Um momento histórico. Lisboa recebeu o primeiro de 15 eléctricos articulados que vão servir para reforçar e prolongar a linha ribeirinha 15E. Fomos conhecê-lo nas oficinas da Carris, em Santo Amaro
Foi
no final de Abril que chegou a Lisboa o primeiro de 15 novos eléctricos
articulados que irão reforçar a frota da Carris e, em particular, a carreira
15E, que circula na frente ribeirinha ligando Lisboa e Oeiras. Os novos
veículos permitirão aumentar frequências e avançar com os aguardados
prolongamentos da linha: de um lado, de Algés até à Cruz Quebrada; do outro, da
Praça da Figueira até Santa Apolónia (e futuramente até ao Parque das Nações).
Os
15 novos eléctricos articulados resultam de um investimento total de 43,4
milhões de euros, que inclui custos de manutenção, assegurado ainda no mandato autárquico anterior. Depois da
chegada do primeiro veículo, mais oito deverão ser entregues este ano, os
restantes seis em 2024. Com estas aquisições, a frota de eléctricos articulados
da Carris mais que duplicará, passando dos actuais 10 veículos para 25,
permitindo a Lisboa ganhar um novo fôlego na sua linha ribeirinha de eléctrico,
que, devido à crescente procura, tem vindo a ser reforçada com autocarros.
Os
planos para a linha 15E passam pelo seu prolongamento, quer em Oeiras, quer em
Lisboa. A ideia é antiga e já era falada em 1985 aquando da introdução dos
primeiros articulados na cidade. Na altura, pretendia-se implementar uma linha
de ferrovia ligeira de 13 quilómetros entre a Cruz Quebrada, no concelho de
Oeiras, e Santa Apolónia, em Lisboa, passando por Algés, Belém, Calvário, Cais
do Sodré, Terreiro do Paço e Praça da Figueira. (Em 1985, o Parque das Nações
ainda não existia enquanto centralidade na cidade, pelo que os eventuais planos
para levar o 15E para a zona oriental da cidade são recentes.)
Hoje,
é certo o prolongamento do 15E apenas até Santa Apolónia, o que depende
unicamente da conclusão das obras de drenagem e de construção de uma nova praça
na envolvente da estação ferroviária. Do lado de Oeiras, a Câmara liderada por
Isaltino Morais já disse estar comprometida com o prolongamento da linha 15E de
Algés (onde termina actualmente) até à Cruz Quebrada, “retomando o percurso
histórico desta carreira e oferecendo uma nova solução de transporte no
concelho de Oeiras”.
A
15E será articulada com duas novas linhas de ferrovia ligeira que estão em
estudo na Margem Norte da área metropolitana de Lisboa, conectando os concelhos
de Lisboa, Oeiras e Loures: a LIOS Ocidental, que se ligará à 15E em Cruz
Quebrada e que ligará áreas como Linda-a-Velha, Miraflores e Restelo; e a LIOS
Oriental, que começará em Santa Apolónia (ou no Parque das Nações, dependendo
da articulação com a 15), ligando a zona oriental de Lisboa a Sacavém, em
Loures. Os estudos prévios e de traçado do LIOS estão a ser desenvolvidos, numa
colaboração entre o Metro, a Carris e os municípios de Lisboa, Loures e Oeiras.
Um momento histórico
Os
15 novos articulados compõem a primeira renovação de frota de eléctricos
articulados de Lisboa em 28 anos e vão ser a designada série 600 da Carris. O
primeiro desses eléctricos chegou precisamente na madrugada de dia 28 de Abril,
vindo dos estaleiros espanhóis da CAF, no País Basco. O transporte do veículo
até às instalações da Carris em Santo Amaro obrigou a condicionamentos de
trânsito em várias artérias da cidade durante as altas horas da noite, e captou
a atenção de vários entusiastas que, perdendo algum tempo de sonho, ganharam
vídeos e fotografias de um momento histórico para a cidade.
Foi
em Santo Amaro que visitámos o 601, acompanhados por Carlos Gaivoto. Técnico da
Carris há mais de 45 anos, é um acérrimo defensor da ferrovia ligeira nas
cidades e não hesita: é altura de trazer o eléctrico de volta para Lisboa,
recuperando ou desenvolvendo novas linhas e criando uma rede à superfície, que
ajude a reduzir ou eliminar viagens em automóvel, e que transfira essa
dependência modal para um transporte colectivo de qualidade. “O eléctrico é
a solução mais versátil porque pode cobrir distâncias diferentes, que podem ir
desde o puramente em bicicleta, até a distâncias de metro até de comboio”,
aponta o entendido, remetendo para a diversidade de implementações que este
modo possibilita.
