Em nova
obra, “Lá, Seremos Felizes”, Nicodemos Sena reconstitui o drama dos marginalizados
através de personagem neopícaro
I
A
missão da história e da crítica literária consiste num trabalho permanente de
revisão do passado, com vistas a uma avaliação mais correta da sua herança para
as gerações futuras, como observa o professor Massaud Moisés (1928-2018) em Machado
de Assis: Ficção e Utopia (São Paulo,
Editora Cultrix, 2007, p. 21). Nesse sentido, o romance Lá, Seremos
Felizes (Curitiba, Kotter Editorial, 2025), de Nicodemos Sena, é um
exemplo bem-acabado para a reavaliação por que passa a história literária que
tem a Amazônia como fulcro, consolidando o nome do seu autor como um dos
principais escritores que tomaram aquela região como tema para suas obras, ao
lado de Euclides da Cunha (1866-1909), Dalcídio Jurandir (1909-1979), Luiz
Bacellar (1928-2012), Aníbal Beça (1946-2009), Márcio Souza (1946-2024), Milton
Hatoum e Eliane Brum.
Lá,
Seremos Felizes conta a trajetória de Lázaro, um jovem de 17
anos, “órfão de pai aos oito meses de idade, sem estudo”, que “cresceu largado
por esse mundão de meu Deus”, “comendo o pão que o diabo amassou”, abandonado
na Amazônia das décadas de 1930 e 1940. E que vivia “nessa porra de vida, rolando
de um lugar para outro, sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem coisa nenhuma”, ou
seja, “não era de nenhum lugar”.
Ao
contrário de obras mais antigas, a narrativa se afasta dos estereótipos
coloniais e exóticos ligados à Amazônia, criados especialmente por
aventureiros, naturalistas, viajantes e exploradores sempre ávidos por suas
riquezas. E mais importante: dá voz a seus habitantes, a partir da utilização
de seu linguajar comum, seus hábitos e visão do mundo. Ou seja, a visão que se
tem é de quem nasceu e viveu na Amazônia e não a de quem a olha de fora.
Um
exemplo significativo está neste trecho em que Lázaro encontra Raquel, que era “branquinha
e loura, magra como uma vara de pescar”, mas que fora criada por uma “caboclona
morena e atarracada” e comunicava-se numa “língua estranha”, o tupi antigo
falado pelos maués, etnia indígena, cujas mulheres haviam sido proibidas
de falar a língua dos portugueses invasores: (...) Che rori catu
nde rurari (...) Arêp arêpe tuérut / Quiát
oiquêt-ta-capêi / Arêt arêpê tuérut
(tradução: Estou muito contente com a tua
vinda (...) Vim cantando / De onde durmo
vim cantando / Eu vim cantando).
II
De
fato, como observa no texto de apresentação o escritor, tradutor e editor
Salvio Kotter, Sena, desde o seu livro de estreia, A Espera do
Nunca Mais: Uma Saga Amazônica (1999), “vem
construindo um painel ao mesmo tempo extraordinário e estarrecedor de uma
região saqueada e vilipendiada em seus bens naturais e culturais”. E neste seu
novo romance mostra uma Amazônia bem diferente daquela que se vê em obras de
outros autores, já que permeada por termos do dialeto dos povos originários,
como Noçoquem (paraíso), iporanga (bonito), Guaraci (sol),
Iaci (lua), tajasú (porco do mato), Cicantá (inferno) e
outros, que eram falados por Raquel, mas desconhecidos de Lázaro, embora aquela
fosse a língua dos antepassados que corria em seu sangue.
Dessa
maneira, o autor consegue recriar um universo mítico, mas, ao mesmo tempo, realístico,
pois não deixa de assinalar as marcas da violência dos mais fortes sobre os
mais fracos, característica, aliás, da própria sociedade brasileira em que os
ricos e super-ricos mantêm os pobres e remediados sob a tacão da opressão,
manipulando-os, agora favorecidos pela tecnologia oferecida pelas redes sociais
que os induz a votar em seus opressores.
