Obra
do professor Flávio R. Kothe faz uma revisão de ideias feitas repassadas a
gerações de leitores
I
Uma
revisão radical de conceitos e preconceitos, além de uma profunda reavaliação
de obras tidas como consagradas, é o que o leitor irá encontrar em Cânone
Imperial (São Paulo, Editora Cajuína, 2025), do professor e tradutor
Flávio R. Kothe. Trata-se de uma continuação do livro O Cânone Colonial,
publicado pela Editora da Universidade
de Brasília (UnB), em 1997, que recebeu versão revista e ampliada, em 2020,
pela Editora Cajuína. A obra reúne
ensaios que analisam e redescobrem textos de autores que foram esquecidos por
questões ideológicas e contesta outros que fazem parte de antologias e livros
didáticos que teriam sido escolhidos não por sua qualidade artística, mas por
conveniência política, por convicção doutrinária ou por imposição do establishment.
Logo
no primeiro capítulo, o ensaísta contesta autores consagrados como frei Santa
Rita Durão (1722-1784), José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias
(1823-1864), que, à época da falência do sistema escravagista, exaltavam a
necessidade de que para ser brasileiro era preciso ter sangue português e
indígena nas veias, discriminando negros, mulatos e imigrantes de outros países,
o que seria reforçado, mais tarde, por Oswald de Andrade (1890-1954) e,
principalmente, por Mário de Andrade (1893-1945), que “atacou os imigrantes
italianos e alemães, a industrialização e a emancipação da mulher”.
No
mesmo ensaio, o professor lembra que se faz de conta que a história brasileira
começou em 1500, quando teve início a invasão do território por portugueses, episódio
que é definido nos livros como “descobrimento”, como se antes não tivesse
havido gente por aqui, os povos originários. Ou nas palavras do ensaísta: “O
cânone sacraliza a ocupação, para que não se perceba quanto sangue pinga em
cada palavra”.
Segundo
Kothe, com o cânone, os autores escrevem dentro desse paradigma, repetindo o já
consagrado, sem deixar nada de novo a se dizer. “Assim, são valorizadas obras
que ficam no mesmo e são deixadas de lado obras que possam ir além”, diz. E,
portanto, como deixa claro, “há uma inversão de valores que parece natural”.
Como
exemplo, cita, entre outros, a ocorrência da chamada Inconfidência Mineira, em
1789, observando que os poetas da época são todos lidos como “inconfidentes”,
como se os seus textos tivessem sido escritos da perspectiva de um Brasil
independente e autônomo. E observa que, “de um alferes boca-grande e sem maior
preparo nem liderança, fez-se um Cristo nacional”, referindo-se a Joaquim José
da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), aquele que pagou o pato pela
urdidura do plano da rebelião que não eclodiu. Um movimento que sequer previa
dar liberdade aos escravos.
Se
se pode acrescentar alguma coisa, é para dizer que, por trás da Inconfidência
Mineira, havia o interesse camuflado dos chamados “grossos devedores”, João
Rodrigues de Macedo (1739-1807) e Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), que
queriam a separação para se livrar de dívidas com o Erário Régio. É que, como
arrematantes de contratos, haviam acumulado fortunas na medida em que se
“esqueciam” de repassar para a Coroa os tributos que em seu nome arrecadavam.
Obviamente, esses arrematantes, precursores dos banqueiros de hoje, seriam
aqueles que financiariam o movimento de separação.
Aliás,
não se pode deixar de lembrar que, para o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa
(1742-1809), a ideia da revolta partira da mente de Silvério que, em razão da
falta de iniciativa dos prováveis rebeldes, decidira pular para o outro lado,
entregando todo mundo, sempre com a ideia fixa de, em troca, livrar-se das
dívidas. Sem esquecer que, anos depois, aqueles mesmos arrematantes, à força de
muita corrupção nos meios judiciários, acabariam por se livrar de possíveis
penas.
II
Como
observa o autor, com o estabelecimento do cânone, deformam-se fatos históricos,
reinando nas letras canônicas uma hipocrisia que não se vê como tal e apresenta
a si como ciência, “sem ter condições de fazer ciência e ainda impedir que
ciência se faça”. Como exemplo, lembra que a escola naturalista, que era, no
romancista francês Émile Zola (1840-1902), uma transposição do marxismo para a
produção literária, seria atacada e rejeitada de maneira reacionária por
Machado de Assis (1839-1908) no “famoso” ensaio “Instinto de nacionalidade”. E
conclui que nas Letras prepondera a direita, ou seja, a visão das classes
dominantes. Aliás, nesta nova edição de Cânone Imperial, Kothe
acrescentou um capítulo sobre Machado de Assis, mostrando como o escritor era
mancomunado com a oligarquia.
