De há uns tempos a esta parte, vem-se assistindo a uma vaga de “africanistas” que, por algum desconhecimento, distracção, ou, quiçá, interesses de natureza ideológica, têm reivindicado a pertença de Cabo Verde ao continente africano. Parece confundirem a opção geopolítica do Estado cabo-verdiano com a geologia, a geomorfologia, a geografia, a geoquímica, a geofísica e a oceanografia do arquipélago e do litoral do continente que lhe está mais próximo que caracterizam e definem as suas afinidades. Na verdade, todas as geociências que acabamos de elencar apresentam dados convincentes de que Cabo Verde não é África nem Europa.
Cabo
Verde inclui-se, geograficamente, no grupo de ilhas – arquipélagos – que se
estende entre os paralelos 15º e 40º Norte em frente ao continente africano que
se denomina “Atlântida” ou “Macaronésia”. Desse grupo fazem parte os
arquipélagos da Madeira, Selvagens, Canárias e Açores; e o mais próximo, de
entre estes arquipélagos, do continente africano é o das “Canárias” que se
situa a menos de escassos 100 Km da costa africana enquanto Cabo Verde entre
450 a 600 Km.
Para
melhor enquadramento geográfico de Cabo Verde não nos parece despiciendo
referir que a plataforma continental – “continuação” submarina ou “parte
submersa” do continente – que envolve a África tem uma extensão média de apenas
25 Km e uma profundidade que, normalmente, não deve ultrapassar os 200 metros.
A completar este raciocínio de individualização física do arquipélago em
relação ao continente que lhe está mais próximo, será importante referir as
batimétricas que circundam o arquipélago cabo-verdiano onde vamos encontrar
profundidades da ordem dos 3500 metros, que constituem barreiras significativas
de separação entre o arquipélago e o continente, barreiras estas que não podem
ser consideradas apenas de natureza topográfica.
Dizer
que Cabo Verde é, geograficamente, África, significa, rigorosamente, dizer que
Açores, Madeira e Canárias são também África, uma vez que “são bem estreitas
as afinidades biogeográficas” (Geógrafo e Investigador Francisco Tenreiro)
entre eles.
Outra
confusão que igualmente decorre dos “africanistas”, esta, parece-nos, de
natureza estritamente ideológica, é a generalização, a nosso ver, abusiva, da
inclusão de Cabo Verde no processo geral do colonialismo africano.
Antes
de mais, não é subestimável, o ponto de partida. Primeiro, da ocupação do
território; depois, do exercício efectivo do colonialismo europeu que se situa,
com algum rigor histórico, a partir da Conferência de Berlim em 1885 – bem
depois da instalação (1866) do Seminário-Liceu em S. Nicolau! – e não na data
dos “descobrimentos dos caminhos marítimos” do século XV.
A
maior parte dos estudiosos da colonização admite que ela só pode existir se
houver população autóctone.
É
consabido que Cabo Verde não era habitado aquando da chegada dos portugueses, et
pour cause, são os seus primeiros habitantes. Era o que se designa na
linguagem jurídica res nullius, o que leva alguns autores,
designadamente António de Sousa em “Colonização Moderna e Descolonização”
a defender que não se podia falar, com propriedade, de colonização, mas sim de
povoamento, uma vez que à data dos descobrimentos, não tinham os territórios
[da Macronésia] «nenhum povo autóctone nem nenhuma cultura indígena». Esta
concepção, embora seja maioritariamente defendida, não é unânime dado que a
questão de quem detém o poder, – político e económico – poderá ser fracturante
na definição de colonização, admitem uns poucos. Não está em causa, neste
momento, a abordagem deste contexto, que é deveras complexo e de configuração
polémica.
O
que acontece, é quase todos os estudiosos, os pensadores, deste assunto serem
defensores de que toda a colonização implica, numa sequência directa: o
descobrimento, a conquista, a ocupação e o povoamento. Em Cabo Verde isto não aconteceu.
