Lançado no mês passado no território, o livro “A menina da casa grande” conta a história de Ng Iun Peng, uma mulher desconhecida, que viveu a ocupação japonesa, a guerra civil chinesa e a Revolução Cultural, acabando por se refugiar em Macau
Pode
ser desconhecida do grande público, mas a sua vida está longe de ser comum.
Nascida em 1928, em Cantão, Ng Iun Peng passou pela ocupação japonesa, pela
guerra civil chinesa e pela Revolução Cultural. Foi em Macau que se refugiou,
acabando depois por viver em Portugal, durante a ditadura do Estado Novo. Viria
a passar os seus anos de reforma como missionária na China continental, mas
morreu em Braga, em 2022.
O
livro está dividido em três partes, que seguem a vida da protagonista, conta a
autora Maria Helena do Carmo ao Ponto Final. “A primeira passa-se enquanto a
personagem é nova — desde menina até se tornar adulta é passada na China e uma
parte no território, quando ela, depois de 1949, se refugia em Macau”, diz,
acrescentando: “É aí que conhece o marido e se casa”.
Já
a segunda parte versa sobre a vida em Portugal, na década de 50 e 60. “Ela vai
para Lisboa e passa por bastantes dificuldades, é mesmo infeliz nessa fase”,
recorda. “Depois, como é bastante fecunda [teve 10 filhos], tem problemas com a
sogra e é uma vida muito difícil até chegarmos ao fim da segunda parte, quando
já tem os filhos crescidos”, conta.
Por
último, a autora centra-se nos anos em que Peng está reformada, a partir da
década de 90, em Portugal e, posteriormente, quando decide voltar para o
território, onde tem três filhos a morar. “Vai para Macau e depois resolve ser
missionária em Cantão”, explica.
Os altos e baixos de uma vida
Peng
nasceu em Cantão e cresceu numa moradia com um terreno muito grande. “Era onde
o meu avô [Ng Yun] vivia com as sete mulheres e é a casa onde ela cresceu até
fugirem para Macau”, conta ao Ponto Final um dos filhos, Joaquim Pereira.
Foi
uma vida cheia de provações. “Quando tinha 14 anos, foi raptada pelos japoneses
para ir trabalhar para um hangar e fazer a escavação, mas conseguiu fugir com
outros prisioneiros que lá estavam”, diz a autora do livro. “A minha mãe
assistiu a muitas execuções na China continental”, diz também Joaquim Pereira.
“Andou semanas pelo meio da selva, viu muitos mortos, pestilência, aldeias
dizimadas”, recorda o filho. “Devido àquilo que viu, teve tanto medo que nunca
nos ensinou chinês — tinha medo que Mao Tsé-Tung viesse a Portugal buscar-nos”,
lamenta o descendente.
Depois,
durante a guerra civil chinesa, como o pai era rico e nacionalista, perdeu tudo
e teve de sair da China continental. “O pai tinha terras consideráveis, tinha
empresas e indústrias, comércio, era bastante rico”, diz a escritora.
Apreciador
de ópio e com bastantes contactos em Macau, partiu para o território,
juntamente com a sua primeira mulher e a filha Peng. “A primeira senhora do pai
é que foi para Macau, porque era sempre a primeira senhora que acompanhava o
marido, e levou a Peng porque gostou sempre muito da miúda desde pequenina”,
conta.
Depois,
já no território, a protagonista da história veio a trabalhar em Macau numa
fábrica de tabaco, além de ter dado aulas de matemática numa escola chinesa,
até conhecer o marido, um português chamado Fernando, que era electricista e
que estava ali a cumprir o serviço militar. “Casou e foi preciso uma
autorização do Vaticano, baptizou-se no dia em que se casou, mas sem fé
nenhuma, para poder vir para Portugal”, diz. Conforme conta o filho Joaquim
Pereira, como o pai era de um estrato social inferior, o avô acabou por cortar
relações com Peng. “Foi ao funeral dele, mas nunca mais o viu em vida e sei que
o meu avô era muito conhecido em Macau [médico e conhecido no meio das
Letras]”, diz o descendente.
Portugal
não foi fácil. “Descontextualizada do seu ambiente e cultura, chegou cá e só
encontrou adversidades e, ainda por cima, sofreu alguma rejeição por ser
chinesa”, declara a autora do livro. O marido também mudou de comportamento,
assim que chegaram ao país europeu. “Ela gostava bastante do marido para se
sujeitar a várias coisas, o marido chegava a bater-lhe”, recorda.
