A
natureza humana e o diálogo das emoções internas, relacionados com a vida
social e experiência pessoal, são os temas que inquietam os dois autores de
Macau, Lawrence Lei e Cheong Kin Han, na sua criação literária. Os escritores
procuram examinar isso mesmo nos seus romances lançados recentemente. A
apresentação das suas obras, “Rostos Mascarados” e “Ying”,
respectivamente, foi a abertura dos painéis da presente edição do Rota das
Letras – Festival Literário.
Apesar
de o contexto das histórias contadas ser muito diferente, os dois romances, que
foram distinguidos na 13.ª edição dos Prémios Literários de Macau, destacam
igualmente a revelação de complexidade da emoção, quer interpessoal quer
interna, do ser humano. A narrativa de “Rostos Mascarados”, de Lawrence
Lei, adoptou o cenário do tempo actual do surto epidémico da Covid-19, e usou
duas intrigas e o género literário de meta-ficção, de forma a criar uma
história ao mesmo tempo realista e absurda.
O
escritor Lawrence Lei explicou que o conceito original é descrever como actua a
natureza humana sob mudanças sociais e a nível das relações pessoais provocadas
pela pandemia. O conto começa com “um dia as pessoas acordam e descobrem que o
mundo mudou drasticamente, todas as pessoas só podem expor metade do seu
rosto”. A protagonista, uma médica responsável pelo combate à pandemia e por
rastrear os infectados e os casos de contactos próximos, iniciou a sua
investigação pela necessidade de trabalho.
A
médica, enquanto exerce as suas funções, é apaixonada pela literatura, e
decidiu escrever uma ficção sobre um realizador de cinema que vinha a Macau
para escapar da epidemia. Na outra parte do enredo, este realizador de renome
internacional está a imaginar o seu próximo filme, com a protagonista médica,
que persiste no seu cargo durante a pandemia.
“O
livro é como uma peça dentro da outra peça, uma médica e um realizador. Afinal,
quem é o criador da história do outro?” questionou o autor, deixando os
leitores a procurar a resposta.
A
narrativa “Rostos Mascarados” fala ainda do afecto e da traição, entre
diversas relações, incluindo o casamento. No romance, a médica acabou por ter
de investigar uma amiga próxima, que tem contacto próximo com um infectado,
ficando a conhecer de forma abrangente a vida da amiga e descobrindo assim
muitos segredos relacionados com ela, com o seu próprio marido e outros membros
da família.
“A
médica acredita muito na sua amiga e no seu marido, mas, devido à pandemia,
descobriu que o afecto entre amigos e entre o casal não é como imaginava”,
destacou Lawrence Lei, que prosseguiu dizendo que “muitas coisas não podem ser
inspeccionadas, nem verificadas com uma lupa, incluindo a amizade e o amor da
família, há muitos defeitos ali se usarmos uma lupa para vê-los com cuidado e
em pormenor”.
Na
perspectiva de Lawrence Lei, a ligação entre pessoas mais concreta e importante
é nada mais do que a emoção e o afecto, da amizade, do amor familiar e do amor
romântico. O autor pretende realçar no romance que a protagonista mostra um
certo nível de “mentir a si própria”, “narcisismo”, e “excesso de confiança”
relativamente às pessoas mais próximas e, apenas por causa da necessidade
profissional, se apercebeu da proximidade de traição.
Sendo
uma “meta-ficção”, o romance de Lawrence Lei conta, além da descrição de
realidade, com elementos dramáticos de comédia, tragédia e absurdo, dado que o
futuro da situação epidémica ainda não está claro.
No
processo de criação de obra, Lawrence Lei fez várias visitas a profissionais
médicos, a instalações de prevenção epidémica, até entrevistas com pacientes e
quem se encontrava em observação médica, de modo a recolher informações
relevantes. “A pesquisa de informação sobre o contexto é muito importante,
especialmente porque escrevo algo que envolve conhecimento profissional, o que
não posso inventar”, afirmou.
Olhar de mãe
Já
no romance “Ying”, a autora Cheong Kin Han escolheu relatar a
experiência de uma mulher relativamente à interrupção involuntária da gravidez,
com destaque para a transformação da emoção de uma mãe nos dias após o
incidente.
“Isso
também me aconteceu a mim uma vez em 2019. Tomei conhecimento depois de que o
aborto espontâneo não é uma coisa tão rara entre mulheres. Mas uma vez que
aconteça, ninguém vai falar sobre isso, até as amigas mais próximas e famílias,
todas as pessoas têm cautela com os seus sentimentos, observam os seus
comportamentos, o estado físico e psicológico, mas não mencionam uma palavra
disso”, disse a escritora.