O
que é pacífico, no nosso Arquipélago, é que tanto o branco europeu como o negro
africano eram, à partida, “estrangeiros”, o que leva Amílcar Cabral, – o grande
mentor dos africanistas cabo-verdianos – sem se ater aos problemas
procedimentais e sociais envolvendo as relações dos ocupantes do território, a
sentenciar em “Evolução e Perspectivas da Luta. Seminário de Quadros do
PAIGC,” ao sintetizar a questão nos termos que a seguir transcrevemos:
“Se
pensarmos bem, se estudarmos bem o problema, vemos que os cabo-verdianos não
são de Cabo Verde. Se recuarmos muito (…) até 1600, por exemplo, 1500 e tal,
1400, vemos que Cabo Verde não tinha ninguém. Podia ser, por exemplo, que os
suecos, nas suas viagens marítimas, se tivessem fixado lá. Hoje, Cabo Verde
seria uma terra com gente de origem sueca. Aconteceu, porém, que os portugueses
chegaram lá primeiro, mas não ocuparam tudo eles mesmos. Arranjaram escravos de
África, principalmente, da Guiné e puseram lá esses escravos. Hoje, são esses
os cabo-verdianos, descendentes de escravos africanos e de portugueses, os
quais têm todo o direito à sua terra. Porque eles é que a fizeram com o suor do
seu trabalho, embora sob a dominação dos tugas”
Não
está em causa o processo de miscigenação, ou de aculturação, que é quase sempre
doloroso, e que não é nenhuma criação dos portugueses ou de qualquer outro
povo, pois a “colonização é tão velha como a existência de agrupamentos
humanos organizados” sendo-lhe inerente a natureza quase sempre conflitual.
Mas a verdade nua e crua, no caso de Cabo Verde, é a miscigenação, os chamados
«filhos da terra» que nascem do cruzamento e da aculturação mútua dos
povoadores. Como dizem os anglo-saxónicos, o que interessa é, de facto, “the
bottom-line”, os resultados finais.
Tendo
em conta o processo de povoamento de Cabo Verde, muito diferente do das outras
colónias, o “colonialismo” em Cabo Verde não era, nem podia ser igual ao das
colónias continentais. Nestas, o processo foi conflituoso, turbulento,
tormentoso, porque a ocupação foi feita pela força das armas, porque existia um
povo que foi submetido e que resistia, enquanto em Cabo Verde a ocupação foi
pacífica pelas razões óbvias, o que não significa que não tenham existido,
posteriormente, episódicos focos de conflitos, quase sempre de carácter muito
localizado e circunscrito, muitas vezes de natureza socio-laboral e, outras
vezes, até, estritamente social. É natural e compreensível, que em determinadas
circunstâncias se tente hiperbolizar esses acontecimentos conferindo-lhes
desmedida dimensão histórica. É isto, com outras envolvências, que se depreende
do pensamento de Amílcar Cabral expresso na obra já citada, que a seguir
transcrevemos:
«Mas
temos que entender bem porque é que a situação era diferente em Cabo Verde. É
porque Cabo Verde não foi uma terra conquistada como a Guiné, ou como Angola e
Moçambique. Nestas colónias, os tugas tiveram que criar, imediatamente, uma
situação para garantir que aqueles nativos contra os quais fizeram a guerra
nunca mais se levantariam e dividiram o povo em indígenas e assimilados. Em
Cabo Verde, não era preciso, as pessoas não eram de lá, não tinham vida
organizada nas ilhas. Fizeram dela a sua terra, reproduziram-se, até dar a
população de Cabo Verde. Os tugas adoptaram, portanto, uma outra política:
todos são cidadãos».
Atente-se
bem às conclusões de Amílcar Cabral e tenha-se algum cuidado na abordagem
generalista do colonialismo português, – sem nunca esquecer a sua natureza
abjecta e deplorável – designadamente e sobretudo, na aplicação do abominável
“Acto Colonial” e da execrável lei do “Indigenato”.
Não
é, por acaso que uma plêiade de distintos sociólogos e académicos que estudam a
problemática da colonização nos diz que “aquele arquipélago [Cabo Verde]
era, científica e tecnicamente, uma colónia sem colonização e sem colonialismo.”
Impõe-se,
pois, uma outra abordagem, mais atenta, científica e demorada!... Armindo
Ferreira – Cabo Verde in “coral-vermelho.blogspot”
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