I
Editar
uma revista dedicada à poesia no Brasil é um desafio que sempre beirou a
utopia. Mesmo assim, o poeta e ensaísta Ademir Demarchi, doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP), decidiu enfrentá-lo em 2000, quando começou,
com o apoio de mais três coeditores, a editar a Babel – Revista de Poesia,
Tradução e Crítica, que, em sua primeira fase, teve seis edições e durou
até 2004. Depois de muita luta junto a órgãos governamentais para obter apoio e
até conquistar o primeiro lugar na seleção do Programa Cultura e Pensamento
2009/2010 do Ministério da Cultura, a revista com o título Babel Poética
voltou a ser editada por mais seis vezes, de 2009 a 2013. Em 2017, a revista
teve uma terceira fase com mais três edições, resultado de premiação do
Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo, chegando a
15 edições no total.
A
história dessa odisseia literária o leitor pode conhecer a partir da leitura de
“Babel Poética: a poesia na era Lula”, ensaio que abre a segunda parte
do livro Espantalhos (Florianópolis, Nave Editora, 2017), de Ademir
Demarchi, em que o editor conta a sua decepção com a Lei Rouanet, que, a
princípio, apoiaria iniciativas culturais. “(...) o governo proclama o
investimento em cultura através de uma renúncia fiscal que não se cumpre, uma
vez que delega aos empresários o poder de decisão de usar essa renúncia. Ocorre
que o empresariado, além de massivamente ignorante e inculto, com um imenso
contingente habitando confortavelmente os índices de analfabetismo funcional,
não tem interesse em cultura e os que têm algum interesse não o têm em
revistas. Ainda mais de poesia (...).
E
olhem que essa constatação se deu à época do governo Lula que teve como
ministros da Cultura o cantor Gilberto Gil e o sociólogo Juca Ferreira que
sempre estiveram ligados a atividades culturais. Já no governo Dilma, como
observa o ensaísta, houve o cancelamento de todos os projetos e programas
iniciados ou incentivados pelo governo anterior. Obviamente, dos governos
seguintes, Temer e Bolsonaro, não se poderia mesmo esperar qualquer esforço no
sentido de apoio às iniciativas culturais.
II
Outro
ensaio que se destaca é “O barão do Rio Branco e a Revista Americana”,
que abre o livro e ressalta a importância daquela publicação que circulou de
1909 a 1912. Mantida pelo governo sob perceptível disfarce, a revista defendeu
uma diretriz que privilegiava a hegemonia brasileira política e econômica na
América do Sul, que incluía a ampliação do território e a demarcação de
fronteiras, processo iniciado por José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), o
visconde do Rio Branco e continuado por seu filho, José Maria da Silva Paranhos
Júnior, o barão do Rio Branco (1845-1912). Escrito no período entre 1992 e
1997, este ensaio fez parte da tese elaborada pelo autor para a obtenção do
título de doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).
Já
o ensaio “O jornal A Manhã e o Estado Novo”, escrito como introdução à
dissertação de mestrado em Literatura Brasileira apresentada à Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), acompanha o percurso daquela publicação que
durou de 1925 a 1929 e reapareceu em 1943, tendo chegado até 1953, no Rio de
Janeiro, então capital da República. O estudo, porém, enfoca a segunda aparição
do veículo, já incorporado a uma empresa da União e sob a coordenação do
famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) com o objetivo de atrair
para o governo ditatorial de Getúlio Vargas (1882-1954) forças políticas e,
especialmente, intelectuais.
Nesse
caminho, A Manhã passou a publicar os suplementos culturais Autores e
Livros e Pensamento da América, que procuravam atrelar a literatura
à ideologia integralista e nacionalista, ou seja, fascista, que caracterizou o
Estado getulista (1930-1945). Com a
queda de Getúlio em outubro de 1945 e o fim do chamado Estado Novo, tentou
ainda sobreviver sem o apoio governamental e, de certo modo, como observa o
ensaísta, ainda conseguiu com seu suplemento Letras e Artes,
influenciado por membros da Academia Brasileira de Letras, todos de perfil
conservador, tornar-se um espaço literário e artístico dos mais valorizados na
imprensa brasileira daquele período.
