A imigração e o voto populista no Algarve. Não se tem feito ouvir na sociedade uma voz institucional, autorizada e suficientemente forte, que denuncie seriamente, tanto a exploração dos nacionais como, igualmente, a dos estrangeiros que os substituem por uma mão cheia de nada
1. Há
dias, tive de me deslocar a uma povoação algarvia onde, desde sempre, passei
parte das férias de verão.
Como
de costume, logo pela manhã, dirigi-me ao barbeiro para aí comprar o jornal do
dia.
Como
quase toda a gente, gosto de preservar algumas rotinas que me identificam
comigo próprio e me tranquilizam os dias, pois, deste modo, escondo, como
posso, o passar do tempo e o inexorável caminho para a velhice e para outro
tempo onde, necessariamente, não terei lugar.
Folheando
algumas revistas e jornais, aproveitei para questionar o barbeiro, que conheço,
sobre o resultado das eleições e o que pensava sobre as causas da tão brusca e
massiva mudança de votação de uma população que, desde sempre, conhecera como
aberta, livre e acolhedora e, por isso, algo diferente, nesse aspeto, de muitas
outras existentes no país.
A
resposta do barbeiro - um homem jovem que sucedeu, naquele ofício, ao pai e
anterior dono do negócio - não tendo sido surpreendente, gelou-me.
«A
culpa é desses desgraçados orientais que, agora, trabalham aí nos restaurantes,
nos bares nas lojas, nos campos e mesmo nos uber; fizeram baixar tanto o valor
dos salários que aceitam receber que nenhum português pode, agora, com eles
competir, ou, estando ainda empregado, reclamar por um qualquer e devido
aumento!
Os
autocarros trazem-nos regularmente de Espanha, largam-nos por aí, ou vêm
buscá-los quando lá há mais trabalho e mais necessidade deles.
Os
que aqui beneficiam do que fazem nem sabem, nem lhes interessa saber, quanto
eles ganham, pois não é com eles que contratam, mas com as empresas de trabalho
temporário. Não sabem!?… claro que sabem!... mas fingem que não.»
«Então,
e a Autoridade para as Condições de Trabalho não atua?» - perguntei.
«São
poucos, às vezes invisíveis e parecem pouco entusiasmados com o que fazem …»
Esta
explicação simples e direta para esta mudança súbita do sentido de votação de
uma população que, antes, sempre se mostrara aberta e progressista e que, além
disso, estava habituada a conviver e trabalhar, sem problemas e preconceitos,
com toda a espécie de estrangeiros, diz muito sobre os efeitos sociais e
políticos que este tipo de imigração produz em algumas zonas do país.
Diz
muito, também, sobre a hipocrisia social e política em que vivemos e sobre a
maneira como encaramos alguns dos problemas e contradições mais evidentemente
gritantes da nossa sociedade.
O
que, afinal, o jovem barbeiro me quis dizer foi que nada há de verdadeiro
racismo ou xenofobia na mudança do voto dos seus conterrâneos.
Nenhum
deles tinha algo contra aquelas pessoas que, quais zombies, trabalham
desalmadamente, dia e noite, por um punhado de euros.
A
questão situava-se, pois, nas causas e nos efeitos que daí decorriam: na
desvalorização dos salários.
Sendo
os salários antes praticados já de si uma miséria, e havendo uma resistência
local em aceitá-los, especialmente na estação alta do turismo, os trabalhadores
nacionais passaram a ver a sua capacidade de pressão esvair-se, pela sua
substituição por trabalhadores estrangeiros que, na maioria, são pagos, ainda
mais miseravelmente, por empresas de trabalho temporário, algumas das quais nem
sequer têm sede legal em Portugal.
A
razão para a opção na mudança do sentido do voto dos partidos democráticos, e
alguns de esquerda, para formações de extrema-direita teve pois como uma das
causas a incapacidade de o Estado – e quem o governa ou apoia a sua governação
– conseguir ou querer, verdadeiramente, prevenir tal situação e efeitos.
Além
de que, não se tem feito ouvir na sociedade uma voz institucional, autorizada e
suficientemente forte, que denuncie seriamente, tanto a exploração dos
nacionais como, igualmente, a dos estrangeiros que os substituem por uma mão
cheia de nada.
A
razão de ser na mudança do sentido de voto resultou, portanto, do impasse a que
as forças políticas democráticas da área da governação, que antes sempre
usufruíam dos favores daqueles eleitores, chegaram no que se refere à vontade e
capacidade de romper, seriamente, com uma política de exploração laboral
escandalosa, para a qual não são apontadas verdadeiras e visíveis alternativas.
2.
Do ponto de vista dos factos, a justificação para a necessidade desta mudança
radical do eleitorado parece, pois, demasiado óbvia: a inação e os limites dos
meios de prevenção do Estado e o baixar dos braços da governação com tal
situação.
Torna-se,
ainda assim, difícil entender o como e o porquê da solução ora escolhida pelos
cidadãos eleitores do Algarve.
A
lógica de tão aberrante opção política só pode levar-nos a atentar no vazio
político – a falta de cultura política – que, de há anos a esta parte, foi
sendo fomentado na nossa sociedade.
Foi
em tal vazio no desenvolvimento ativo da cidadania que encontraram espaço as
«balelas» permanentemente divulgadas nas redes sociais.
