O artigo/ensaio que a seguir se “divulga”, retirado de “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” de autoria do insigne investigador Francisco Tenreiro é uma excelente introdução para o leitor interessado no conhecimento da génese, evolução e consolidação das sociedades cabo-verdiana e são-tomense desde os seus achamentos e povoamentos.
O
autor começa por situar geograficamente Cabo Verde no seu espaço – oceânico – a
que designa por, (transcrevemos) “grupo das Ilhas Atlântidas, [também
conhecidas por Macaronésia] uma vez que com os arquipélagos dos Açores,
Madeira, Selvagens e Canárias apresenta afinidades biogeográficas
estreitas” para logo a seguir afirmar: “Cabo Verde, limite meridional
das Atlântidas, fronteiro a África, apresenta assim mais traços de semelhança
com a Europa e os restantes arquipélagos do que propriamente com aquele
continente” [África].
Francisco
Tenreiro não fica por aqui na caracterização do arquipélago. Vai mais longe ao
afirmar: “No arranjo dos campos, nas culturas minuciosas susceptíveis de
serem cultivadas sempre que chova, no tipo de habitação e na pulverização da
propriedade, vinca-se bem a expansão de um «estilo mediterrânico» que ali, no
decorrer dos séculos, acabou por enraizar”. Contudo, deixa bem claro que
este estilo é um denominador comum do plano da ocupação das Ilhas Atlântidas
dos inícios da expansão portuguesa e que se estendeu ao Brasil, Goa e,
obviamente, a S. Tomé e Príncipe, mas com muito pouco sucesso.
Sobre
S. Tomé e Príncipe diz que dado o tipo climático de carácter equatorial –
vegetação densa e cursos de água permanentes – só “através de traços
culturais poderão ser aparentados às ilhas Atlântidas”.
Com
este pressuposto da ocupação dos dois arquipélagos em estudo que, mau grado
essas ocupações terem sido feitas com uma diferença de mais de 20 anos,
respeitaram a um mesmo plano de povoamento e fixação e tiveram efeitos muito
semelhantes durante alguns anos. Este paralelismo da evolução das sociedades
dos dois arquipélagos que se manteve até o primeiro quartel do século XIX sofre
uma descontinuidade em que S. Tomé muda de paradigma de desenvolvimento dando
lugar a um outro tipo de sociedade, enquanto Cabo Verde continua o seu caminho.
O ponto de “divergência” ou de afastamento, é explicado com muita clareza, com
uma argumentação simples, mas rigorosa e bem fundamentada. O momento histórico
que separa a evolução paralela e idêntica das duas sociedades situa-o, o autor
do ensaio – Dr. Francisco Tenreiro – em
1820, aparecimento em S. Tomé da cultura
do café e 1822 da do cacau, sem contudo deixar de explicitar que “desde a
segunda metade do século XVII que S. Tomé e Cabo Verde entrariam em declínio”
isto é, quando o nordeste brasileiro se lançou na plantação da cana do açúcar e
o algodão da ilha do Fogo, se mostrou, por si só, insuficiente para sustar a
queda da economia do Arquipélago.
Para
superar a longa crise que desde século XVII assolava os dois arquipélagos, S.
Tomé que tinha condições climáticas excelentes para o cultivo do café e do
cacau introduz a cultura destes dois produtos altamente rendosos, mas exigentes
de uma mão de obra intensiva mudando deste modo a sua estrutura agrária para
grandes plantações – exploração do tipo capitalista – e a sua estrutura social
com “novos colonos” com outra mentalidade e outra postura e a vinda de um novo
surto de escravos, mais tarde, “serviçais”. É o ponto de viragem – estagnação
do processo da miscigenação, isto é, cessação da interpenetração social, de
quando “as relações entre a sanzala e o sobrado dos brancos eram então mais
aconchegadas” – em S. Tomé dando lugar, de acordo com o autor, a “uma
sociedade «plural» – vários grupos com vida cultural própria, cujos padrões
dificilmente transbordam de um grupo para outro; para um lado os nativos ou
crioulos (também chamados «filhos da terra»), descendentes das velhas famílias
anteriores ao advento do surto capitalista; para outro, serviçais, população
flutuante que de Angola, Moçambique e até de Cabo Verde ali vão trabalhar por
período limitado de anos; e ainda o grupo europeu, pouco numeroso, constituído
por indivíduos que ou ocupam os altos postos da burocracia ou dirigem ou
possuem grandes propriedades.” E mais adiante, perante esta estrutura
social, o autor diz-nos, de forma peremptória: “Estamos sim, em face de uma
estrutura social complexa, de classes raciais,…”
A
mestiçagem considerada por Francisco Tenreiro como resultante de um dos pontos
do “Plano da ocupação e fixação das Ilhas” cedo teve início por aquilo que ele
designou de “tolerância rácica” e que, ainda segundo ele, “se
traduziu num processo acelerado de mestiçagem;”. Na verdade, não só se
verificou a tolerância rácica como houve, no caso de Cabo Verde, orientações
precisas da sua incentivação quando “são os próprios Reis que recomendam, a
fim de as ilhas se povoarem, que os homens brancos e sem família «tomem de suas
escravas uma»".
A
abordagem do processo de desenvolvimento e mestiçagem das ilhas do Oceano
Atlântico é retomada, ainda nesta brochura, como um certo complemento do ensaio
que vimos apresentando com um texto do mesmo autor intitulado “Acerca dos
Arquipélagos Crioulos”, com uma abrangência que pretende cobrir as
principais ilhas do Atlântico. Compara a população de cada uma das ilhas, a
geografia e o tipo de ocupação e desenvolvimento de uma forma mais física do
que cultural sem, de todo, abdicar desta particularidade. E é o próprio autor
que nos alerta para a natureza da abordagem quando diz: “Repare-se, porém,
que se está em presença da generalização «fisionómica» que despreza os
processos aculturativos a que as populações arribaram nas diferentes ilhas.”
Acerca
de S. Tomé e Cabo Verde volta a concluir: “Seja como for, o arquipélago de
Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares» graças a um
passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma sociedade
crioula peculiar.”
Essa
“sociedade crioula” – mestiçagem – merece-nos uma referência, se não mais
profunda, pelo menos um pouco mais clara – génese e desenvolvimento – uma vez
que se trata de um tema que vem sendo objecto de alguma atenção alargada, e
que, de certa forma, bole com a nossa identidade, a nossa cabo-verdianidade,
merecendo, deste modo, particular cuidado a sua evolução e estabilização.
Pode continuar a ler
este artigo aqui.
Armindo Ferreira – Cabo Verde in “coral-vermelho.blogspot”
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