Esteve durante décadas num pequeno museu da cidade de Verona e ninguém sabia o que era, nem suspeitava do seu valor. Mas precisamente há um ano, quando fazia uma pesquisa online, a investigadora Federica Gigante foi parar ao sítio do museu e viu-o numa foto. Percebeu que era especial. Decidiu ir observá-lo ao vivo. O Astrolábio de Verona, como depois o apelidou, é agora o objeto mais importante da coleção e a sua história acaba de ser dada a conhecer ao mundo
“Quando
visitei o museu e estudei o astrolábio de perto, notei que não só estava
coberto de inscrições árabes belamente gravadas, como também conseguia ver
inscrições ténues em hebraico. Eu só conseguia distingui-las sob a luz forte
que entrava por uma janela. Achei que poderia estar a sonhar, mas continuei a
ver cada vez mais. Foi muito emocionante”, recorda a historiadora da
Universidade de Cambridge, Federica Gigante, no artigo
de apresentação da sua descoberta, publicado na segunda-feira, 4 de março, no sítio
da instituição.
Não
era um sonho, era mesmo verdade. Especialista em astrolábios islâmicos, a
investigadora verificou que um lado da placa estava inscrito em árabe “para a
latitude de Córdoba, 38° 30’”, enquanto o outro lado “para a latitude de
Toledo, 40°, o que leva a crer que possa ter sido feito em Toledo, numa época
em que aquela cidade espanhola era um próspero centro de coexistência e
intercâmbio cultural entre muçulmanos, judeus e cristãos. Uma segunda placa
adicionada estava inscrita para latitudes típicas do norte da África, sugerindo
que, em algum momento da vida do objeto, talvez este tenha sido usado em
Marrocos ou no Egipto. E inscrições hebraicas foram adicionadas ao astrolábio
por mais que uma mão. Um conjunto de acréscimos foi esculpido de maneira
profunda e organizada, enquanto um conjunto diferente de traduções surge muito
ao de leve, irregular, e mostra uma mão insegura.
“Essas
adições e traduções em hebraico sugerem que em determinado momento o objeto
deixou a Espanha ou o Norte da África e circulou entre a comunidade da diáspora
judaica em Itália, onde o árabe não era compreendido e o hebraico era usado em
seu lugar”, explica Federica Gigante.
O
astrolábio apresenta ainda correções inscritas em algarismos ocidentais, os
mesmos que usamos hoje na língua portuguesa. E todos os lados das placas do
astrolábio apresentam marcas levemente riscadas em algarismos ocidentais,
traduzindo e corrigindo os valores de latitude, alguns até várias vezes.
Federica Gigante considera “altamente provável” que estas adições tenham sido
feitas já em Verona por um falante de latim ou italiano.
A
rete (ou aranha) que integra o astrolábio – um disco perfurado que representa
um mapa do céu – é uma das primeiras conhecidas feitas em Espanha, apresentando
semelhanças com as dos primeiros astrolábios europeus, feitos naquele país
segundo o modelo dos islâmicos. Analisando a posição das estrelas na rete, é
possível concluir que elas foram colocadas nos locais que teriam no final do
século XI.
Pode
dizer-se que os astrolábios “foram o primeiro smartphone do mundo”,
refere o artigo. Eram como computadores portáteis que poderiam ter centenas de
usos: forneciam um modelo bidimensional do universo que cabia na mão do
utilizador, permitiam calcular tempo, distâncias, traçar a posição das
estrelas… e até prever o futuro, através do horóscopo.
Acredita-se
que este astrolábio em concreto tenha feito parte da coleção do nobre veronês
Ludovico Moscardo (1611-1681) antes de passar por via do casamento para a
família Miniscalchi. Em 1990, a família criou a Fondazione Museo
Miniscalchi-Erizzo para preservar as suas coleções, local onde, passados mais
de 30 anos, Federica Gigante descobriu o seu inestimável valor.
“Este
não é apenas um objeto incrivelmente raro. É um registo poderoso de intercâmbio
científico entre árabes, judeus e cristãos ao longo de centenas de anos”,
conclui. Clara Raimundo – Portugal in “7Margens”
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