“Câmara
Escuro” reúne 65 peças que reafirmam a maturidade poética do autor
I
Depois
de alguns anos sem publicar livros de poesia, Moacir Amâncio reaparece com Câmara
Escuro (São Paulo, Editora Hedra, 2022), que reúne 65 poemas que reafirmam
a sua maturidade poética e mostram que, “às vezes, precisamos baixar os olhos
para ver, e de pequenos deslocamentos para achar um outro modo de estar onde
estamos”, como observa Roberto Zular, professor de Teoria Literária e
Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), no texto de capa que escreveu para
este livro. E acrescenta: “Um livro que, enfim, faz das sombras um mote para
redimensionar o caminho da iluminação”.
De
fato, o leitor não vai encontrar aqui poemas que possam servir de exemplo perfeito
para o conceito estabelecido pelo professor Massaud Moisés (1928-2018) segundo
o qual a poesia é a expressão do “eu” por meio de metáforas, como aquela famosa
frase de Fernando Pessoa (1888-1935) em que o poeta contempla o silêncio
feminino e nele descortina uma nau: “o teu silêncio é uma nau com todas as
velas pandas”. Nestes poemas curtos, que
não se confundem com haicais, a metáfora literária tem objetivo estético,
procurando reproduzir beleza ou emoção estética.
Ou
seja, as palavras procuram reproduzir, através de uma figura de linguagem,
fenômenos provocados por uma condição neurológica, estabelecendo uma
experiência sinestésica, que se dá por via sensorial ou cognitiva.
II
É
o caso do poema “Câmara escuro” que dá título ao livro e serve também para
definir a obra:
na produção / de cores / a / falha
/ do cristal
Como
se lê no texto de apresentação do livro, o poema remete a um espaço de
ressonância, onde o ritmo das frases revela o mundo através de suas frestas,
ângulos e arestas. Mais: “os sons, as imagens, memórias e sensações reverberam
na câmara de ecos. A palavra e a imagem, o escuro e o claro, a presença e a
ausência se entretecem como se fossem projetadas umas pelas outras”.
Entre
os poemas, destaca-se aquele que leva por título o nome da poetisa israelense
Shin Shifra (1931-2012), notável tradutora de obras no Antigo Oriente Próximo,
que teve também seus poemas traduzidos para vários idiomas. Este é o poema em
homenagem à poetisa:
aquelas frases / se estendem / leve
sopro / na seda / vem de longe / oflux / pela areia / o escrito cílios
São
poemas captam instantes poéticos, atuando as palavras como instrumentos para
fazer o leitor ver e sentir sensações. Como se pode comprovar em “Descrever”:
descrever uma sombra / compõe
quadros – / espaço que se fecha / em andamento / a sombra não provém / da luz
mas / de si mesma / emana escurecendo
Entre
tantos poemas breves, um deles, “Corvo na pele”, diferencia-se pelo tamanho,
com 11 estrofes, que ocupam cinco páginas. Eis a última estrofe:
a costura, fagulha, não nunca / o
prender mas corrente uma gralha / permanente por veste um adorno / a palavra
tornada matéria / pela mão em seu transe desponta / a minúcia revela o que
nunca / ao teu olho se expor deveria / porta aberta não fecha jamais
Enfim,
como diz o professor Roberto Zular, trata-se de “um livro em tempos sombrios
que faz das sombras um mote para redimensionar o caminho da iluminação”. E que,
portanto, merece ser lido por todo aquele leitor que preza a boa poesia.
III
Moacir
Amâncio (1949), nascido, como reivindica, “pela simples verdade dos fatos”, em
Pinhal-SP (era o nome da cidade que em novembro de 1974 retomaria o nome de
Espírito Santo do Pinhal), também romancista, contista e professor de
Literatura Hebraica na FFLCH/USP, estreou na literatura com a novela O Saco
Plástico (1974), que foi seguida pela prosa fragmentária de Estação dos
Confundidos (1977). Jornalista, passou a maior parte de sua vida profissional
nas redações dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Gazeta
Mercantil e O Globo e das revistas Visão e Shalom. Foi correspondente de O
Estado de S. Paulo em Israel. Também publicou estudos sobre ficção e poesia,
artigos e reportagens em jornais e revistas.
