Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Macau - “A menina da casa grande”: de budista a missionária na China

Lançado no mês passado no território, o livro “A menina da casa grande” conta a história de Ng Iun Peng, uma mulher desconhecida, que viveu a ocupação japonesa, a guerra civil chinesa e a Revolução Cultural, acabando por se refugiar em Macau

Pode ser desconhecida do grande público, mas a sua vida está longe de ser comum. Nascida em 1928, em Cantão, Ng Iun Peng passou pela ocupação japonesa, pela guerra civil chinesa e pela Revolução Cultural. Foi em Macau que se refugiou, acabando depois por viver em Portugal, durante a ditadura do Estado Novo. Viria a passar os seus anos de reforma como missionária na China continental, mas morreu em Braga, em 2022.

O livro está dividido em três partes, que seguem a vida da protagonista, conta a autora Maria Helena do Carmo ao Ponto Final. “A primeira passa-se enquanto a personagem é nova — desde menina até se tornar adulta é passada na China e uma parte no território, quando ela, depois de 1949, se refugia em Macau”, diz, acrescentando: “É aí que conhece o marido e se casa”.

Já a segunda parte versa sobre a vida em Portugal, na década de 50 e 60. “Ela vai para Lisboa e passa por bastantes dificuldades, é mesmo infeliz nessa fase”, recorda. “Depois, como é bastante fecunda [teve 10 filhos], tem problemas com a sogra e é uma vida muito difícil até chegarmos ao fim da segunda parte, quando já tem os filhos crescidos”, conta.

Por último, a autora centra-se nos anos em que Peng está reformada, a partir da década de 90, em Portugal e, posteriormente, quando decide voltar para o território, onde tem três filhos a morar. “Vai para Macau e depois resolve ser missionária em Cantão”, explica.

Os altos e baixos de uma vida

Peng nasceu em Cantão e cresceu numa moradia com um terreno muito grande. “Era onde o meu avô [Ng Yun] vivia com as sete mulheres e é a casa onde ela cresceu até fugirem para Macau”, conta ao Ponto Final um dos filhos, Joaquim Pereira.

Foi uma vida cheia de provações. “Quando tinha 14 anos, foi raptada pelos japoneses para ir trabalhar para um hangar e fazer a escavação, mas conseguiu fugir com outros prisioneiros que lá estavam”, diz a autora do livro. “A minha mãe assistiu a muitas execuções na China continental”, diz também Joaquim Pereira. “Andou semanas pelo meio da selva, viu muitos mortos, pestilência, aldeias dizimadas”, recorda o filho. “Devido àquilo que viu, teve tanto medo que nunca nos ensinou chinês — tinha medo que Mao Tsé-Tung viesse a Portugal buscar-nos”, lamenta o descendente.

Depois, durante a guerra civil chinesa, como o pai era rico e nacionalista, perdeu tudo e teve de sair da China continental. “O pai tinha terras consideráveis, tinha empresas e indústrias, comércio, era bastante rico”, diz a escritora.

Apreciador de ópio e com bastantes contactos em Macau, partiu para o território, juntamente com a sua primeira mulher e a filha Peng. “A primeira senhora do pai é que foi para Macau, porque era sempre a primeira senhora que acompanhava o marido, e levou a Peng porque gostou sempre muito da miúda desde pequenina”, conta.

Depois, já no território, a protagonista da história veio a trabalhar em Macau numa fábrica de tabaco, além de ter dado aulas de matemática numa escola chinesa, até conhecer o marido, um português chamado Fernando, que era electricista e que estava ali a cumprir o serviço militar. “Casou e foi preciso uma autorização do Vaticano, baptizou-se no dia em que se casou, mas sem fé nenhuma, para poder vir para Portugal”, diz. Conforme conta o filho Joaquim Pereira, como o pai era de um estrato social inferior, o avô acabou por cortar relações com Peng. “Foi ao funeral dele, mas nunca mais o viu em vida e sei que o meu avô era muito conhecido em Macau [médico e conhecido no meio das Letras]”, diz o descendente.

Portugal não foi fácil. “Descontextualizada do seu ambiente e cultura, chegou cá e só encontrou adversidades e, ainda por cima, sofreu alguma rejeição por ser chinesa”, declara a autora do livro. O marido também mudou de comportamento, assim que chegaram ao país europeu. “Ela gostava bastante do marido para se sujeitar a várias coisas, o marido chegava a bater-lhe”, recorda.

