“Essa Gente”, romance do compositor e escritor Chico Buarque (Rio de Janeiro, 1944), laureado com o Prémio Camões em 2019, foi traduzido e publicado pela Gallimard com o título “Ces gens-là”.
A
narrativa, que navega entre o romance epistolar e o diário, forma um
quebra-cabeças que levará o leitor pelos caminhos da perdição do protagonista
Manuel Duarte. Escritor sexagenário que foi autor de um romance histórico que
se tornou em best-seller nos anos 1990, ele está agora sem inspiração e
com a vida afetiva (separado da mulher e mantendo com o filho adolescente uma
relação distante) e material em franca decadência, vendo-se ameaçado de despejo
do seu apartamento num condomínio, cuja renda não consegue pagar. Ele tem o
hábito de deambular pelo bairro do Leblon, desfrutando da brisa e da praia,
quando a cidade e o país passam por um dos maiores sobressaltos sociopolíticos
da História recente: a eleição de Jair Bolsonaro em 2019, apoiado
maioritariamente pela elite branca brasileira, o grupo ao qual pertence o
protagonista.
Profundamente
antifascista e um dos mais ativos artistas opositores à Ditadura Militar
(1964/1985), Chico Buarque logo se mostrou indignado pela chegada ao Planalto
deste novo Presidente de extrema-direita. Já Manuel Duarte, todavia, lança um
olhar distanciado sobre esse episódio político e sobre os velhos demónios da
sociedade brasileira: os traumas da ditadura, a desigualdade social, o racismo,
o fanatismo religioso, o ecocídio…
Duarte
(não muito diferente de Buarque em termos de sonoridade…) é o que Chico poderia
ter sido, mas não foi. Descendente da “aristocracia intelectual” brasileira
(filho do célebre historiador Sérgio Buarque de Holanda), Chico Buarque, ao
contrário do protagonista de “Essa Gente”, optou pela intervenção social e política
através da Arte ao longo da sua carreira, tendo sido um dos mais acérrimos
opositores ao antigo Presidente Bolsonaro.
Já
Manuel Duarte, por seu lado, parece o oposto do seu criador, embora, por vezes,
como se sabe, os opostos também se toquem. Duarte é o burguês apático que escolheu
ser indiferente ao sofrimento da maioria da população brasileira que sofre.
Chico
Buarque, neste livro que é político sem o ser abertamente, retrata igualmente
aqueles “desfavorecidos” que tudo fazem para se aproximarem, muitas vezes
deformando-se moralmente, dos “poderosos”, sonhando ser como eles e deter um
poder que permite o espezinhamento do “fraco”. É desse outro tipo de violência
que fala este livro. Uma violência diferente da “violência das favelas”.
Esta
crueldade é de classe alta e visa a humilhação de porteiros de condomínios,
criadas e babás, o espancamento de sem abrigos indefesos por meninos bem e a
caça ao esquerdista. A prova de que a mentalidade colonial e esclavagista ainda
está bem viva no Brasil.
É
então o retrato de um mundo grotesco, tanto real como fantasiado, que dá um
sabor cómico q.b. à história. Cabe ao leitor decidir que Chico Buarque prefere:
o romancista ou o músico. Nuno Garcia – França in “Novo
Jornal”
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