Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 22 de julho de 2021

‘Espantalhos’: 25 anos de escrita

                                                              I

Editar uma revista dedicada à poesia no Brasil é um desafio que sempre beirou a utopia. Mesmo assim, o poeta e ensaísta Ademir Demarchi, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), decidiu enfrentá-lo em 2000, quando começou, com o apoio de mais três coeditores, a editar a Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, que, em sua primeira fase, teve seis edições e durou até 2004. Depois de muita luta junto a órgãos governamentais para obter apoio e até conquistar o primeiro lugar na seleção do Programa Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura, a revista com o título Babel Poética voltou a ser editada por mais seis vezes, de 2009 a 2013. Em 2017, a revista teve uma terceira fase com mais três edições, resultado de premiação do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo, chegando a 15 edições no total.

A história dessa odisseia literária o leitor pode conhecer a partir da leitura de “Babel Poética: a poesia na era Lula”, ensaio que abre a segunda parte do livro Espantalhos (Florianópolis, Nave Editora, 2017), de Ademir Demarchi, em que o editor conta a sua decepção com a Lei Rouanet, que, a princípio, apoiaria iniciativas culturais. “(...) o governo proclama o investimento em cultura através de uma renúncia fiscal que não se cumpre, uma vez que delega aos empresários o poder de decisão de usar essa renúncia. Ocorre que o empresariado, além de massivamente ignorante e inculto, com um imenso contingente habitando confortavelmente os índices de analfabetismo funcional, não tem interesse em cultura e os que têm algum interesse não o têm em revistas. Ainda mais de poesia (...).       

E olhem que essa constatação se deu à época do governo Lula que teve como ministros da Cultura o cantor Gilberto Gil e o sociólogo Juca Ferreira que sempre estiveram ligados a atividades culturais. Já no governo Dilma, como observa o ensaísta, houve o cancelamento de todos os projetos e programas iniciados ou incentivados pelo governo anterior. Obviamente, dos governos seguintes, Temer e Bolsonaro, não se poderia mesmo esperar qualquer esforço no sentido de apoio às iniciativas culturais.

 

                                                             II

Outro ensaio que se destaca é “O barão do Rio Branco e a Revista Americana”, que abre o livro e ressalta a importância daquela publicação que circulou de 1909 a 1912. Mantida pelo governo sob perceptível disfarce, a revista defendeu uma diretriz que privilegiava a hegemonia brasileira política e econômica na América do Sul, que incluía a ampliação do território e a demarcação de fronteiras, processo iniciado por José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), o visconde do Rio Branco e continuado por seu filho, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco (1845-1912). Escrito no período entre 1992 e 1997, este ensaio fez parte da tese elaborada pelo autor para a obtenção do título de doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).    

Já o ensaio “O jornal A Manhã e o Estado Novo”, escrito como introdução à dissertação de mestrado em Literatura Brasileira apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acompanha o percurso daquela publicação que durou de 1925 a 1929 e reapareceu em 1943, tendo chegado até 1953, no Rio de Janeiro, então capital da República. O estudo, porém, enfoca a segunda aparição do veículo, já incorporado a uma empresa da União e sob a coordenação do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) com o objetivo de atrair para o governo ditatorial de Getúlio Vargas (1882-1954) forças políticas e, especialmente, intelectuais.

Nesse caminho, A Manhã passou a publicar os suplementos culturais Autores e Livros e Pensamento da América, que procuravam atrelar a literatura à ideologia integralista e nacionalista, ou seja, fascista, que caracterizou o Estado getulista (1930-1945).      Com a queda de Getúlio em outubro de 1945 e o fim do chamado Estado Novo, tentou ainda sobreviver sem o apoio governamental e, de certo modo, como observa o ensaísta, ainda conseguiu com seu suplemento Letras e Artes, influenciado por membros da Academia Brasileira de Letras, todos de perfil conservador, tornar-se um espaço literário e artístico dos mais valorizados na imprensa brasileira daquele período.

    

                                                            III

Um texto que também se destaca é “A classe literária vai ao paraíso”, título irônico que remete para o filme “A classe operária vai ao paraíso” (1971), do diretor italiano Elio Petri, que tem no papel principal Gian Maria Volontè. Nesse texto, o autor faz uma resenha dos livros de autores brasileiros que foram a Cuba e retornaram dispostos a escrever livros em que exaltavam as conquistas do regime instaurado por Fidel Castro (1926-2016) em 1959: A Ilha - um repórter brasileiro no país de Fidel Castro (1976), de Fernando Morais, e Cuba de Fidel  - viagem à ilha proibida (1978), de Ignácio de Loyola Brandão, e a edição de nº 18 da revista Encontros com a Civilização Brasileira (1979), com depoimentos e ensaios de Florestan Fernandes, Antonio Callado, Fernando Morais, Carlos Eduardo Malhado Baldijão/Flávio Luiz Schieck Valente e Ignácio de Loyola Brandão.

Da análise desses livros, Demarchi constata, ao final, que “na rima entre revolução e paixão rastreia-se a parcialidade inimiga da crítica: o paraíso é perfeito, em Cuba ou na União Soviética, e a ele não cabe crítica, abole-se o perigo, elege-se o amigo”. Ou seja, em todos esses textos, só se lê louvores à chamada revolução castrista, com seus autores deixando de lado a imparcialidade crítica.

 Em outras palavras: enalteceram a redução do analfabetismo e da mortalidade infantil e a luta do pequeno país para superar os malefícios provocados pelo boicote dos Estados Unidos há tantos anos, o que é justo, mas “esqueceram” os longos anos em que Fidel Castro se manteve no poder com mão de ferro, os muitos adversários políticos que foram condenados ao paredón, a falta de liberdades públicas e outras mazelas.

Além desses ensaios, Espantalhos reúne resenhas de livros e crônicas, bem como textos sobre a cidade de Maringá, terra natal do autor, e ainda uma análise do trabalho do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968), enfeixando 25 anos de escrita.

 

                                                            IV

Ademir Demarchi, nascido em Maringá, em 1960, mas estabelecido em Santos e São Vicente desde 1993, edita o selo editorial de livros artesanais Sereia Ca(n)tadora, com 31 títulos publicados entre 2010 e 2018. Publicou Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Edições, 2007); Passeios na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007: Lima, Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012);  Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos, Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); Pirão de sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos (Santos, Realejo Edições, 2012); O amor é lindo (São Paulo, Editora Patuá, 2016); Siri na lata (Santos (Livraria Realejo, 2015); Gambiarra: uma pinguela para o futuro do pretérito (Bragança Paulista, Urutau, 2018); e Contrapoéticas (Florianópolis, Editora Nave, 2020), entre outros.

Com numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites da Internet, foi colaborador por oito anos do jornal impresso Diário do Norte do Paraná, de Maringá. Organizou as antologias Passagens – antologia de poetas contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas poéticas no Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca Pública do Paraná, 2014). Adelto Gonçalves - Brasil

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Espantalhos, de Ademir Demarchi. Florianópolis: Nave Editora, 312 páginas, R$ 40,00, 2017. Site: www.editoranave.com E-mail: editoranave@gmail.com  E-mail do autor: ademirdemarchi@uol.com.br 

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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

 



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