Por
outro lado, na medida em que uma linguagem só aparentemente técnica e
estritamente financeira substituiu o discurso político institucional, ficou
inteiramente invisível o projeto de futuro que a Democracia sempre deve conter.
O
discurso político institucional – ou melhor, a falta dele - veio, assim, a ser
suplantado e o seu vazio preenchido, progressiva e oportunamente, por meia
dúzia de chavões e palavras de ordem simplistas – e mesmo primárias -
difundidas, desde logo, nas redes sociais e, depois, adotadas nas ruas, aos
gritos, pelos apoiantes das forças políticas contrárias ao modelo
democrático-constitucional que vigora no país.
O
efeito real que, com as aludidas mensagens simplistas, pretendem alcançar não
se dirige, todavia, a resolver qualquer dos problemas que invocam e penalizam
os cidadãos nacionais e estrangeiros.
O
que na realidade pretendem é erodir politicamente a autoridade dos princípios
estruturantes do Estado democrático e social e, depois, a derrubar a sua
estrutura jurídico-constitucional, que, mesmo debilitada, ainda os impede de
agir livremente.
Mesmo
que demagogicamente aproveitados pelos populistas e prudentemente obnubilados
pelas instituições estatais e pelas forças políticas que as têm governado, tais
problemas existem mesmo e são, queira-se ou não, cada vez mais visíveis.
3. A existência de tais situações – no caso, a
desregulação dos salários dos trabalhadores nacionais por via da utilização de
trabalhadores imigrados que se sujeitam a uma híper-exploração - é um problema
real que não pode ser ignorado pelo Estado e não deve ser abordado pelos
partidos constitucionalistas de uma forma envergonhada e escamoteadora da
realidade.
Se,
como se ouve repetidamente, os portugueses não são, na sua maioria, racistas e
xenófobos, a verdade é que a concorrência no mercado de trabalho de cidadãos de
outros países que se sujeitam a auferir salários, ainda mais vergonhosos do que
os que nacionais auferem, cria naturalmente – e isso nada tem a ver com a cor
ou religião dos trabalhadores imigrantes – uma tensão social indisfarçável.
A
resposta a este problema não pode, porém, situar-se, como defendem os
populistas, numa ignóbil criminalização e redobrada punição da conduta das
vítimas – sim, são elas as vítimas que padecem da híper-exploração em
território nacional – mas na prevenção e controle dos que, violando, ou não, as
leis nacionais, são os beneficiários secundários do trabalho por elas prestado.
Mais
do que insistir num reforço da fiscalização das fronteiras, na maioria das
vezes ineficaz, pois a entrada de tais cidadãos na Europa não se faz, por
regra, diretamente através da nossa fronteira externa (espaço Schengen),
importa, isso sim, centrar o controlo de tal fenómeno naqueles que, no país,
dele aproveitam sem qualquer pudor ou humanidade.
Com
isso, não só ganhavam os trabalhadores imigrantes, como também os trabalhadores
portugueses que, em concorrência ou não com os estrangeiros, se encontram,
hoje, também, deploravelmente desprotegidos face aos sistemáticos abusos de que
são vítimas e à situação de concorrência ilegal que as empresas de exploração
de trabalho estrangeiro lhes impõem do ponto de vista salarial.
Se,
assim, devemos denunciar os discursos de ódio, racistas e xenófobos que as
forças populistas incrementam a este propósito, devemos igualmente encarar a
situação, com determinação e firmeza e, discutindo-a, aberta e
democraticamente, encontrar soluções realistas que beneficiem todos os
trabalhadores, independentemente da sua religião, cor ou nacionalidade.
O
importante é, não descurando situações que revelem antinomias menores, centrar
esta discussão no que de mais grave ela efetivamente revela, isto é: a miséria
dos salários que se pagam em Portugal e a falta de controlo exercido pelas
autoridades portuguesas sobre os infratores que, sem qualquer piedade, se
aproveitam da condição de necessidade de todos os trabalhadores e, em especial,
dos que são imigrantes.
Para
isso, para que esta situação escandalosa e o seu aproveitamento populista
possam cessar, precisamos de ouvir, concertadamente, vozes autorizadas e também
politica e civicamente fortes, designadamente dos mais altos representantes da
República, dos representantes do poder judicial e do Ministério Público, da
Provedoria de Justiça, dos dirigentes dos partidos constitucionalistas, dos
sindicatos, dos bispos e outros responsáveis das igrejas, das pessoas da
cultura e das artes, dos diretores das escolas superiores e secundárias, dos
responsáveis pelos media tradicionais e seus jornalistas, dos jovens estudantes
e trabalhadores democratas que navegam, com regularidade, nas redes
sociais.
Se
assim acontecer, podemos estar certos, também, de que os que lançaram esta
contaminada e corrosiva discussão, rapidamente dela vão desistir, pois o seu
efeito poderá ser de ricochete.
Com
efeito, entre os apoiantes financeiros de tais populistas contam-se,
seguramente, muitos dos maiores aproveitadores desta situação.
Além
de que, assim, todos, mas todos os cidadãos de boa-fé, poderão, por fim,
aperceber-se das escandalosas injustiças que, quotidianamente, acontecem entre
nós.
Este
é, na verdade, um dos casos em que se pode dizer, sem hesitações, que «o rei
vai nu». António Cluny – Portugal in “Jornal
I”
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