Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Uma visão do passado

Obra da professora Zina C. Bellodi resgata a trajetória de uma família de imigrantes italianos

                                                                                   

                                                                    I

Uma das discípulas do poeta, crítico, tradutor e novelista português Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), perseguido pelo regime salazarista (1933-1974) e exilado no Brasil a partir de 1954, professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Araraquara, no interior de São Paulo, a partir de 1962, a professora Zina C. Bellodi (1941), além de livros sobre Teoria da Literatura, também tem se destacado na área de memorialística.

Um desses trabalhos notáveis de pesquisa é A Casa do Coco (Jaboticabal-SP Editora Maria de Lourdes Brandel/Gráfica Multripess, 2011), em que reconstitui a história de sua família de origem italiana que se estabeleceu no interior do Estado de São Paulo ainda nos anos finais do século XIX, atraída por uma propaganda oficial enganosa que prometia segurança no trabalho e boas condições de vida. Obviamente, quando chegaram ao Brasil, os membros dessa família, como os demais imigrantes, depararam com uma realidade que seria muito diferente daquela que lhes fora oferecida quando ainda estavam na Itália.

A família Bellodi, formada da união de Anselmo Bellodi com Adele Rossi, era uma típica família de imigrantes italianos, com muitos filhos, que começou o trabalho na lavoura, inicialmente, no regime de colonato, depois em terras alheias “a meia” ou “a terça”, poupou, adquiriu um pedaço de terra e fez fortuna pela dedicação e esforço comum de seus membros, angariando, dessa maneira, a admiração e o respeito, principalmente do povo de Jaboticabal e região.

 

                                                        II

O título da obra “A Casa do Coco” se refere à casa patriarcal, o lugar onde Anselmo e Adele fincaram as raízes de sua descendência e que serviu de suporte para o crescimento e consolidação da prole, no aspecto físico, espiritual e material. A partir de suas próprias lembranças, papéis velhos, objetos guardados desde aquela época e fotos, muitas fotos, a autora faz uma retrospectiva da saga dos Bellodi, que incluiu uma passagem pela cidade de Socorro, também no interior de São Paulo, até que chegaram às margens do córrego do Coco, em Jaboticabal.

Como lembra no prefácio o sociólogo, poeta, tradutor e escritor Lólio Lourenço. de Oliveira, igualmente descendente de italianos, Zina consegue, “com seu relato, fazer com que, sem que se perceba, participemos com ela de suas lembranças, de seu orgulho, de sua saudade, como alguém que um dia também tenha sido recebido na Casa do Coco e gozado da hospitalidade do nonno”.

Como se pode perceber, a obra, em grande parte, procura descrever a típica propriedade rural do imigrante italiano, a sua autossuficiência na produção dos alimentos, no cultivo de plantas, na confecção de roupas, no corte da madeira e na produção de tijolos.

Na apresentação, a professora Magaly Trindade Gonçalves (1941-2015), outra discípula do professor Casais Monteiro, observa que Zina Bellodi “tem a visão voltada para toda uma saga, não se percebendo, em geral, a “presença” da narradora, que atua como que “escondida”, para que a trama (tão bem por ela descortinada) seja sempre o centro de tudo, apenas o farol que a descortina”. E compara a sua maneira de narrar à de João Guimarães Rosa (1908-1967) em Grande Sertão: Veredas (1956), lembrando que a memorialística não está especificamente no narrador em primeira pessoa, “mas na maneira como o narrador simula uma história confessada pelo personagem que a viveu”.

 

                                                       III

Em resumo, o que se pode adiantar é que Adele e Anselmo, os patriarcas, casaram-se em Sermide, comuna da província de Mântua, na região da Lombardia, em 1890 e, em 1891, emigraram para o Brasil, a uma época em que ela já estava nos dias finais de gestação, tendo dado à luz em alto-mar o primogênito Sylvio, que faleceu em 1º de outubro de 1891, em Socorro. Ainda nesta cidade, veio Aristides, nascido em 1893 e, na sequência, nasceram Zina (1896), Oringa (1897), Gino (1899), Ivo (1901), Bárbara (1903), Maria (1905), Giácomo (1907), Fermo (1909), e Sylvia (1911), formando uma extensa família que se espalharia pelo interior do Estado de São Paulo.

