Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 14 de março de 2024

Cabo Verde, África? Convenhamos!...

De há uns tempos a esta parte, vem-se assistindo a uma vaga de “africanistas” que, por algum desconhecimento, distracção, ou, quiçá, interesses de natureza ideológica, têm reivindicado a pertença de Cabo Verde ao continente africano. Parece confundirem a opção geopolítica do Estado cabo-verdiano com a geologia, a geomorfologia, a geografia, a geoquímica, a geofísica e a oceanografia do arquipélago e do litoral do continente que lhe está mais próximo que caracterizam e definem as suas afinidades. Na verdade, todas as geociências que acabamos de elencar apresentam dados convincentes de que Cabo Verde não é África nem Europa.

Cabo Verde inclui-se, geograficamente, no grupo de ilhas – arquipélagos – que se estende entre os paralelos 15º e 40º Norte em frente ao continente africano que se denomina “Atlântida” ou “Macaronésia”. Desse grupo fazem parte os arquipélagos da Madeira, Selvagens, Canárias e Açores; e o mais próximo, de entre estes arquipélagos, do continente africano é o das “Canárias” que se situa a menos de escassos 100 Km da costa africana enquanto Cabo Verde entre 450 a 600 Km.

Para melhor enquadramento geográfico de Cabo Verde não nos parece despiciendo referir que a plataforma continental – “continuação” submarina ou “parte submersa” do continente – que envolve a África tem uma extensão média de apenas 25 Km e uma profundidade que, normalmente, não deve ultrapassar os 200 metros. A completar este raciocínio de individualização física do arquipélago em relação ao continente que lhe está mais próximo, será importante referir as batimétricas que circundam o arquipélago cabo-verdiano onde vamos encontrar profundidades da ordem dos 3500 metros, que constituem barreiras significativas de separação entre o arquipélago e o continente, barreiras estas que não podem ser consideradas apenas de natureza topográfica.

Dizer que Cabo Verde é, geograficamente, África, significa, rigorosamente, dizer que Açores, Madeira e Canárias são também África, uma vez que “são bem estreitas as afinidades biogeográficas” (Geógrafo e Investigador Francisco Tenreiro) entre eles.

Outra confusão que igualmente decorre dos “africanistas”, esta, parece-nos, de natureza estritamente ideológica, é a generalização, a nosso ver, abusiva, da inclusão de Cabo Verde no processo geral do colonialismo africano.

Antes de mais, não é subestimável, o ponto de partida. Primeiro, da ocupação do território; depois, do exercício efectivo do colonialismo europeu que se situa, com algum rigor histórico, a partir da Conferência de Berlim em 1885 – bem depois da instalação (1866) do Seminário-Liceu em S. Nicolau! – e não na data dos “descobrimentos dos caminhos marítimos” do século XV.

A maior parte dos estudiosos da colonização admite que ela só pode existir se houver população autóctone.

É consabido que Cabo Verde não era habitado aquando da chegada dos portugueses, et pour cause, são os seus primeiros habitantes. Era o que se designa na linguagem jurídica res nullius, o que leva alguns autores, designadamente António de Sousa em “Colonização Moderna e Descolonização” a defender que não se podia falar, com propriedade, de colonização, mas sim de povoamento, uma vez que à data dos descobrimentos, não tinham os territórios [da Macronésia] «nenhum povo autóctone nem nenhuma cultura indígena». Esta concepção, embora seja maioritariamente defendida, não é unânime dado que a questão de quem detém o poder, – político e económico – poderá ser fracturante na definição de colonização, admitem uns poucos. Não está em causa, neste momento, a abordagem deste contexto, que é deveras complexo e de configuração polémica.

O que acontece, é quase todos os estudiosos, os pensadores, deste assunto serem defensores de que toda a colonização implica, numa sequência directa: o descobrimento, a conquista, a ocupação e o povoamento.  Em Cabo Verde isto não aconteceu.