III
Um
texto que também se destaca é “A classe literária vai ao paraíso”, título
irônico que remete para o filme “A classe operária vai ao paraíso” (1971), do
diretor italiano Elio Petri, que tem no papel principal Gian Maria Volontè.
Nesse texto, o autor faz uma resenha dos livros de autores brasileiros que
foram a Cuba e retornaram dispostos a escrever livros em que exaltavam as
conquistas do regime instaurado por Fidel Castro (1926-2016) em 1959: A Ilha
- um repórter brasileiro no país de Fidel Castro (1976), de Fernando
Morais, e Cuba de Fidel - viagem à
ilha proibida (1978), de Ignácio de Loyola Brandão, e a edição de nº 18 da
revista Encontros com a Civilização Brasileira (1979), com depoimentos e
ensaios de Florestan Fernandes, Antonio Callado, Fernando Morais, Carlos
Eduardo Malhado Baldijão/Flávio Luiz Schieck Valente e Ignácio de Loyola
Brandão.
Da
análise desses livros, Demarchi constata, ao final, que “na rima entre
revolução e paixão rastreia-se a parcialidade inimiga da crítica: o paraíso é
perfeito, em Cuba ou na União Soviética, e a ele não cabe crítica, abole-se o
perigo, elege-se o amigo”. Ou seja, em todos esses textos, só se lê louvores à
chamada revolução castrista, com seus autores deixando de lado a imparcialidade
crítica.
Em outras palavras: enalteceram a redução do
analfabetismo e da mortalidade infantil e a luta do pequeno país para superar
os malefícios provocados pelo boicote dos Estados Unidos há tantos anos, o que
é justo, mas “esqueceram” os longos anos em que Fidel Castro se manteve no
poder com mão de ferro, os muitos adversários políticos que foram condenados ao
paredón, a falta de liberdades públicas e outras mazelas.
Além
desses ensaios, Espantalhos reúne resenhas de livros e crônicas, bem
como textos sobre a cidade de Maringá, terra natal do autor, e ainda uma
análise do trabalho do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968),
enfeixando 25 anos de escrita.
IV
Ademir
Demarchi, nascido em Maringá, em 1960, mas estabelecido em Santos e São Vicente
desde 1993, edita o selo editorial de livros artesanais Sereia Ca(n)tadora, com
31 títulos publicados entre 2010 e 2018. Publicou Os mortos na sala de
jantar (Santos, Realejo Edições, 2007); Passeios na floresta (Porto
Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do sereno que enche o
Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007: Lima, Centro Peruano de Estudios
Culturales, 2012); Ossos de sereia
(Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos, Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima,
Viringo Cartonero, 2014); Pirão de sereia, que reúne sua obra poética de
30 anos (Santos, Realejo Edições, 2012); O amor é lindo (São Paulo,
Editora Patuá, 2016); Siri na lata (Santos (Livraria Realejo, 2015); Gambiarra:
uma pinguela para o futuro do pretérito (Bragança Paulista, Urutau, 2018); e
Contrapoéticas (Florianópolis, Editora Nave, 2020), entre outros.
Com numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites da Internet, foi colaborador por oito anos do jornal impresso Diário do Norte do Paraná, de Maringá. Organizou as antologias Passagens – antologia de poetas contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas poéticas no Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca Pública do Paraná, 2014). Adelto Gonçalves - Brasil
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Espantalhos, de Ademir Demarchi. Florianópolis: Nave Editora, 312 páginas, R$ 40,00, 2017. Site: www.editoranave.com E-mail: editoranave@gmail.com E-mail do autor: ademirdemarchi@uol.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os vira-latas da madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o
poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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