Leiradella e a Capitu portuguesa (*)
Além
do teatro, do ensaio e do roteiro para vídeo, cinema e televisão, Cunha de
Leiradella (1934), ao curso de uma longa vida bem vivida, sempre cultivou
igualmente o romance e o conto, gêneros a que mais se dedicou, como bem sabe
quem já compulsou a sua biografia. Em Isto não é um romance, porém,
chega a um ponto em que inaugura um gênero, pois se trata de um conto que
parece ter escapado ao controle do escritor, alcançando as dimensões físicas de
um romance. Talvez venha daí a opção por tal título, embora o leitor possa
concluir também que este texto não conta a história de um amor exaltado, como
bem se afiguraria a um romance tradicional, mas de um amor frustrado, que não
houve. É a história de um homem que não conseguiu se realizar na vida
sentimental e faz um relato confessional de seu passado melancólico.
Mais uma vez, a personagem principal de um texto de Leiradella é Eduardo da Cunha Júnior, que, em outras obras, já foi vendedor de livros, dramaturgo, engenheiro, executivo e detetive. Desta vez, o alter ego do autor é um cidadão que, licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, filho de um comerciante bem-sucedido, nunca saiu da confortável casa em que nasceu nem precisou ir à luta para ganhar a vida, vivendo dos rendimentos e dos bens que os pais teriam deixado, e que se define como “um parasita social que não é pago com dinheiro público”.
Irrealizado
sentimentalmente, aferrou-se a dois seres que ganham características fortemente
humanas: Tovarich, um gato, e Minha, uma pega, ave no Brasil mais conhecida
como gralha. Recluso, só costumava trocar palavras com Antônia, a arrumadeira
que havia mais de 30 anos fazia diariamente o serviço de sua casa e lhe sempre
dizia que ele deveria ter se casado, pois “um homem como ele vivendo só era um
desperdício”. E a quem, à falta de herdeiros legítimos, nomearia em testamento herdeira
usufrutuária de seus rendimentos, benemerência extensiva à filha mais nova da
arrumadeira, a Micas, ainda criança, “com a condição de tratarem bem da Minha e
do Tovarich”.
Produto
de um mal resolvido relacionamento com os pais, que o chamavam de “burro”
quando pequeno porque dizia que conversava com as tábuas do teto de seu quarto,
o narrador guarda lembranças de uma antiga colega de escola, Beatriz, a loira Bia,
que tinha olhos verdes, e que sempre ficavam mais verdes quando Eduardo a via
olhando para ele, o que o fazia lembrar dos olhos de Y, personagem de Um
amor feliz (1986), de David Mourão-Ferreira (1927-1996), que eram azuis. Um
dia, ela o convidou para brincar, mas ele, por timidez, não lhe deu resposta.
Com ela, já saído da adolescência, voltaria a ter um breve contato, mas, uma
vez mais, o relacionamento não iria avante.
A
mística Bia, que seria a heroína deste conto-romance, se não é uma protagonista
marcante, constitui, a exemplo de Capitu, de Dom Casmurro (1899), de
Machado de Assis (1839-1908), e de Quina, de A Sibila (1957), de
Agustina Bessa-Luís (1922-2019), ambas delineadas pelas lembranças dos narradores,
personagem suficientemente forte para ser incluída numa galeria de personagens
memoráveis da Literatura Brasileira e da Literatura Portuguesa imaginada pelo
professor Massaud Moisés (1928-2018) no ensaio “Capitu e Quina: a Esfinge e a
Sibila”, que consta da obra Machado de Assis: ficção e utopia (2001).
Definida
como um enigma, essa personagem, Beatriz, a Bia, pode, portanto, passar a fazer
parte dessa galeria. Como não se trata de um romance nos moldes tradicionais, o
que fica explícito a partir do irônico título do livro que funciona mais como uma
advertência, a personalidade misteriosa de Bia não é desenvolvida e não se fica
sabendo o que teria sido feito dela na vida adulta, ou seja, se foi uma mulher
enigmática e dissimulada, tal como Capitu, sobre quem pesa até hoje uma
presumida infidelidade conjugal, como seria de se depreender de suas atitudes
na adolescência e juventude. Ou se foi sibilina, dotada de estranhos poderes,
tal como a profetisa Quina, com alto poder de manipulação de pessoas e
situações. Apesar disso, o que se pode concluir é que Bia foi tudo, a vida
inteira, para o autor/narrador.
Assim,
ao leitor só resta concluir ainda que o seu caráter já definido na adolescência
teria levado o narrador a optar pela vida em silêncio, em quase total reclusão,
sem passar a outros os seus sentimentos, preferindo direcioná-los a dois
bichinhos. De Bia, tal como das protagonistas machadiana e agustiniana, é
possível imaginar que seria mulher maquiavélica, capaz de com o gesto simbólico
de oferecer uma flor, depois de uma serenata, fazer suscitar no possível
pretendente devaneios sentimentais para, em seguida, sem o menor remorso,
afastá-lo com um simples fechar de boca ou gesto de reprovação. Mas afirmar
isto seria ir longe demais, até porque, provavelmente, para ele, o silêncio
sobre Bia falasse mais alto do que tudo o que pudesse ter escrito sobre
ela.
Portanto,
a heroína leiradelliana surge como aquela que poderia ter sido e que não foi,
para se repetir aqui um famoso verso de Manuel Bandeira (1886-1968), embora
desde logo se perceba, a partir do fluir de recordações do narrador, a
dissimulação como o traço distintivo do seu caráter, o que nos leva a concluir
que seria uma espécie de Capitu portuguesa em formação.
Em
resumo: neste conto-romance, Leiradella, tendo vivido pelo menos metade de sua
vida no Brasil, soube como unir o que de melhor cada variação do idioma
português nos dois continentes poderia lhe oferecer, produzindo um texto
sensível que se destaca pelo vigor da linguagem e por frases poéticas compostas
pela habilidade de um verdadeiro artesão da palavra. Adelto Gonçalves -
Brasil
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Isto não é um romance, de Cunha de Leiradella. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 120 p., R$ 49,90, 2021.
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(*) Texto publicado como posfácio à obra Isto não é
um romance.
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Adelto Gonçalves (1951), jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um poeta
do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo, Imesp/Academia Brasileira de
Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (São
Paulo, Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo - 1788-1797 (São Paulo, Imesp, 2019), entre outros.
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