Por
exemplo, podemos ter eléctricos em serviço expresso para ligar e coser
territórios periféricos, como se tem na Linha B do Metro do Porto, ou até mesmo
linhas de eléctrico que “entram e saem do sistema ferroviário convencional”.
Esta última situação é um modelo conhecido na indústria como tram-train:
resolvendo apenas as diferenças de corrente eléctrica e de bitola, um eléctrico
como aquele que a Carris acabou de comprar pode, de repente, “subir” para uma
linha de comboio ou metro para percorrer distâncias maiores e suburbanas.
Actualmente, Lisboa conta apenas com o modelo tramway, isto é, em que
eléctricos “normais” percorrem ruas “normais” da cidade em carris próprios. Já
o Metro do Porto ou o MTS, nos concelhos de Almada e Seixal, são um sistema de Light
Rail Transit (LRT), uma espécie de comboio ou metro ligeiro, como
preferirmos.
O regresso do modo eléctrico
Em
meados do século XX, Lisboa, acompanhando outras cidades, desactivou muitas das
suas linhas de eléctrico para alcatroar estradas que serviriam o automóvel
particular. O modo ferroviário ligeiro foi, ao mesmo tempo, sendo substituído
pelo modo metropolitano, subterrado, onde não perturbaria o trânsito automóvel.
Na capital portuguesa, os eléctricos colectivos foram, assim, desaparecendo e
algumas carreiras substituídas por autocarros, com uma circulação mais
flexível, sem carris fixos, e pela nova rede de Metro; o declínio do eléctrico
durou até o início dos anos 1990. “Nas décadas de 1980 e 1990, o que
infelizmente se fez em Lisboa foi dar prioridade ao automóvel, enquanto que
outras cidades na Europa já estavam a dar prioridade ao transporte público”,
lamenta. “Se formos olhar para as redes de eléctrico em França na década de
1980, existiam em duas ou três cidades. Hoje, têm cerca de 30 redes em 30
cidades. Portanto, o que estamos a ver é um relançamento do eléctrico”,
perspectiva.
Lisboa
conta hoje com apenas seis carreiras de eléctrico: além da 15E, existe a 12E,
que liga o Martim Moniz, Mouraria, Alfama e o Castelo como que uma carreira de
bairro; a 18E, entre o Cais do Sodré e Ajuda, passando pelo Rio Seco; a 24E,
que foi reactivada em 2018 e que liga o Largo Camões a Campolide; a 25E, entre
a Praça da Figueira e Campo de Ourique; e a 28E, um sucesso turístico, ligando
o Martim Moniz também ao bairro de Campo de Ourique. Na década de 1950, no
entanto, existiam cerca de 30 carreiras.
Carlos
Gaivoto vê nos eléctricos uma oportunidade para se poder “substituir
gradualmente” carreiras hoje realizadas com autocarros e, assim, oferecer aos
passageiros um transporte mais previsível e confortável. “O eléctrico, se
funcionar em sítio próprio, oferece uma grande versatilidade e tem uma outra
velocidade.” De forma a garantir essa regularidade numa rede à superfície, é
necessário criar condições nas ruas da cidade para o seu desenvolvimento
dedicando-lhe vias segregadas de circulação e resolvendo o estacionamento
abusivo que tantas vezes bloqueia os eléctricos. “Podemos ter eixos onde só
passa o eléctrico, sem automóveis, nem tão pouco autocarros e táxis”,
exemplifica, acrescentando que essas ruas podem ser carris em corredores
relvados, como acontece, aliás, em Almada e no Porto.
Para
Carlos Gaivoto, existem vantagens da ferrovia ligeira nas cidades em comparação
com uma rede subterrânea de metro, como a dinâmica de vivência da rua e da
cidade que se consegue proporcionar, e também ao nível da acessibilidade. “Estás
na rua e consegues entrar logo no eléctrico, ao contrário do que acontece no
Metro, em que tens de descer e muitas vezes as escadas rolantes e elevadores
estão avariados. Há estações sem elevadores, etc. Isso para algumas pessoas
significa menos acessibilidade”, aponta. “E tudo isso tem custos e custa
uma exorbitância. Uma estação de metro é uma casa subterrânea, um grande
pavilhão, com todos os equipamentos de iluminação, de acessibilidades, ar
condicionado, etc. O custo disso não se justifica para a dimensão de cidade que
procuramos.”
Para
o especialista, a estratégia de expansão do Metro, centrada no subterrâneo e
nas deslocações dentro cidade de Lisboa, tem sido “errada e muito dispendiosa”.