Mas Peng foi sempre superando os altos e os baixos da vida. “Começou a ganhar a sua vida na costura — ela comprou uma máquina de costura na Feira da Ladra, em Lisboa. Só tinha 25 escudos para pagar, mas valia 250 escudos e o senhor aceitou vendê-la”, conta. “Foi para ela um ganha-pão — começou a fazer aventais de plástico e depois comprou outra máquina, chegando a ter oito máquinas a trabalhar com empregadas e tudo”, acrescenta. Porém, considerando a saúde do marido, tiveram de sair de Lisboa e assentar em Vila Real. “É a segunda vez na vida que perde a sua independência económica”, lamenta a autora.

Na última fase da vida, já estava reformada e, em vez de se limitar a desfrutar, optou por partir para Macau e trabalhar como missionária na China continental.

O contacto com o cristianismo

Nos anos 50, quando Peng chegou a Portugal, mal falava português. “Ela vai à Feira do Livro e encontra um livro em chinês. Perguntou quanto custava e o vendedor disse-lhe que podia levar, que ninguém sabia ler isto”, conta. “Era a altura do maoismo, as pessoas tinham medo. Era uma bíblia e acabou por mudar a vida dela”, diz, acrescentando: “Ela era budista, vegetariana e aqui não encontrou nenhum templo da sua religião”. Começou então a dedicar-se ao cristianismo.

“A minha mãe, com 82 anos, teve um chamamento ‘divino’ e foi como missionária para Cantão”, conta Joaquim Pereira. “Ela conversava com a Rute [filha] e teve um sonho com imagens específicas do sítio onde era, e ela e a minha irmã, ao fim-de-semana, saíam de Macau e iam as duas correr as províncias até encontrar o sítio do sonho”, diz o filho. “Havia duas referências: muitos pobres na rua e um restaurante muito conhecido por causa dos frangos”, acrescenta.

Num desses passeios na China continental, depois de sentir o cheiro a frango assado esbarraram na casa dos sonhos de Peng, na zona de Xi Man Kou, que significa Porta do Oeste, na cidade de Cantão. “Entraram e, olhando pela janela das traseiras, a mãe disse: ‘esta é a rua do meu sonho’”. A partir dessa altura, a mãe quis alugar ali uma casa e iniciar o seu trabalho de evangelismo cristão.

Foi nessa altura que acabou por ficar conhecida como Maria Teresa de Cantão, dado o seu trabalho junto dos pobres daquela zona. “Ali, mesmo em frente a um templo budista, levava uma cuvete com arroz e dizia, quando se abria, ‘Jesus ama-te’”, recorda o filho. Por isso, a irmã tentava sempre ir ao fim-de-semana fazer companhia à mãe, com receio de alguma retaliação.

Os filhos: as maiores fontes

A oportunidade para escrever este livro surgiu pelo contacto com Joaquim Pereira, um dos filhos de Peng, que era o professor de patuá de Maria Helena do Carmo, no curso leccionado no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. “No primeiro ano do curso, a senhora estava já muito doente, numa fase final, e houve algumas vezes em que teve de interromper para ver a mãe, que estava muito mal”, diz a autora. “Ele foi contando aspectos da vida e eu achei aquilo muito interessante, podíamos fazer os dois”, continua. “Ele foi fornecendo gravações, documentos e coisas para eu ir fazendo”, diz.

Já com alguns livros publicados, a escritora refere que este é o primeiro que faz sobre uma mulher desconhecida. “Isto despertou-me interesse, porque eu queria escrever sobre uma pessoa anónima”, afirma, salientando que se tratava de uma pessoa “extraordinária”. Quanto mais se foi informando e estudando as gravações feitas pelos filhos, mais empatia ganhou pela protagonista do livro.

Os filhos de Peng, Joaquim Pereira, Ana Rute e Vítor Ng Alves, foram particularmente importantes para a recolha de informações. “O Joaquim veio aqui para a minha casa num fim-de-semana com a irmã [Rute], que foi quem mais viveu com a mãe até aos 17 anos, e contaram uma série de histórias”, recorda.

“Senti, como mulher e mãe, o que aquela mulher passou ao longo da vida”, refere. “Nasceu rica, tinha um curso médio e depois teve de ser mulher a dias e fazer limpezas para tratar dos filhos. Ela não olhou a nada para que os filhos estudassem, o marido achava que não deviam, mas ela sempre lutou por isso”, diz.

Cientes da riqueza que era a história de Peng, os filhos foram fazendo essa recolha de testemunhos em vida. Expressando-se em patuá cantonense, foi também com a ajuda dos descendentes que a escritora conseguiu perceber algumas das coisas gravadas.

De tiragem limitada, “A menina da casa grande” foi escrito por Maria Helena do Carmo e editado pelo Instituto Internacional de Macau. Luciana Leitão – Macau in “Ponto Final”


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