Obra reúne memórias do
jornalista Fernando Mitre, que organizou vários debates televisivos entre
candidatos a presidente da República
I
Boa parte
da história do regime democrático restaurado no Brasil após os 21 anos de
trevas que marcaram o regime militar (1964-1985) pode ser revivida a partir dos
acontecimentos que assinalaram os debates televisivos entre os candidatos às
vésperas das eleições presidenciais. É o que se pode constatar no livro Debate
na Veia – Nos Bastidores da Tevê – A
Democracia no Centro do Jogo (Taubaté-SP,
Editora Letra Selvagem/Curitiba, Kotter Editorial, 2023), do jornalista
Fernando Mitre, responsável por produzir os debates realizados sob as câmeras
da Rede Bandeirantes de Televisão durante grande parte daquele período.
Com larga
experiência no jornalismo impresso, Mitre soube levar para o jornalismo
televisivo o comportamento ético e isento que até então não se via naquele
setor de mídia e que marcou especialmente aquela rede de televisão, já que o
grupo concorrente, a Rede Globo de Televisão, haveria de afrontar tudo o que se
podia esperar de uma atuação imparcial e responsável, ao editar e manipular o
debate final entre os canditados Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor em
1989, privilegiando a atuação daquele que haveria de se eleger presidente da
República.
Como
observa no prefácio o professor Roberto DaMatta, antropólogo, filósofo e
produtor de TV, Fernando Mitre, o maior e mais experiente produtor de debates
políticos no Brasil, “atinge na veia este palco revelando o ‘candidato’ a olho
nu e em estado de graça”. De fato, o jornalista, com um texto límpido e atraente,
revive os momentos mais emocionantes e pitorescos daqueles duelos
pré-eleitorais em que se via por trás a isenção democrática e profissional de
quem organizava e conduzia os debates, o que não se constatava quando o debate
era organizado pela rede concorrente.
Ao mesmo
tempo, através das memórias do autor, o leitor começa a desfrutar do
aprendizado do experiente jornalista, que teve a oportunidade de estar lado a
lado com as principais figuras do cenário político brasileiro, chegando ao
ponto, por circunstâncias alheias à política, a morar em casa vizinha à
residência do ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992).
II
O autor
observa que um debate entre presidenciáveis “pode ser um campo fértil para uma
análise política abrangente, que consiga ferir a superficie das declarações e
atitudes dos candidatos, penetrando mais fundo, muitas vezes encontrando ali
informações, intenções e pistas não explicitadas. Ou não facilmente visíveis –
que, depois, podem aparecer de corpo inteiro, por exemplo, nas alianças e
compromissos de candidatos ou já no exercício do poder dos eleitos”. Como
diz Mitre, nos debates, “é quando as
dissimulações de campanha, arte política sempre presente, começam a se
dissolver – como pode ser mostrado por uma cobertura jornalística de
qualidade”, ou seja, absolutamente imparcial.
Outra
observação importante que o leitor vai encontrar neste livro surge quando o
autor diz que, depois de mais de 50 debates realizados por várias emissoras, o
que se constata é o fracasso do regime democrático até aqui pelo menos no
combate às injustiças sociais, com a prevalência da opressão das classes ricas e
super ricas sobre os deserdados da terra, “quando mais de 35 milhões de
brasileiros passam fome e pelo menos 62 milhões vivem na pobreza”.
Diz Mitre:
“Tudo isso aparece nos debates entre os candidatos, o que mostra a grande inconsequência
dos discursos políticos. Escancara causas e efeitos de uma sociedade que abusa
da desigualdade, plantada sobre raízes, cada vez mais pesquisadas, estudadas,
avaliadas e divulgadas no país”.
Já a
professora e historiadora Heloísa Starling, considerada autoridade em estudos
sobre a última ditadura que infelicitou o País, no texto de apresentação
publicado na contracapa, observa que esta obra reúne momentos históricos
narrados com a inevitável emoção, “que envolveu aquele foca anônimo e
desabusado, que cobria, meio perdido, o dramático comício da Central do Brasil,
no Rio, e agora envolve, quase 60 anos depois, o conhecido diretor de
jornalismo da Band”.
Como se
sabe, o referido comício, realizado dia 13 de março de 1964 e considerado o
último vagido da democracia à época, pois serviria como pretexto para que as
forças conservadoras e retrógradas, apoiadas por trás pelo serviço de
espionagem dos Estados Unidos, a Central Intelligence Agency (CIA), instaurassem
o regime militar.
