O encenador do "único teatro ativo" em patuá, que este ano celebra 30 anos de existência, considera que Portugal deve "investir mais no estudo" deste crioulo de Macau, de base portuguesa e em risco de extinção
“Portugal
pode até dar-nos respostas a muitas questões que muitas vezes nós não
conhecemos. Como é que linguisticamente determinada forma de expressão
apareceu, por exemplo”, disse à Lusa Miguel de Senna Fernandes, responsável
pela companhia de teatro Dóci Papiaçám di Macau (Doce falar de Macau).
A
língua crioula de Macau, preservada sobretudo através deste grupo de atores
amadores, que levam a palco uma peça por ano, sofreu forte influência da língua
portuguesa. “Se não chega a 80%, é 70% do português”, notou o também presidente
da Associação dos Macaenses.
“Há
muita coisa que vem naturalmente de outras influências, do malaio, do concanim,
mas o grosso, por exemplo, na formação de verbos, é muito de português (…). Do
cantonês, existe uma grande influência também, não na grafia, mas no aspeto
semântico”, explicou.
Considerado
pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) como “gravemente ameaçado”, o nível antes da extinção, o patuá foi
criado por imigrantes portugueses em Macau ao longo dos últimos 400 anos, e foi
desaparecendo devido à obrigação de aprendizagem do português nas escolas,
imposta pela administração portuguesa.
Miguel
de Senna Fernandes não sabe quantas pessoas dominam o crioulo, no pequeno
território chinês ou na diáspora, mas admite serem “muito poucos”. Sustenta que
o patuá “tem o seu valor”, conferindo à comunidade macaense uma “dimensão de
tradição, uma dimensão de profundidade em termos históricos e em termos de
vivência”.
O
termo macaense é comummente utilizado para fazer referência a esta comunidade
euro-asiática, sendo a maioria dos membros lusodescendentes, com raízes em
Macau.
“Há
que saber o que somos nós, que passado temos. (…) Não nos podemos esquecer de
onde viemos. E o patuá está numa situação de alguma contradição. Quando falamos
de língua, é necessário que a língua tenha dignidade quando é utilizada. E a
contradição está em que ninguém fala patuá”, notou.
Portugal,
considerou ainda Senna Fernandes, “pode sempre fazer mais”, seja através da
Casa de Macau, do Centro Científico e Cultural de Macau – “que está a fazer um
bom trabalho” – ou “de uma comunidade macaense falante de patuá” a residir no
território: “E por que não a partir daí reconstruir ou pelo menos
preservá-lo?”.
“Seria
ridículo falar num museu de línguas, mas é quase como isto, uma espécie de um
salão, um engenho museológico”, apontou.
Referindo
que “começam agora a existir muitas iniciativas” em Macau para “fomentar o
patuá fora dos Doçi”, nomeadamente através da Associação de Jovens Macaenses e
da recém-criada Associação de Estudos da Cultura Macaense, Senna Fernandes
declarou que tem ainda um projeto pessoal: “Há 30 anos que ando para escrever e
não publiquei nada, mas eu vou fazê-lo”, frisou, observando que “até este
momento o único patuá que se vê [publicado] é do Adé”, como era conhecido o
poeta macaense José dos Santos Ferreira (1919-1993).
“Eu
vou fazê-lo porque é uma outra interpretação do patuá”, disse.
A
China incluiu em 2021 na lista de património cultural imaterial nacional o
Teatro em Patuá.
O
grupo Dóci Papiaçám di Macau, “único teatro ativo” neste crioulo, nasceu a 30
de outubro de 1993, ano da morte de Adé e por ocasião da visita do então
Presidente português Mário Soares a Macau e da reabertura, após obras de
recuperação, do D. Pedro V, primeiro teatro de estilo ocidental na China.
Miguel
de Senna Fernandes integrou o projeto desde esse primeiro momento, levando à
cena a peça “Olâ Pisidénte” (Ver o Presidente), apresentando “ao Presidente da
República as preocupações” da comunidade macaense: a integração nos quadros de
Portugal, após a transferência de administração do território para a China, em
1999, e questões relacionadas com a nacionalidade.
“O
grupo tem sido um bom divulgador da própria língua”, sublinhou o encenador ao
fazer um balanço de três décadas de trabalho. “O teatro é uma maneira
fantástica de aprender qualquer língua”.
Este
ano, o dramaturgo traz ao palco do grande auditório do Centro Cultural de
Macau, entre 26 e 28 deste mês, o retrato de uma cidade livre da pandemia.
Macau livrou-se das restrições anti-pandémicas, mas não da sátira dos Doçi. Com
“Chachau-Lalau di Carnaval” (Oh, que arraial), é criado um novo programa de
revitalização dos bairros no território e um quarteirão é selecionado como
experiência piloto. Aí terá lugar um arraial. Ou melhor, um carnaval.
“Macau
quer ser um sítio alegre e arranja sempre esse subterfúgio do arraial ou do
carnaval, como queiram chamar. É carnaval para aqui, carnaval para acolá. A
palavra carnaval entra até nos pedidos dos subsídios, é a coisa mais louca que
pode haver”, comenta.
A
peça, que volta a contar este ano com vários números musicais e trabalhos em
vídeo, é interpretada em patuá, com momentos em português e cantonês. Pela
primeira vez, vai escutar-se mandarim, pela voz de uma personagem que chega do
interior da China, “mas que rapidamente começa a falar cantonês”.
Senna
Fernandes chama a atenção para “uma nova realidade” em Macau.
“Fala-se
tanto da Grande Baía e eu continuo sem saber o que é isto, há que integrar este
elemento numa outra forma numa peça em patuá”, complementou, referindo-se ao
projeto de Pequim que tem como objetivo criar uma metrópole mundial a partir de
Macau, Hong Kong e nove cidades da província de Guangdong, com mais de 60
milhões de habitantes.
“Independentemente
do que as pessoas possam pensar, o mandarim é uma língua que não é de Macau (…)
mas, claro, por razões oficiais, por razões de Estado, e tudo mais, é óbvio e é
legítimo que se espere que a comunidade também fale a língua nacional”, disse. In “Sapo 24”
com “MadreMedia / Lusa”
Sem comentários:
Enviar um comentário