Para
o ensaísta, “trata-se de uma horrorosa deformação, de um monstro que anda solto
nas escolas, universidades, bibliotecas e instituições de pesquisa, mas que é
encarado como absolutamente normal, só aparecendo como deformação o que não
veja no monstro um mostruário do que de melhor se produziu no país”. Em outras
palavras: “O que foi historicamente formado, segundo os interesses e a
perspectiva de uma casta dirigente, logo se entende como algo eterno e sagrado,
como um tabu que se autoconsagra e exige temor reverencial”, diz o ensaísta.
III
Em
outro ensaio, Kothe observa que “o cânone nacional discrimina não apenas a
literatura oral de índios, negros e mestiços, mas também a literatura
brasileira publicada em língua alemã, italiana, polonesa, tutti quanti
não se curvassem à fala do senhor”. Nesse sentido, diz, a única alternativa
aceita era a submissão. E lembra que aqueles que morrem para fazer história são
esquecidos pela história, sendo lembrados os que representam a versão
conveniente para edulcorar a dominação presente. E acrescenta:
“Sempre se tem elogiado a política de assimilação,
celebrando como progresso o genocídio espiritual que ela envolve. Daí também o
cinismo de considerar liberal um escravagista como Alencar, exilado um
favorecido pelo poder real como Gonçalves Dias, expulso um privilegiado como
Casimiro de Abreu. A divisa do cânone é mintam, mintam, que muita coisa há de
ficar. Gerações e gerações e crianças brasileiras são assim doutrinadas nas
escolas, que deformam suas mentes a pretexto de ensinar”.
Basta
ver que a mentira ou a deturpação da verdade já nasce com o próprio país, pois
a independência do Brasil é atribuída, afinal, a dom Pedro (1798-1834) e ao
gesto teatral que teria feito às margens do rio Ipiranga, a 7 de setembro de
1822, esquecendo-se centenas de cidadãos que morreram pela libertação do jugo
português. Não se pode esquecer também que a princesa Leopoldina (1797-1826),
esposa de dom Pedro, assinou decreto de independência no dia 2 de setembro, durante
a ausência do marido em São Paulo, e que ela presidiu o Conselho de Estado que decidiu
pela separação. E que, em seguida, enviou a notícia a dom Pedro. Portanto, a 7
de setembro, o Brasil já estava separado de Portugal. Como observa Kothe, o que se seguiu depois foi
um discurso machista que tratou de apagar a sua participação no processo da
Independência.
Hoje, sabe-se que o ato às margens do Ipiranga não passou de uma reconstrução feita anos depois, quando a separação já estava consolidada, pois quem for aos arquivos em busca de referências a esse episódio em jornais e panfletos da época nada vai encontrar. Na verdade, a separação foi proclamada no dia 1º de agosto de 1822, no Rio de Janeiro, em manifesto que contém o plano de governo de dom Pedro e a convocação dos “brasileiros em geral para que se unissem em torno da causa da Independência”.
IV
Um
dos construtores dessa história do Brasil oficial, que inclui a história
literária, seria o escritor José Veríssimo (1857-1916), estudioso da Literatura
Brasileira e principal idealizador da Academia Brasileira de Letras, segundo o
qual “o romantismo teria traduzido fielmente os sentimentos e as aspirações da
nova nacionalidade”. Para o ensaísta, aqueles escritores citados acima – e que
foram enaltecidos por Veríssimo – não resistiriam à crítica não dominada pelo
temor reverencial e pela empatia direitista.
“São em geral precários documentos da história das
“ideias”, balbucios de uma literatura simplória, malfeita, que é considerada
“clássica” para ser imposta pela classe alta nas classes do sistema escolar”,
observa. E conclui: “Parecem ter valor por terem se perenizado, mas foram
perenizados porque convinham à mente e aos interesses dos dominadores”.
