É
como se pode definir “A Pele do Soldado”, terceira experiência de Helio Brasil
no gênero
I
Um romance histórico que tem como pano de fundo a Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado ocorrido na América Latina, mas que não toma partido nem exalta possíveis feitos heroicos ou extraordinários, limitando-se a reconstituir personagens anônimos, sentimentos e fatos provocados por desejo, ódio e amor. Tudo isso é o que o leitor irá encontrar em A Pele do Soldado (Rio de Janeiro, Editora Mauad X, 2022), o mais recente livro do arquiteto e professor universitário Helio Brasil (1931), dono de uma obra literária que começou a ser publicada tarde, quando o autor já tinha 64 anos, mas que começa a se tornar vasta e significativa, seguindo um caminho semelhante ao do memorialista mineiro Pedro Nava (1903-1984), que começou a publicar quando já estava com 69 anos, e da poeta goiana Cora Coralina (1889-1985), que estreou em livro aos 65 anos.
Como
bem observa o professor, escritor e editor Gustavo Barbosa no prefácio que
escreveu para esta obra, o que leva à guerra o principal protagonista desta
trama não é o patriotismo, e sim o sentimento de humanidade, fraternidade e
respeito por um amigo de infância, o Chico Preto, ainda que ele mesmo venha a
se questionar sobre os seus reais motivos. Esse é o drama do protagonista
Alberto, que passara a sua meninice numa fazenda em Morro Brilhante, em meio a
brincadeiras com meninos brancos e negros, estes os filhos dos escravos que
sofriam o trabalho forçado na propriedade.
Alberto
é filho do rico Gonçalo Francisco de Aires Rodrigues, o major Gonçalo, da
Guarda Nacional, dono daquelas terras, águas e florestas na província
fluminense, homem de costumes
conservadores, que se agastava com a tibieza do imperador diante das pressões
em favor da liberdade dos escravos. E que entendia que para a guerra só deveriam
ir os filhos daquela população faminta, desarvorada, pois, como dizia, “para
esses, a batalha, desde que haja comida e algum soldo, será um mal menor!”
Já
para os seus filhos, Gonçalinho, o morgado, e Alberto, previa tudo de bom e do
melhor, como estudos no Rio de Janeiro e o casamento com a filha de algum
grande fazendeiro, como o médico francês Jean-Jacques Pauchet, seu vizinho, pai
de Isabel Maria, disputada por ambos. Alberto haveria de ir para a capital do
Império estudar Direito, mas o seu o futuro seria imprevisível: ao decidir ir
para a guerra, “onde ficava o inferno”, acabaria ferido.
Obviamente,
não se vai aqui contar o enredo e muito menos o seu desfecho, que cabe ao
leitor desvendar. Mas não se pode deixar de assinalar que a mulher do major
Gonçalo, Maria do Rosário, surpreendia por sua perspicácia em saber lidar com a
rudeza do marido. Mulher inteligente, criaria uma escola para os jovens que
trabalhavam na fazenda de Morro Brilhante, o que incluía o adolescente Chico
Preto, que aprenderia a ler com facilidade.
II
Em
todo o texto, o que se destaca é a maturidade estilística do escritor, que
demonstra amplo domínio das técnicas narrativas. Como observa no posfácio o
professor Ivan Cavalcanti Proença, doutor em Literatura pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor da Academia Carioca de Letras, são
surpreendentes as imagens sensoriais e os jogos sinestésicos intensos que
percorrem a narrativa. “Não faltam recursos estilísticos, como a zeugma
retórica”, assinala Proença, chamando a atenção para esta frase: “(...) saíam
com bolsos vazios e almas revoltadas”. O professor também destaca o recurso ao monólogo
interior que se constata em algumas passagens.
Já
o crítico e ensaísta André Seffrin, autor do texto de apresentação, ao observar
que Helio Brasil tem muito daqueles melhores narradores brasileiros do século
XIX, ressalta que, por vezes, o romancista se permite “algumas licenças, como a
de atuar como se escrevesse mesmo há um século e meio atrás, tal o seu quase
descompromisso com as pautas atuais”. Para Seffrin, o romance A Pele do
Soldado trata-se de “um livro de serenas provocações até no que tem de mais
crispado”.
