Cabo
Verde celebra hoje o seu 46.º aniversário de independência. No país, a língua
oficial portuguesa convive, em situação de diglossia, com a língua nacional do
país, o cabo-verdiano. A língua cabo-verdiana é um crioulo de base lexical
portuguesa; pertence ao ramo dos crioulos afro-portugueses da Alta-Guiné, da
família dos crioulos de base portuguesa. Além de língua materna de quase todos
os cabo-verdianos, ela é língua segunda ou língua de herança dos descendentes
da numerosa diáspora espalhada pelo mundo. É, ainda, língua cultural e
artística por excelência, presente na poesia, nas canções, na música
cabo-verdiana.
Os
crioulos surgiram em sociedades tão diversificadas culturalmente que não é
possível a comunidade adotar nenhuma das línguas naturais faladas nesse
contexto, como aconteceu frequentemente na sequência dos Descobrimentos e da
colonização. Por isso existem(iram) tantos crioulos, muitos de base portuguesa.
Na ausência do domínio da língua do colonizador e na de uma língua natural
capaz de ser veicular, estas comunidades desenvolveram pidgins, i.e. sistemas
linguísticos rudimentares, que permitem estabelecer comunicação mínima entre os
membros da comunidade e entre estes e os colonizadores. Com frequência, chega
um momento em que as crianças transformam o pidgin na sua língua materna, por
não dispor de outra língua natural que desempenhe esse papel; essa geração
constitui a primeira de falantes nativos da nova língua natural, crioulo, que,
tal como acontece com todas as demais línguas naturais, se irá enriquecendo e
complexificando lexical e gramaticalmente até se tornar uma língua natural
capaz de desempenhar todas as funções que uma língua pode desempenhar.
A
língua cabo-verdiana é o crioulo mais antigo ainda falado, o de base portuguesa
com mais falantes nativos, aquele que é mais estudado e que mais próximo se
encontra de adquirir oficialidade (pelo menos na letra da lei). Apesar disto,
tal como acontece com a generalidade dos crioulos, esta língua é muitas vezes,
fruto de ignorância e intolerância, encarada como "português mal
falado", "linguajar", "dialeto", não porque seja uma
língua "inferior", que não é, mas por ter nascido em contexto de
dominação e ser falada pelas franjas mais desfavorecidas da população; o uso de
uma língua própria, diferente da dominante, contribui para que a comunidade que
a fala seja ostracizada, estigmatizada e veja a sua integração social e o seu
acesso à plena cidadania bastante dificultados.
Portugal
não constituiu exceção a esta regra. Na sociedade portuguesa do pós-1974 foi
terrível a estigmatização de que a comunidade cabo-verdiana foi alvo. Lembro-me
de fake news e mitos revoltantes que circulavam, e.g. na Grande Lisboa, sobre
os cabo-verdianos, que viviam em verdadeiros guetos, como a ainda tristemente
célebre Cova da Moura. Na escola, os meninos cabo-verdianos, que não falavam
português, eram os eternos repetentes até se tornarem os novos desistentes. A
situação melhorou: a sociedade portuguesa conseguiu, também ela, sair do seu
gueto de ignorância e intolerância, e ser hoje maioritariamente feita de
cidadãos; porém, não só sei que ainda temos muito a fazer, como me desespera o
retrocesso a que assisto.
Cabo
Verde está, hoje especialmente, de parabéns pelos seus 46 anos de idade. O seu
povo está-o sobretudo pela língua, a arte, o engenho, a resiliência e por ter
transformado o "país improvável" num dos mais bem-sucedidos países de
língua portuguesa. Margarita Correia – Portugal in “Diário de
Notícias”
Margarita Correia - Professora e investigadora, coordenadora do Portal da
Língua Portuguesa
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