Publicou
os livros de contos O Riso do Dragão (1981) e Súcia de Mafagafos (1982). A
partir de 1993, rendeu-se de vez à poesia com o livro Do Objeto Útil, que lhe
valeu o Prêmio Jabuti do ano seguinte. Em Figuras na Sala (1996), fez uma
homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro
do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de
Melo Neto (1920-1999).
Em 1997,
publicou um livro de reportagens e artigos, Os Bons Samaritanos e Outros Filhos
de Israel. Logo voltou à poesia com O Olho do Canário (1998). Em 1999, deu à
luz Colores Siguientes em que reuniu poemas escritos em castelhano. É o livro
que marca o início de uma série de peregrinações poliglotas, que vão atingir o
seu auge com Abrolhos (2007) em que várias composições estão escritas em
hebraico. Publicou ainda o livro de poemas Kelipat Batsal (Book Link, 2005),
que também foi impresso em ousada edição da antiga e histórica revista de
literatura e arte Et Cetera, nº 5, de Curitiba, textos que também viriam a
fazer parte de Abrolhos em Ata (Record, 2007).
Em Ata,
estão reunidos oito livros de poemas publicados e inéditos. Publicou também
Yona e o Andrógino — Notas Sobre Poesia e Cabala (Nankin/Edusp, 2010), que
aborda a obra da poeta israelense Yona Wollach (1944-1985), além de uma
antologia de poemas do israelense Ronny Someck, intitulada Carta a Fernando
Pessoa (Annablume, 2015).
Depois,
em Contar a Romã (Editora Globo, 2001) prestou homenagem ao idioma de Miguel de
Cervantes (1547-1616). Ainda em 2001, publicou sua tese de doutoramento, Dois
Palhaços e uma Alcachofra — Uma Leitura do Romance ‘A Ressurreição de Adam
Stein’ de Yoram Kaniuk (Nankin), na qual discute as diferentes formas de se ver
o Holocausto em estudo sobre a obra do escritor israelense Yoram Kaniuk
(1930-2013).
Selecionou,
traduziu, organizou e apresentou o volume de poemas Terra e Paz, do poeta
israelense Yehuda Amichai (1924-2010), publicada pela Bazar do Tempo em 2018, e
Badenheim (2012), livro de Aharon Appelfeld (1932-2018), e participou da
tradução dos poemas da poetisa israelense Tal Nitzán, incluídos no livro O
Ponto da Ternura (2013). É autor ainda de O Talmud, tradução de trechos e
estudos (1995), e organizador de Ato de Presença: Hineni (2005), coletânea de
ensaios em homenagem à professora Jaffa Rifka Berezin, da FFLCH/USP, falecida
em 2020. Em 2016, publicou Matula (Annablume), seu sétimo volume de
poesia.
Uma série
de poemas hebraicos medievais e contemporâneos, traduzidos por Moacir Amâncio,
saiu em 2020 na monumental antologia Pelo Tejo vai-se para o mundo, sob
coordenação geral da professora Helena Buescu, da Universidade de Lisboa,
publicada pela editora Tinta da China, em Portugal. Em 2020, também traduziu e
escreveu o prefácio para A paisagem correta (Belo Horizonte, Editora
Relicário), do poeta israelense Amir Or.
Traduziu ainda poesia de outros autores israelenses, como Ronny Someck,
Natan Zach (1930-2020) e Michal Held-Delaroza, e de representantes da
literatura hebraica medieval e pré-isralense. De prosa, também traduziu textos
de Amós Oz (1939-2018) e Micha Berditchevski (1865-1921). Adelto
Gonçalves - Brasil
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Câmara Escuro, de Moacir
Amâncio, com prefácio de Roberto Zular. São Paulo-SP, Editora Hedra, 82 páginas,
R$ 40,00, 2022. E-mail: editora@hedra.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015) e Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
LetraSelvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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