Mas
Peng foi sempre superando os altos e os baixos da vida. “Começou a ganhar a sua
vida na costura — ela comprou uma máquina de costura na Feira da Ladra, em
Lisboa. Só tinha 25 escudos para pagar, mas valia 250 escudos e o senhor
aceitou vendê-la”, conta. “Foi para ela um ganha-pão — começou a fazer aventais
de plástico e depois comprou outra máquina, chegando a ter oito máquinas a
trabalhar com empregadas e tudo”, acrescenta. Porém, considerando a saúde do
marido, tiveram de sair de Lisboa e assentar em Vila Real. “É a segunda vez na
vida que perde a sua independência económica”, lamenta a autora.
Na
última fase da vida, já estava reformada e, em vez de se limitar a desfrutar,
optou por partir para Macau e trabalhar como missionária na China continental.
O contacto com o cristianismo
Nos
anos 50, quando Peng chegou a Portugal, mal falava português. “Ela vai à Feira
do Livro e encontra um livro em chinês. Perguntou quanto custava e o vendedor
disse-lhe que podia levar, que ninguém sabia ler isto”, conta. “Era a altura do
maoismo, as pessoas tinham medo. Era uma bíblia e acabou por mudar a vida
dela”, diz, acrescentando: “Ela era budista, vegetariana e aqui não encontrou
nenhum templo da sua religião”. Começou então a dedicar-se ao cristianismo.
“A
minha mãe, com 82 anos, teve um chamamento ‘divino’ e foi como missionária para
Cantão”, conta Joaquim Pereira. “Ela conversava com a Rute [filha] e teve um
sonho com imagens específicas do sítio onde era, e ela e a minha irmã, ao
fim-de-semana, saíam de Macau e iam as duas correr as províncias até encontrar
o sítio do sonho”, diz o filho. “Havia duas referências: muitos pobres na rua e
um restaurante muito conhecido por causa dos frangos”, acrescenta.
Num
desses passeios na China continental, depois de sentir o cheiro a frango assado
esbarraram na casa dos sonhos de Peng, na zona de Xi Man Kou, que significa
Porta do Oeste, na cidade de Cantão. “Entraram e, olhando pela janela das
traseiras, a mãe disse: ‘esta é a rua do meu sonho’”. A partir dessa altura, a
mãe quis alugar ali uma casa e iniciar o seu trabalho de evangelismo cristão.
Foi
nessa altura que acabou por ficar conhecida como Maria Teresa de Cantão, dado o
seu trabalho junto dos pobres daquela zona. “Ali, mesmo em frente a um templo
budista, levava uma cuvete com arroz e dizia, quando se abria, ‘Jesus ama-te’”,
recorda o filho. Por isso, a irmã tentava sempre ir ao fim-de-semana fazer
companhia à mãe, com receio de alguma retaliação.
Os filhos: as maiores fontes
A
oportunidade para escrever este livro surgiu pelo contacto com Joaquim Pereira,
um dos filhos de Peng, que era o professor de patuá de Maria Helena do Carmo,
no curso leccionado no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. “No
primeiro ano do curso, a senhora estava já muito doente, numa fase final, e
houve algumas vezes em que teve de interromper para ver a mãe, que estava muito
mal”, diz a autora. “Ele foi contando aspectos da vida e eu achei aquilo muito
interessante, podíamos fazer os dois”, continua. “Ele foi fornecendo gravações,
documentos e coisas para eu ir fazendo”, diz.
Já
com alguns livros publicados, a escritora refere que este é o primeiro que faz
sobre uma mulher desconhecida. “Isto despertou-me interesse, porque eu queria
escrever sobre uma pessoa anónima”, afirma, salientando que se tratava de uma
pessoa “extraordinária”. Quanto mais se foi informando e estudando as gravações
feitas pelos filhos, mais empatia ganhou pela protagonista do livro.
Os
filhos de Peng, Joaquim Pereira, Ana Rute e Vítor Ng Alves, foram
particularmente importantes para a recolha de informações. “O Joaquim veio aqui
para a minha casa num fim-de-semana com a irmã [Rute], que foi quem mais viveu
com a mãe até aos 17 anos, e contaram uma série de histórias”, recorda.
“Senti,
como mulher e mãe, o que aquela mulher passou ao longo da vida”, refere.
“Nasceu rica, tinha um curso médio e depois teve de ser mulher a dias e fazer
limpezas para tratar dos filhos. Ela não olhou a nada para que os filhos
estudassem, o marido achava que não deviam, mas ela sempre lutou por isso”,
diz.
Cientes
da riqueza que era a história de Peng, os filhos foram fazendo essa recolha de
testemunhos em vida. Expressando-se em patuá cantonense, foi também com a ajuda
dos descendentes que a escritora conseguiu perceber algumas das coisas
gravadas.
De
tiragem limitada, “A menina da casa grande” foi escrito por Maria Helena do
Carmo e editado pelo Instituto Internacional de Macau. Luciana Leitão –
Macau in “Ponto Final”
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