E aponta: “Com o custo de um quilómetro de metro, eu conseguiria construir 15
quilómetros de LRT. Isto é importantíssimo porque muito mais rápido que o Metro
conseguira construir na cidade uma rede de LRT.” E desta forma faz uma crítica
directa à construção da Linha Circular, cujas obras vão adicionar apenas 1,9 km
à rede, ligando o Rato ao Cais do Sodré, e estão a custar 331,4 milhões de
euros.
E
sobre o futuro do eléctrico em Lisboa? “Todos os traçados de linhas que porventura
venham a ser estudados” terão de partir da definição do que se pretende para o
concelho, “se pretendemos um concelho com mais ou menos carros, autocarros,
bicicletas e espaço pedonal”, e com a ambição de “uma coesão social e
territorial”. Gaivoto brinca dizendo que “o concelho de Lisboa tem cinco
cidades dentro dela”, sendo necessário interligar esses territórios e
proporcionar soluções de mobilidade interna. Ao nível metropolitano, o desafio
não é muito diferente e, mais que criar redes que tragam pessoas das periferias
para o centro de Lisboa (como o Metro tem desenvolvido), há que pensar em redes
que interliguem essas periferias, esses outros centros. “Quem é que avalia
os custos de dispersão territorial? Cá não vemos ninguém a falar disso, mas a
dispersão tem custos. Não basta só construir e muitas vezes constrói-se onde
não existe sequer rede de transporte público. Aconteceu isso com mais
intensidade na década de 1980 e 1990. Por isso as pessoas continuam a vir de
carro, por isso temos congestionamentos sempre nos mesmos acessos. Enfim, as
pessoas continuam a vir de carro porque a alternativa à porta de casa não
existe.”
Gaivoto
diz que há trabalhos já feitos pela Carris e nunca implementados pela Câmara de
Lisboa e restantes municípios, como um estudo para um eixo Algés-Loures. “Serviria
quatro municípios, desde Algés à Damaia, mas tinha uma antena para
Linda-A-Velha e outra para Carnaxide, depois ia da Damaia à Falagueira,
Alfornelos, Odivelas, Loures. Depois poderia continuar-se para além de Loures,
sendo que hoje em dia com estes eléctricos tram-trains conseguiríamos fazer
ligações entre o eléctrico e a ferrovia convencional. Assim, por exemplo, um
eixo de Algés a Alverca seria um eixo estratégico de tentar coser de, uma certa
maneira, todos estas urbanizações que existem de forma dispersa no território.”
Outra ideia seria uma linha entre Falagueira e Santa Apolónia e que poderia
aproveitar os túneis do Metro em alguns troços, bem como substituir carreiras
de autocarro em zonas como a Estrada de Benfica. No entanto, tudo não passam de
projectos antigos, que não estarão nos planos agora.
A
expansão do modo eléctrico em Lisboa inclui, além do prolongamento do 15E, uma
linha de LRT entre Loures e Odivelas, que será construída à superfície e túnel
e que vai ser gerida pelo Metro – será a Linha Violeta. E também as duas linhas
do LIOS, já referidas. Na Margem Sul, deveremos aguardar o prolongamento do MTS
até à Costa da Caparica e, numa fase mais posterior, até ao Barreiro. Falaremos
destes projectos em artigos futuros.
Voltando
a Lisboa: as linhas de eléctrico que resistiram ao desmantelamento foram
modernizadas no final dos anos 1990: a 15E passou, como referido, a ter 10
novos eléctricos articulados em 1995, uma autêntica novidade em Lisboa à data;
e a frota de 45 eléctricos tradicionais foi, até 1996, restaurada, tornando-se
mais rápida e silenciosa.
Hoje,
esses eléctricos clássicos tornaram-se um ícone de Lisboa e são um indiscutível
sucesso entre os milhões de turistas que a capital portuguesa recebe
anualmente. É por isso que a sua manutenção está garantida e que a Carris tem
previsto, inclusive, comprar 10 novos eléctricos “históricos”, isto é, “de
aparência coerente com os eléctricos clássicos que constituem uma marca
identitária da cidade de Lisboa”, num investimento de 20 milhões. Mário
André – Portugal in “Lisboa Para Pessoas”
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Mário Rui André - Jornalista e editor do Lisboa Para Pessoas, jornal local sobre Lisboa e a área metropolitana. Tenho 30 anos de vida na capital e 10 anos de experiência em comunicação social, tendo co-fundado o Shifter, uma revista independente e de referência na área da tecnologia. Estudei publicidade e marketing na Escola Superior de Comunicação Social e, mais tarde, jornalismo e comunicação na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Escrevo sobre Lisboa e sobre cidades, mobilidade e urbanismo no geral. Acompanho uma visão mais humana do espaço público, e sou pela cidadania e pela transparência da parte dos órgãos governativos.
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