III
Aqui neste
livro o leitor não só conhecerá os meandros dos debates entre presidenciáveis e
as dificuldades para a sua realização, levando em conta os mesquinhos interesses
particulares de cada candidato, mas também os bastidores de uma redação, a do
exinto Jornal da Tarde, que circulou até 2012, a uma época
em que o jornalismo impresso era fundamental e, diante da importância da
notícia, chegava-se até a imprimir edições extras, como se deu ao tempo do
assassinato do político norte-americano Robert Kennedy (1925-1968).
Ou a emoção
vivida por vários jornalistas, também em 1968, ano mais tenebroso do regime de
exceção instaurado em 1964, quando uma bomba explodiu na madrugada do dia 28 de
abril, um sábado, à entrada do prédio da rua Major Quedinho, 28, então sede da
S.A. O Estado de S.Paulo, empresa a que pertencia o Jornal da Tarde.
Por acaso, um grupo de jornalistas, se não tivesse permanecido mais alguns
minutos na redação a resolver problemas de edição, poderia ter sido atingido
pela explosão, que, afinal, só deixaria ferido o porteiro.
Da obra,
constam ainda testemunhos dos jornalistas André L. Costa, Fernando Mattar,
André Basbaum e Rodolfo Schneider, que também participaram e ajudaram Mitre a
organizar vários dos debates realizados pela Rede Bandeirantes de Televisão.
Enfim, são muitos os fatos importantes resgatados por esta obra, que não só
passa a fazer parte da história de democracia brasileira como deveria ser
adotada como leitura obrigatória nos cursos universitários de Jornalismo.
IV
Fernando
Mitre (1943), nascido em Oliveira, Minas Gerais, é um notável jornalista
brasileiro, atual diretor nacional de Jornalismo da Rede Bandeirantes de
Televisão. Graduou-se em Letras e pós-graduou-se em Teoria Literária pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. Graduou-se também em
Direito e Ciências Econômicas pela Universidade de Minas Gerais (UMG), em Belo
Horizonte.
Começou a
carreira como jornalista em 1963 no jornal Correio de Minas,
de Belo Horizonte, como repórter. Em Belo Horizonte, passou por outros jornais
como o Diário de Minas e o semanário O Binômio. Em
1966, recebeu proposta para integrar a
equipe que fundaria o Jornal da Tarde, em São Paulo, sob o
comando do jornalista ítalo-brasileiro Mino Carta, e tempos depois, de Murilo
Felisberto (1939-2007). No Jornal da Tarde, assumiu
diversas funções até se tornar diretor de redação, cargo que ocupou durante 13
anos. Criou e dirigiu em 1984 a revista Afinal, que parou de circular em
1988.
Em 1989,
passou a trabalhar na Rede Bandeirantes de Televisão, onde se tornou, desde
março de 1999, diretor nacional de Jornalismo. Mitre apresenta aos domingos à
noite o programa de televisão Canal Livre, por onde passaram
figuras importantes do cenário nacional e internacional. Apresenta na BandNews
TV a coluna eletrônica A Notícia. Na Band, faz as
críticas políticas e econômicas do Jornal da Noite.
Recebeu, entre
vários prêmios, o Grand Prix do Clube de Criação de São Paulo, em 1984, pela
sequência de capas do Jornal da Tarde, na cobertura da
mobilização popular e da derrota da emenda das “Diretas Já” no Congresso
Nacional. Ganhou também o Grande Prêmio APCA, em 1989, pela realização do
primeiro debate entre candidatos a presidente da República. Foi premiado ainda
como o melhor Executivo de Veículo de Comunicação,
por três anos, além de ter recebido o título de Mestre em Jornalismo do Prêmio
Comunique-se, em 2013. Adelto Gonçalves - Brasil
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Debate na Veia – Nos Bastidores da Tevê – A
Democracia no Centro do Jogo, de Fernando Mitre, com prefácio de
Roberto DaMatta e texto de apresentação de Heloisa Starling. Taubaté-SP:
Editora LetraSelvagem; Curitiba: Kotter Editorial, 312 páginas, R$ 90,00, 2023.
E-mails: editoraelivrarialetraselvagem@gmail.com; contato@kotter.com.br
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Adelto
Gonçalves, jornalista, mestre em
Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras
na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona e Voz de Deus
(Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Robbin Laird, editor, 2024), publicado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Bravo! ao comentarista e ao ilustre jornalista Fernando Mitre.
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