Foi o erro de se achar que havia uma “língua portuguesa” igual para todos, quando já era saudavelmente diferente consoante as geografias, que conduziu ao desastre do Acordo Ortográfico
Amanhã,
5 de Maio, celebra-se mais um Dia Mundial da Língua Portuguesa e nem vale a
pena sublinhar o que aí vem de euforias, quanto a “oportunidades” e
“internacionalizações”, como se a língua portuguesa não fosse já uma língua
internacional “desde pelo menos o fim da Idade Média […], sem problemas de
difusão ou promoção independentemente da forma como se escreva”, como
acertadamente escreveu António Emiliano em 2008. Mas enfim, os políticos têm de
se entreter com alguma coisa — só é pena que a língua se inclua nessa
“cobiçada” lista. Este ano, nos festejos anunciados, há uma novidade: a sua
celebração em Olivença, em aliança entre o município local, espanhol (o
Ayuntamiento de Olivenza) e a UCCLA, nela participando escritores, professores,
o alcaide de Olivença e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Dado o velho
diferendo ali existente em matéria de soberania, trata-se de um oásis amistoso
e digno de nota. Abre, claro, com uma “receção” aos participantes, que seria
“recepção” se fosse no Brasil ou “recepción” caso ocorresse em Madrid. Malhas
que o nosso acordismo tece. Por falar em acordismo, quase a coincidir com mais
um Dia da Língua foi divulgado um apelo ao Presidente da República para que
“seja reconhecido e revertido o gravíssimo erro cometido e por via do qual o
Estado Português adoptou o Acordo Ortográfico, anulando-o”. Com um total de 169
subscritores (continuando, segundo os promotores, a recolha de mais
assinaturas, que serão enviadas igualmente para o Palácio de Belém), tal apelo
vem somar-se a iniciativas com idêntico fim, sob a forma de manifestos, abaixo-assinados
ou iniciativas legislativas, às quais a classe política tem reagido, na sua
grande maioria, com desinteresse ou mesmo desprezo. O que não deve desmotivar
quem nelas se empenha, pelo contrário; desistir, aqui, não será nunca o lema.
Daí que tal apelo mereça também boa nota, face ao aviltamento ortográfico
reinante. A propósito da língua portuguesa, uma das discussões recorrentes é a
do abuso do inglês. Um interessante artigo assinado por Carl Eric Johnson
(“Porque é tão difícil dominar a língua portuguesa?”, PÚBLICO, 21 de Abril)
atribuía “a dificuldade de muitas pessoas em dominarem o básico da língua
portuguesa”, não só a complicações gramaticais e fonéticas, mas ao facto de
haver uma “abundância de portugueses que falam bem inglês” e à “prevalência de
informação apresentada em inglês”. Muitos encontros entre portugueses e
estrangeiros, escreve Carl, “iniciam-se com o português a falar inglês, sem dar
ao visitante a oportunidade de provar a sua capacidade de falar na língua da
terra”. Se é duvidoso que haja assim tantos portugueses a falar bem inglês
(sublinhe-se o “bem”), já parece pacífico que o português, por desejo de
mostrar simpatia ou simples voluntarismo, tenda a exprimir-se em qualquer
língua que não a sua, até numa mistura macarrónica de várias, quando tem um
estrangeiro pela frente. Pior do que isso, bem pior, é o abuso de termos
ingleses nas mais diversas áreas, que leva a anúncios públicos com frases como
“Net talks”, “Apoia a tua crew” ou “Boosted odds para a tua laife” (assim mesmo,
com “ai”), além da verdadeira praga que são as brands, o background, os shares,
as views, os likes, os smarts, os gamings e toda a panóplia de pretenso
novo-riquismo linguístico que não é mais do que pobreza lexical disfarçada. Mas
disto já se encarregou (e bem) o escritor Alexandre Borges no artigo “Erradicar
o Português: ponto de situação” (Observador, 2021). Por fim, uma frase
delirante, dita pelo primeiro-ministro português, António Costa, perante
empresários brasileiros num encontro onde participou Lula da Silva: “O que
temos mesmo pena é de não falarmos com o vosso sotaque.” Não se imagina tal
frase dita por um brasileiro a um português. Ou um nortenho a um alentejano, um
beirão a um algarvio, um inglês a um americano, um escocês a um londrino — e vice-versa,
em todos os casos. Porque é mesmo pela diversidade de sotaques que se torna
interessante o nosso intercâmbio linguístico, não por um qualquer aplainamento
ou acto bajulatório disfarçado de admiração. Foi esse erro, o de se achar que
havia uma “língua portuguesa” igual para todos, quando já era saudavelmente
diferente consoante as geografias, que conduziu ao desastre do Acordo
Ortográfico de 1990, uma peça demonstrativa do pior que poderíamos juntar: a
ambição política, a servidão académica e o desvario de um punhado de crentes
que se julgaram “iluminados” para tal façanha. Se, por hipótese, alguém se
virasse para um amigo e dissesse qualquer coisa como “o que tenho pena é de não
usar um fato como o teu”, viam nisso sinal de amizade? Ou razão para desconfiar?
Nuno Pacheco – Portugal in “Público”
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