Em 1897, os Rossi, outra família de imigrantes italianos, ao saber que os Bellodi não estavam bem em Socorro, enviaram-lhes, por meio de um mascate, uma carta em que sugeriam que fossem para a região do córrego do Coco. Assim, Adele e Anselmo e os filhos, à medida que cresciam, passaram a trabalhar em terras alheias até que, em 1918, adquiriram os primeiros 33 alqueires da família Casteletti. Um dos filhos, Aristides, haveria de se casar com Hermínia Casteletti e o casal teria doze filhos – o último seria Zina, a autora da obra.

Em suas rememorações, Zina destaca a capacidade empreendedora dos irmãos Bellodi, que passaram a adquirir pequenas e médias propriedades, dentre as quais a denominada Santo Antônio da Cachoeira, em Córrego Rico, pertencente ao tio-avô Aristodemo Rossi, que tinha um pequeno engenho e que viria a ser o início da Usina Santa Adélia, nome dado em homenagem à mãe, Adele. Em 1926, Bellodi e Rossi já apareciam como grandes proprietários de terra, donos de centenas de milhares de cafeeiros.

Enfim, ilustrada com muitas fotos de personagens e da atividade pecuária e agrícola, inclusive, com a reprodução de escrituras de propriedades, a obra, apesar de extensa e pormenorizada, pode ser lida de uma assentada, tal o estilo fluido e cativante da autora. Constitui, assim, nas palavras finais da autora, “uma forma de superar os traços amargos da vida, permitindo ter dela uma visão mais ampla, o que nos torna mais completos e mais capazes de sentir, amar e aceitar a nossa própria condição humana”.


             IV

Nascida em Córrego Rico, distrito de Jaboticabal, Zina Casteletti Bellodi formou-se em Letras Anglo-Germânicas na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, atual Faculdade de Ciências e Letras, da Unesp. Desenvolveu estudos nas áreas de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Portuguesa, além de Literatura Infanto-juvenil. Participou de bancas de concursos acadêmicos e publicou artigos em periódicos universitários.

Publicou ainda “Função e forma do tradicional em Mário de Sá Carneiro”, tese de doutoramento, em Cadernos de Teoria e Crítica Literária (Araraquara, Unesp, 1975); “Florbela Espanca - Discurso do outro e imagem de si”, tese de livre-docência, em Cadernos de Teoria e Crítica Literária (Araraquara, Unesp, 1992); “Florbela Espanca - Discurso do outro e imagem de si” (texto condensado) em Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, vol. XXXIII (Lisboa-Paris, 1994); Melhores poemas de Florbela Espanca (São Paulo, Global Editora, 2005); A construção de um sonho – Fazenda Santa Cruz (Jaboticabal, Gráfica Multipress, 2011); D. Maria Luíza Carrão Jakovac (Jaboticabal, Gráfica Multipress, 2011), e Teoria da LiteraturaRevisitada”, com Magaly Trindade Gonçalves (Petrópolis; Editora Vozes, 2005).

Com Magaly Trindades Gonçalves e Zélia Thomaz de Aquino (1941-2014), publicou Estudos de Literatura Infantil – Teoria e Prática (2000) e A figuração de Tiradentes na ficção brasileira (2002), além de quatro antologias de literatura brasileira (1995, 1996, 1998 e 2006). Reside em Jaboticabal. Adelto Gonçalves - Brasil

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A Casa do Coco de Zina C. Bellodi, com prefácio de Lólio L. de Oliveira e apresentação de Magaly Trindade Gonçalves. Jaboticabal-SP: Editora Maria de Lourdes Brandel/Gráfica Multipress, 410 páginas, 2010. Site: E-mail: zinabellodi@uol.com.br  ­­­­­­­­­­­­

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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br




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