Enfim,
o leitor só terá a ganhar se vier a conhecer este romance de atmosfera onírica,
em meio a um clima de quase pesadelo provocado pelo horror que emanaria daquela
guerra absurda, em que os pelotões de infantaria brasileiros acabariam por
ficar sem munição e teriam de enfrentar corpo a corpo a baioneta os paraguaios,
“garotos miúdos e ágeis, (que) não fugiam àquelas lutas”.
III
Helio
Brasil Corrêa da Silva, formado em 1955 em Arquitetura pela Faculdade Nacional
de Arquitetura da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), trabalhou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE),
atual BNDES, de 1955 a 1984, tendo supervisionado o projeto de construção da nova
sede da entidade, inaugurada em 1982. Projetou em equipe edifícios
residenciais, comerciais e industriais no Rio de Janeiro e em outros Estados.
Lecionou durante 20 anos a disciplina Projeto de Arquitetura na Universidade
Santa Úrsula e foi professor-visitante na UFRJ e na Universidade Federal
Fluminense (UFF).
Depois
que se aposentou, passou a se dedicar à literatura, tornando-se um dos mais
importantes ficcionistas da atualidade. Dedica-se à escrita ficcional desde
1958, tendo obtido menções em concursos de contos. Frequentou a Oficina do
Livro, cujo diretor é o professor e escritor Ivan Cavalcanti Proença, que foi
editor da Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, na década de
1980.
Fez
sua estreia tardia com O Anjo de Bronze e Outros Contos (Oficina dos
Livros, 1995). Depois publicou os romances A
Última Adolescência (Bom Texto, 2004) e Ladeira
do Tempo-Foi (Synergia Editora, 2017), ambientados no tradicional bairro de
São Cristóvão, no Rio de Janeiro, retornando ao gênero do conto em 2018 com O Perfume que Roubam de Ti... e Outras
Histórias (Synergia Editora), título assumidamente inspirado nos versos da
famosa canção “As rosas não falam”, do compositor carioca Angenor de Oliveira,
o Cartola (1908-1980).
Nas áreas de História e de Arquitetura,
como memorialista, publicou ainda o excelente São Cristóvão: Memória e Esperança
(Prefeitura do Rio de Janeiro/Relume-Dumará, Coleção Cantos do Rio, 2004), O
Solar da Fazenda do Rochedo e Cataguases (2010), em colaboração com José
Rezende Reis; e Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos
450 anos do Rio de Janeiro (Editora Pébola, 2015), em parceria com o historiador
e arquiteto com Nireu Cavalcanti, ex-diretor da Escola de Arquitetura da UFF.
Como novelista, publicou
Pentagrama Acidental (Editora
Ponteiro, 2014). Participou também das coletâneas de contos Doze Autores e Suas Histórias (2003); A Marquesa de Santos (2004); Tempos de Nassau (2005); Ásperos e Macios (2010); e O Feitiço do Boêmio (2010), em comemoração
aos 100 anos do compositor e sambista Noel Rosa (1910-1937), publicadas pela
Editora Bom Texto; e O Rei, o Rio e Suas Histórias
(2013), publicada pela Editora 7 Letras.
Em
2016, publicou Cadernos (Quase) Esquecidos (Sarau do Beco), crônicas
autobiográficas em edição artesanal, e, em 2019, Delírios, poesias
(edição de autor). É ainda artista plástico, sendo o responsável pelo guache
que ilustra a capa de Delírios. São também suas as ilustrações que constam do livro Crônicas
Históricas do Rio Colonial (Civilização Brasileira, 2004), de Nireu
Cavalcanti. Adelto Gonçalves - Brasil
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A Pele do
Soldado, de Helio Brasil, com prefácio de Gustavo Barbosa, posfácio
de Ivan Cavalcanti Proença e texto de apresentação de André Seffrin. Rio de
Janeiro: Editora Mauad X, 128 páginas, R$ 49,00, 2022. Site: www.mauad.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015) e Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem,
2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São
Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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