Cheong
Kin Han, apesar da tristeza, encontrava-se num “estado especial e estranho” de
sentimento pessoal e, um dia, surgiu-lhe a ideia de “escrever um romance”,
mesmo que nunca tenha lançado nenhum.
A escrita,
portanto, tornou-se também um meio para a autora expressar e libertar as suas
emoções. “Nessa altura não tinha maneira a exportar o que eu pensava, mas não
suportava engolir assim a experiência. O motivo de escrever é afastar o
incidente com o papel da autora e organizar a minha mente”, asseverou,
considerando que superar o trauma da interrupção involuntária da gravidez é
também uma responsabilidade sua, enquanto mulher e a mãe de uma filha.
A
escritora admitiu ser uma pessoa tímida e fraca no contacto social, pelo que
presta particular atenção e está interessada em tomas como a motivação e os
percursos psicológicos dos seres humanos.
Com
o romance que conta a experiência física e mental de uma mulher durante três
dias no hospital, Cheong Kin Han quer mostrar uma “vista interna” de uma mãe,
quando não é apenas um papel na família, mas ligada ao espírito e físico.
Outra
discussão lançada é como a sociedade vê as mulheres. “Por exemplo, quando se
vai ao ginecologista, podem sentir indiferença e serem tratadas como apenas um
corpo. E, num estado frágil, até uma frase ou um programa na televisão pode ter
impacto nas mulheres em termos físico e psicológico”, salientou.
“Ying”,
cuja tradução literal é “feminino”, relata a história de uma mulher que deu à
luz uma filha há três ano e sofreu um aborto espontâneo na 11.ª semana de
gravidez. “Em média, 10% dos fetos não sobrevivem ao primeiro trimestre. […]
Nascimento e morte são frequentes, qual é o sentido real disso? Qual é o
propósito de Deus?”, pergunta-se na narrativa.
No
entanto, Cheong Kin Han referiu que teve receio e uma certa dificuldade em
realizar a presente obra, uma vez que é a sua primeira vez a escrever um
romance de 80 mil palavras em chinês. A autora dedica-se à escrita como
colunista de jornais há 16 anos, mas disse ser uma coincidência de ver a
publicidade do concurso do prémio literário no final de 2019, após a
interrupção involuntária da gravidez. Apesar de tudo, com uma curta
auto-aprendizagem, Cheong Kin Han concluiu uma obra de 20 capítulos com a sua experiência
mais pessoal e real.
“Escrever
ou não, e como escrever, é um assunto pessoal e não tem a ver com outros. Esta
é a parte mais solitária, mais egoísta e, portanto, mais libertadora da
criação. As emoções e pensamentos são subtis e complexos, onde para
expressá-los? Somente a expressão da cultura e da arte pode conter as sombras
da vida”, concluiu a escritora acerca da realização de “Ying”. Catarina
Chan – Macau in “Ponto Final”
A vida como um teatro
Este
primeiro painel do Rota das Letras – Festival Literário de Macau contou ainda
com a apresentação do dramaturgo local Wong Teng Chi sobre a sua mais recente
publicação: “Apposite Performance – A Collection of Plays by Wong Ting Chi”. A
obra inclui três guiões – “Go away and I don’t play with You”, “Sunset is How I
Feel About You” e “Mr.Time and His Lover”, que o dramaturgo criou desde 2009 em
Taiwan e Macau, ao explorar temas como identidade pessoal, questão de género e
observância social, bem como um conto “Macau Three Days Two Nights Air Tickets
and Hotel”. Sobre “Apposite Performance”, Wong Ting Chi explicou que está
relacionado com a decência com que as pessoas se comportam na vida quotidiana,
“o que é também como uma representação no palco de teatro”. O dramaturgo
considera que, para algumas pessoas, a vida é semelhante ao teatro, onde actuam
mais e melhor para ganhar mais retorno. “É apenas para seguir a expectativa da
sociedade?”, perguntou o artista, sublinhando que pretende “investigar” a
complexidade da emoção expressa ou escondida. Relativamente a “Macau Three Days
Two Nights Air Tickets and Hotel”, que é sobre uma viagem em Macau de uma
turista de Taiwan em 2009, Wong Ting Chi realçou que quer dar ênfase à
diversidade da cidade numa altura em que conviviam diferentes grupos de pessoas
“de macaenses, de portugueses, de chineses, de filipinos, e de diferentes
profissões”.
Sem comentários:
Enviar um comentário