III
A
partir do nome do personagem principal, o anti-herói Lázaro, não há como evitar
que se classifique este romance pelo menos como neopicaresco, pois seria
impossível recusar a sua comparação com Lazarillo de Tormes
(1573), de autor anônimo, uma das obras-primas da literatura espanhola e
universal. Sem contar que Sena no capítulo 14, “Um pobre feliz”, reproduz como
epígrafe um trecho daquela narrativa espanhola anônima: “A cada manhã, ia o
infeliz com aquele ar de felicidade e andar altivo a engolir vento pelas ruas”.
Ocorre
que este livro não é conduzido por um narrador-personagem, em tom
pseudo-autobiográfico como o Lazarillo de Tormes, condição
sine qua non para que fosse enquadrado no gênero
picaresco. Pelo contrário, o narrador, ocasionalmente, escreve em primeira
pessoa, mas sempre discorrendo sobre as aventuras de Lázaro, embora, a certa
altura, no capítulo 11, “Tempo de guerra”, admita que “a história do pequeno
Lázaro” também é a sua história, ou seja, o narrador aqui parece funcionar como
alter ego do autor.
Seja
como for, o texto autobiográfico do Lazarillo é um recurso, um achado ao
tempo de sua criação, mas que hoje constitui uma técnica limitadora, embora nem
por isso ultrapassada. Além do mais, não haveria sentido em se repetir o
esquema clássico da picaresca para contar fatos que teriam ocorrido na primeira
metade do século XX.
Em
outras palavras: a picaresca clássica é irrepetível e só tem sentido se
associada aos séculos XVI e XVII, como se pode constatar em outras obras
precursoras do gênero: La Vida del Buscón (1626),
de Francisco de Quevedo (1580-1645), e Guzmán de Alfarache
(1599-1604), de Mateo Alemán (1547-1614). Aliás, deve-se ressaltar que esta última obra
estabeleceu definitivamente as características esboçadas em Lazarillo de
Tormes, mostrando o pícaro por completo, ou seja, um tipo que vive à
margem da sociedade, procurando escapar da miséria.
Portanto,
ao tentar se filiar a recente obra de Sena a esse gênero, não se pode deixar de
comparar o seu Lázaro moderno ao modelo ancestral, ou seja, a sua origem
infame, a sua tendência a não se fixar em lugar nenhum, a luta pela
sobrevivência e o tema da fome, que poderia levar o protagonista até a cometer
atos reprováveis. Mas este não é o caso de Lázaro, que sempre se sujeita aos
piores serviços, sem se revoltar.
Afinal,
como nas sociedades injustas de hoje, a nobreza espanhola ao tempo do pícaro
era responsável pelos desníveis sociais que levavam à delinquência urbana e
rural. Quer dizer: aos nobres tudo era permitido, pois, dificilmente, alguém daquela
classe social era processado, muito menos punido, já que a justiça dos homens
sempre o protegia. E a repressão era feita somente contra os não-privilegiados.
Mas
isso não significa que, por outro lado, esta obra seja tributária do realismo
socialista que fazia dos pobres sempre pessoas boas e dos ricos eternos vilões.
Enfim, seus personagens, com todas as suas limitações, são humanos. E isto
resume tudo. Portanto, o que mais se pode dizer é que Lá, Seremos
Felizes constitui uma recriação da picaresca clássica, adaptada aos
padrões dos séculos XX e XXI, ou seja, um belo e certeiro exemplo do gênero
neopicaresco, conforme definido pelo ensaísta argentino-brasileiro Mario Miguel
González (1937-2013), ex-professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), em Novela picaresca
iberoamericana: la neopicaresca brasileña (México,
Instituto Panamericano de Geografia e Historia, 1993). Está dito tudo.
