poéticas líricas de enredo elevado que
mais se assemelham a conversações com o possível espírito do poeta que ainda
estaria vagando pelo planeta, como se pode constatar em “Café Moderno”:
(...) E eu sinto o teu cheiro,
Federico. / Usavas perfume discreto / Fumavas cigarrilha elegante / Os sapatos
sempre engraxados / Luzindo como a caneta de tinta permanente. (...) Mas foi
aqui / Na Praza de San Xosé / Ainda não tinha sido postada / Ao centro / A
tertúlia em bronze dos / Intelectuais e artistas do teu orbe / Foi aqui, no
Café Moderno, aberto / Em Pontevedra em 1903 / Que redigiste algum do teu
moderno / “Poeta en Nueva
York”.
Já no poema “Senti”, em que se percebe a ondulação
assimétrica peculiar ao ritmo, a poeta procura reconstituir o que podem ter
sido os últimos dias de García Lorca, ao se referir à visita que fez ao Hotel
Reina Cristina, em Granada, antiga casa da família Rosales, seus amigos. Na
lateral daquele prédio, o poeta teria sido detido e fuzilado dois dias depois, em
meio ao massacre de Viznar, promovido pelas hordas fascistas fantasiadas de
tropas pelo general Franco:
(...)Tu ou Nossa Senhora das
Angústias / Que também me seguia / Ambos me levaram pela mão à Casa Rosales /
Em cujo átrio, hoje Hotel Reina Cristina, / Um mono de papelão em tamanho
natural / Finge que és tu / De branco vestido, ao corrimão encostado, / A fazer
guarda de honra à máquina de escrever (...)
O diálogo com o espírito do poeta prossegue mais
adiante:
(...) O empregado, de casaco
branco, guardanapo no braço, / entendeu e então contou, contou, contou. /
Contou que fora ali, à saída da Casa Rosales, / na Calle Angullo, que foras
detido. / Caminhaste pela rua à frente dos fuzis até ao Jardim / Botânico, dobraste
o / belo edifício, hoje Faculdade de Direito, e à frente dos fuzis / entraste
no que então era o Gobierno Civil. / A partir daí, Federico, / Diz-se, /
Conta-se, / Há mais convicções do que provas, / Mas sem elas, as provas, / Sem
corpo ao qual dar solene sepultura, És um / Desaparecido (...).]
Já no poema “Sejamos claros”, a poeta dá a impressão
de que procura deixar o espírito de Lorca informado sobre que ocorre no Brasil no
começo da década de 20 deste século XXI
em que negros e indígenas que, ao lado dos ciganos, sempre foram defendidos
pelo poeta, continuam a sofrer a vilania da opressão:
(...) Voltamos, Federico, a
sofrer por aqui / Neste pequeno mundo esférico / Ideias fascistas, retrógradas,
virulentas / Que até a Terra achataram / Garantindo que é plana. / Além de fascismo
e nazismo / Fala-se de negacionismo: além da esfericidade / Nega-se a lei dos
graves, o valor da vacina / E o da vida humana. / Erige-se (...) como valor –
imagina! – a supremacia branca / Sobre os que amamos tanto: negros, gitanos,
índios, / enfim, / A nós mesmos,
latinos. (...)
Por fim, em “Os nossos lugares”, o diálogo torna-se
ainda mais íntimo. E, como se pode constatar, o tempo presente é predominante,
ainda que o tempo referido seja o passado, o que constitui uma característica
marcante de toda a poesia lírica de alta qualidade:
(...) Fala mais alto, que não te
entendo... / Ah, sim, compreendi: / Não preciso ir a todos os teus lugares /
Porque estiveste tu em todos os meus... (...).
IV
Maria Estela Guedes (1947), licenciada em Literatura
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1978, é membro da
Associação Internacional de Críticos Literários (AICL), da Associação
Portuguesa de Escritores (APE) e da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). É editora
do site Triplov (www.triplov.com), um dos mais significativos de divulgação
das literaturas de expressão portuguesa. Nasceu em Britiande, no Lamego, onde
mora hoje, mas viveu na Guiné Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo
que coincidiu também com o de sua formação pessoal. Reuniu seus poemas
evocativos dessa época e de uma Guiné-Bissau que já não existe no livro Chão
de Papel (Lisboa, Apenas Livros, 2009).
Tem vastíssima obra publicada de livros de e sobre poesia em que se destacam: Herberto Helder, poeta obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979), SO2 (Lisboa, Guimarães Editores, 1980), Eco, pedras rolantes (Lisboa, Ler Editora, 1983), Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985), À sombra do Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores, 1990), a_maar_gato (Lisboa, Editorial Minerva, 2005), Lápis de Carvão (Lisboa, Apenas Livros, 2005), Ofício das Trevas, teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), A Boba – monólogo em três insónias e um despertador (Lisboa, Apenas Livros, 2006), À la Carbonara, em co-autoria com J.C.Cabanel e Silvio Luis Benítez Lopes (Lisboa, Apenas Livros, 2007), Poesia na Óptica da Óptica (Lisboa, Apenas Livros, 2008); A obra ao rubro de Heberto Helder (São Paulo, Escrituras, 2010); Clitóris Clítoris (Cotia-SP, Editora Urutau, 2019); Esta noite dormimos em Tânger (Cotia-SP, Editora Urutau, 2020); e Númeras letras (ARC Edições, 2021), entre outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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Conversas
com Federico García Lorca, de Maria Estela Guedes. Barreiro, Setúbal,
Portugal; Cotia, São Paulo, Brasil, Editora Urutau, 110 páginas, R$ 45,00, 2022.
Site: www.editoraurutau.com E-mail:
info@editoraurutau.pt
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015) e Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
LetraSelvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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