Segundo
Kothe, sempre se procurou esconder as lutas que foram travadas pelo povo
brasileiro na Bahia e no Piauí, em 1823, para afastar as tropas lusitanas que
não aceitavam a separação política. E que, no Sul, em 1823, muitos colonos
alemães participaram da guerra da independência como soldados do Regimento de
Estrangeiros, criado por decreto em janeiro daquele ano. “Teriam participado de
mais de 500 combates, algo que também não é reconhecido”, diz.
Seja
como for, haverá sempre quem estranhe estas ou aquelas conclusões,
considerando-as talvez exageradas ou uma crítica radical e por demais
abrangente, porque, afinal, contestam interpretações que nos foram repassadas
por anos a fio, mas para abrir polêmica com o autor é preciso ler e reler todos
os 87 ensaios constantes desta aprofundada obra que, desde já, torna-se um
marco do revisionismo das ideias feitas que nos foram legadas por escritores
tidos como consagrados.
Questionado
sobre isso, o autor respondeu a este resenhista que não considera que tenha
exagerado nas críticas. “Elas são uma antítese ao discurso vigente, mas não
vivem dele. O problema é outro. É preciso que cada professor (e cada aluno)
veja que é corresponsável na formação e consolidação de uma mentalidade
estreita e reacionária do povo brasileiro, geração após geração, formando uma
população que não consegue sequer discernir com clareza os seus próprios
interesses e vota conforme lhe é sugerido pelos senhores da fala, seus senhores”.
Para
o professor, o importante é ver como o cânone forma a estrutura da mente
brasileira, com todas as suas limitações. “Talvez a obra de Dostoiévski sozinho
valha mais que todo o cânone imperial aí em pauta”, conclui.
V
Nascido
em Santa Cruz do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, Flávio René Kothe
(1946) é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP), com livre-docência pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC), de Campinas. Fez estágios de pós-doutorado nas universidades de Yale, nos
Estados Unidos, Heidelberg, Berlim, Konstanz, Bonn e Frankfurt, na Alemanha.
Lecionou também na PUC, de São Paulo, e na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Foi professor visitante nas universidades de Rostock, na Alemanha, onde
conseguiu refúgio por cinco anos, fugindo da perseguição da ditadura militar
brasileira (1964-1985), e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Depois
de ter sido eliminado da UnB pelo regime militar, retornou como anistiado em
1994. É pesquisador sênior e professor titular aposentado de Estética. Na
Europa, teve como interlocutores alguns dos maiores nomes da Filosofia, da
Literatura e de outras Ciências Humanas. Em seu retorno à UnB, trabalhou com as
disciplinas de Teoria Literária, Literatura Comparada, Tradução, Narrativa Trivial
e Cânone Brasileiro.
Dedica-se,
sobretudo, a questões de estética, arte comparada e semiótica da cultura.
Atualmente, coordena o Núcleo de Estética, Hermenêutica e Semiótica e é editor
da Revista de Estética e Semiótica, que está
no Portal de Periódicos da UnB. Foi presidente da Academia de Letras do Brasil,
em Brasília, por três períodos (seis anos), e é editor da revista impressa da
instituição, de publicação semestral.
Dono
de vasta obra que inclui mais de 50
livros e mais de 600 trabalhos publicados nos gêneros romance, novela, contos,
poesia, tradução e ensaios, entre os seus últimos títulos (todos publicados
pela Editora Cajuína) estão: Alegoria,
aura e fetiche (ensaios, 2023), O herói (ensaios,
2022), Benjamin & Adorno: confrontos (ensaios,
2020), O Cânone Colonial (ensaios, 2020), Literatura
e sistemas intersemióticos (ensaios, 2019), Fundamentos
da Teoria Literária (ensaios, 2019), Segredos da
concha (contos, 2019), Sem deuses mais (poesias,
2019), Casos do acaso (contos, 2018), Rio do
Sono (contos, 2023) e Crimes no campus (novela,
2023) .
É tradutor de autores como Walter Benjamin (1892-1940), Theodor Adorno (1903-1969), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Karl Marx (1818-1883), Paul Celan (1920-1970), Franz Kafka (1883-1924), Heinrich Mann (1871-1950), Patrick Süskind (1949) e outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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O Cânone Imperial: ensaios, de Flávio R. Kothe, segunda edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Cajuína, 620 páginas, R$ 160,00, 2025. Site: www.cajuinaeditora.com.br E-mail: contato@editoracajuina.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil
perdido (Lisboa, Editorial
Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os
vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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