IV
Nascido em 1958 em Santarém, no Pará, Nicodemos
Sena passou parte de sua infância entre os índios maués, na região de divisa
com o Estado do Amazonas. Em 1977, seguiu para São Paulo, onde teve seu
primeiro emprego numa indústria têxtil no bairro do Ipiranga, vivendo num
cortiço, onde conheceria “seres da noite” semelhantes ao que povoariam seus
futuros romances.
Formou-se em Jornalismo pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC) e em Direito pela Universidade de São
Paulo (USP). Depois de passar pelas redações de vários órgãos da imprensa
paulista, no início de 2000, recebeu convite para dirigir a redação do
jornal A Província do Pará e a principal editora de Belém, a
Cejup, trabalhando na capital paraense até o fim daquele ano, quando retornou
ao Estado de São Paulo, mais especificamente à cidade de São José dos Campos.
Em 2007 criou a editora LetraSelvagem.
Sua
carreira literária teve início em 1999 com o romance À Espera do
Nunca Mais: Uma Saga Amazônica,
obra contemplada com o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos pela União
Brasileira de Escritores, seção Rio de Janeiro (UBE-RJ), que recebeu nova
edição em 2020 pela Kotter Editorial, de Curitiba, com posfácio do escritor
Ronaldo Cagiano. Desde então, publicou diversos romances e se consolidou como
um autor de referência na literatura amazônica.
Em
2003, saiu à luz o seu segundo romance, A Noite é dos Pássaros,
publicado em formato de folhetim no jornal O Estado do Tapajós, de
Santarém, e na revista digital portuguesa TriploV. Ainda em 2003, a
obra saiu pela Editora Cejup, conquistando o Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia
Mineira de Letras e, em 2004, a menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego, da
UBE-RJ.
Já
o terceiro romance, A Mulher, o Homem e o Cão (Taubaté, LetraSelvagem,
2008), não só confirmou o seu talento como se tornou obra de referência para o
estudo temático da vida das populações marginalizadas da Amazônia. Por sua
obra, é hoje nome reconhecido fora da Amazônia, tendo se tornado verbete
na Enciclopédia de Literatura Brasileira, direção de Afrânio
Coutinho e J. Galante de Sousa (Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional e
Academia Brasileira de Letras, 2ª edição, 2001).
Em
2017, publicou pela LetraSelvagem, com prefácio deste articulista, Choro
por Ti, Belterra!, obra escrita em prosa poética e
formada por 19 episódios, em que reconstituiu o dia em que fez viagem de
retorno às origens, em companhia de seu pai, depois de um percurso de algumas
horas pela rodovia Santarém-Cuiabá, até entrar num caminho de terra que leva à
Estrada Um e, enfim, às ruínas da cidadezinha de Belterra, onde funcionou nos
anos 40 uma unidade de Ford Motor Company.
É
de se lembrar que esta empresa do magnata norte-americano Henry Ford
(1863-1947), à época da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tratou de plantar
seringueiras à beira do rio Tapajós e produzir borracha para a fabricação dos
pneus dos veículos dos exércitos aliados, depois que o seringal da Inglaterra
na Malásia caíra em poder do Japão. Em Lá, Seremos Felizes,
esse cenário é revisitado com a presença do personagem Lázaro naquela região.
Em
2018, Sena publicou Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!.
longo poema escrito no calor da luta política que irrompeu no Brasil a partir
do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016, e
da prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018. É membro da UBE-SP, da Academia de Letras e
Artes de Santarém (ALAS) e da Academia Taubateana de Letras (ATL). Adelto
Gonçalves - Brasil
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Lá, Seremos Felizes, de Nicodemos
Sena. Curitiba: Kotter Editorial, 220 páginas, 2025, R$ 54,61. E-mail: contato@kotter.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo, Imesp/Academia Brasileira de
Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial –
1709-1822 (São Paulo, Imesp, 2015), Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo - 1788-1797 (São Paulo, Imesp,
2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell
on Global Trends (Robbin Laird, editor, 2024), publicado
na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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