O que é pacífico, no nosso Arquipélago, é que tanto o branco europeu como o negro africano eram, à partida, “estrangeiros”, o que leva Amílcar Cabral, – o grande mentor dos africanistas cabo-verdianos – sem se ater aos problemas procedimentais e sociais envolvendo as relações dos ocupantes do território, a sentenciar em “Evolução e Perspectivas da Luta. Seminário de Quadros do PAIGC,” ao sintetizar a questão nos termos que a seguir transcrevemos:

Se pensarmos bem, se estudarmos bem o problema, vemos que os cabo-verdianos não são de Cabo Verde. Se recuarmos muito (…) até 1600, por exemplo, 1500 e tal, 1400, vemos que Cabo Verde não tinha ninguém. Podia ser, por exemplo, que os suecos, nas suas viagens marítimas, se tivessem fixado lá. Hoje, Cabo Verde seria uma terra com gente de origem sueca. Aconteceu, porém, que os portugueses chegaram lá primeiro, mas não ocuparam tudo eles mesmos. Arranjaram escravos de África, principalmente, da Guiné e puseram lá esses escravos. Hoje, são esses os cabo-verdianos, descendentes de escravos africanos e de portugueses, os quais têm todo o direito à sua terra. Porque eles é que a fizeram com o suor do seu trabalho, embora sob a dominação dos tugas

Não está em causa o processo de miscigenação, ou de aculturação, que é quase sempre doloroso, e que não é nenhuma criação dos portugueses ou de qualquer outro povo, pois a “colonização é tão velha como a existência de agrupamentos humanos organizados” sendo-lhe inerente a natureza quase sempre conflitual. Mas a verdade nua e crua, no caso de Cabo Verde, é a miscigenação, os chamados «filhos da terra» que nascem do cruzamento e da aculturação mútua dos povoadores. Como dizem os anglo-saxónicos, o que interessa é, de facto, “the bottom-line”, os resultados finais.

Tendo em conta o processo de povoamento de Cabo Verde, muito diferente do das outras colónias, o “colonialismo” em Cabo Verde não era, nem podia ser igual ao das colónias continentais. Nestas, o processo foi conflituoso, turbulento, tormentoso, porque a ocupação foi feita pela força das armas, porque existia um povo que foi submetido e que resistia, enquanto em Cabo Verde a ocupação foi pacífica pelas razões óbvias, o que não significa que não tenham existido, posteriormente, episódicos focos de conflitos, quase sempre de carácter muito localizado e circunscrito, muitas vezes de natureza socio-laboral e, outras vezes, até, estritamente social. É natural e compreensível, que em determinadas circunstâncias se tente hiperbolizar esses acontecimentos conferindo-lhes desmedida dimensão histórica. É isto, com outras envolvências, que se depreende do pensamento de Amílcar Cabral expresso na obra já citada, que a seguir transcrevemos:

«Mas temos que entender bem porque é que a situação era diferente em Cabo Verde. É porque Cabo Verde não foi uma terra conquistada como a Guiné, ou como Angola e Moçambique. Nestas colónias, os tugas tiveram que criar, imediatamente, uma situação para garantir que aqueles nativos contra os quais fizeram a guerra nunca mais se levantariam e dividiram o povo em indígenas e assimilados. Em Cabo Verde, não era preciso, as pessoas não eram de lá, não tinham vida organizada nas ilhas. Fizeram dela a sua terra, reproduziram-se, até dar a população de Cabo Verde. Os tugas adoptaram, portanto, uma outra política: todos são cidadãos».

Atente-se bem às conclusões de Amílcar Cabral e tenha-se algum cuidado na abordagem generalista do colonialismo português, – sem nunca esquecer a sua natureza abjecta e deplorável – designadamente e sobretudo, na aplicação do abominável “Acto Colonial” e da execrável lei do “Indigenato”.

Não é, por acaso que uma plêiade de distintos sociólogos e académicos que estudam a problemática da colonização nos diz que “aquele arquipélago [Cabo Verde] era, científica e tecnicamente, uma colónia sem colonização e sem colonialismo.”

Impõe-se, pois, uma outra abordagem, mais atenta, científica e demorada!... Armindo Ferreira – Cabo Verde in coral-vermelho.blogspot


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