I
Pelo
que me lembro, na minha chamada memória recorrente desde priscas eras de
atiçado buscador e ledor voraz, Bocage era e ficava entre um Pedro Malasartes (figura tradicional nos contos populares da
Península Ibérica, tido como burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável
de expedientes, de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos) e um Casanova
(Giacomo Girolamo Casanova, escritor e aventureiro italiano, tendo interrompido
as carreiras profissionais que iniciou — a militar e a eclesiástica — e que passou
a levar uma vida aventurada), em terras de Camões, Eça de Queiroz e Fernando
Pessoa, muito antes ainda de José Saramago, portanto. Tinha-o como um boêmio
aprontador em terras lusas de Cabral e de Pero Vaz Caminha.
Lendo
agora Bocage, o perfil perdido, que virou clássico da obra-pesquisa-documentário
do mestre e doutor Adelto Gonçalves, depois de levar tempo para lê-lo, tal o
peso do livraço e a densidade do historial enquanto pesquisa e documentário também,
posso dizer que tive uma universidade de mais de ano inteiro sobre o poeta. Afinal,
um curso e tanto, um livro precioso, com aulas magnas desse que já é escritor
esmerado de tantos outros portentosos livros, que tive o prazer de ler, curtir
e gostar, e até me mesmo fazer aqui e ali breves resenhas.
Mas
com Bocage, sinceramente, tenho medo de me perder. Bocage, uma lenda, um mito,
muito além de um Pedro Malasartes (como eu imaginava que era) e muito além de
um Casanova que também aludi que fosse. O livro Bocage: o perfil perdido,
com qualidade historial, destrincha o mito de fio a pavio, e você lendo o
projeto exuberante de livro acaba se sentido um, por assim dizer, formado,
diplomado e finalmente inteirado e expert em Bocage. Já pensou?
Num
apanhado imediato de querer saber quem foi Bocage, está lá o apanhado, curto e
grosso: Bocage, poeta português, nasceu em 1765 e faleceu em 1805. Além de
escritor e boêmio, foi militar e tradutor. Suas obras apresentam marcas árcades
e românticas. O poeta é bastante lembrado por seus poemas satíricos e de cunho
anedótico. Ah, mas a figura lendária do literato e poeta Manuel Maria Barbosa
du Bocage é a do maior representante do arcadismo lusitano. Ou, ainda, Bocage
foi um poeta de transição entre o arcadismo — seu pseudônimo árcade era Elmano
Sadino — e o romantismo. Seus textos apresentavam características de ambas as
estéticas, além de peculiaridades, como amor idealizado, sofrimento
existencial. Ele era um poeta cheio de lirismo, erotismo, individualismo e
sátiras, com uma linguagem neoclássica, ou seja, clara, abreviada, correta e
pomposa. Os temas mais explorados eram bucólicos, pastoris e da mitologia
clássica.
II
Bocage:
o perfil perdido,
de Adelto Gonçalves, vai fundo na pesquisa, na história, desde meados de 1711
até muito além da morte desse personagem crucial e criador de arte literária de
primeira qualidade para a época em terras lusas, entre viagens, contações,
registros, altos e baixos, melindres e concessões, fugas e deserções, naus e
glórias, implicações e afetos, sangrias desatadas, polvorosas e amizades e
conflitos.
Cantava
a vida como o cisne canta a morte, disse ele. Quando escrevia, era um fugir-se
como quem afiava a pena feito espada, no gume de seu contemplar, sentir,
ferir-se de existir, desacomodado da vida, da sociedade, de qualquer razão pura
que tivesse para viver, pior, sobreviver, literalmente às duras penas, como se
sempre fugindo nos versos, nos avessos e absurtos diversos das estrofes, deles
se criando, desse seu tear lírico se alimentando, se provendo; criar para fugir
da ilha de ser-se ou de se ser? Ah, o mito, a lenda, as vazantes criativas.
O
livro Bocage, o perfil perdido passa limpo uma vida de quem garimpou com
bateia de poemas ora sofridos, ora datados, ora esculachando, criando inimigos
e rancores, resmas de rimas, sentimentos revisitados, a cara e a coragem (e a
ousadia) de ser ele mesmo, com seus íntimos mares navegando fastios e buscas,
bandeiras e naus tenebrosas de seu tempo aqui e ali cruel com o poeta.
A
obra destrincha, revela, tira véus, relata paulatinamente e tintim por tintim,
um historial de vida, percalços, artes e vertedores, motivos e purgações,
irrazões e deszelos... Eis o homem, eis o poeta Bocage, muito além de si mesmo,
muito além de seu tempo, firmado no macadame da história agora contada com
primor.
III
Escrevendo,
ele desafiava seus limites, entre distanciamento e aproximação. Escrever era
sua chama. O insurgente lado crítico de Bocage, às vezes, o arrebatava. E
criava polêmicas datadas. E a polêmica era seu mote, seu fluxo existencial. Escreviver-se.
Às vezes, a vida lhe dava meios do que buscava. E veios de criações alteradas.
E ele então se vertia todo, às vezes irônico, mordaz, ferino, polêmico. Há
caminhos e há solos de ausências em veredas e verdades.
Os
botequins de Lisboa eram a Arcádia de Bocage. Muitos confundiam a sua personalidade
poética com o homem. Com seus vários versos também escritos pela mão do
fingimento e cantados pela voz da dependência. Traduções. Elogios dramáticos.
Improvisos de poeta agonizante, depois. Lida poética insana. Tropel de paixões.
Mente aguçada, brilhante. Discursos, historietas. Gênio satírico, vida
dissoluta, pendor para composições obscenas. Pavorosa ilusão da eternidade. Um
artista contraditório que construiu ao longo de sua produção poética.
Isso,
entre tantas informações depuradas, é o que se depreende do livro. Biografia
rigorosamente pesquisada, regiamente documentada. Apresenta uma árvore
genealógica do poeta enquanto mito e lenda, corrige erros históricos, relata
contendas e a conseguinte grande produção poética de alto quilate. Um poeta muito
além de seu tempo, muito além de sua morte. Por essas e outras, Bocage escrevia
muito e tanto, em tempos difíceis, para confirmar talvez o que nos disse
Danúbio Torres Fierro: “Escrever é criar para si uma identidade”. Eis o livro,
eis o homem, eis Bocage.
IV
Adelto
Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana, e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o perfil perdido
(Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo-Imesp,
2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),
Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
LetraSelvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Silas Leite
- Brasil
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Bocage, o
perfil perdido, de Adelto Gonçalves. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), 520 páginas, R$ 85,00, 2021. Site:
https://livraria.imprensaoficial.com.br/
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Silas Corrêa Leite, escritor,
professor e blogueiro premiado, é autor, entre outros, de Transpenumbra do
Armagedom (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021), Cavalos selvagens
(Curitiba, Kotter Editorial; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2021), e A Coisa. Muito
além do coração selvagem da vida (São Paulo, Editora Cajuína, 2021). O
autor foi vencedor do Primeiro Salão Nacional de Causos de
Pescadores/USP/Jornal da Tarde/Estadão/Parceiros do Tietê; premiado no Concurso
Lygia Fagundes Telles para professor e escritor, governo do Estado de SP/Gestão
Gabriel Chalita/Secretaria Estadual de Educação; Prêmio Biblioteca Mário de
Andrade (Poesia Sobre São Paulo), Gestão Marilena Chauí (Secretaria de Cultura
de SP), Prêmio Fundação Petrobrás de Contos, curadoria Heloisa Buarque de
Holanda; prêmio Simetria (Microconto) e Prêmio Instituto Piaget (Cancioneiro
infanto-juvenil), ambos em Portugal). Site: www.poetasilascorrealeite.com.br - E-mail: poesilas@terra.com.br
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