Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 7 de março de 2024

Cabo Verde e São Tomé e Príncipe: Esquema de uma Evolução Conjunta & Acerca dos Arquipélagos Crioulo

O artigo/ensaio que a seguir se “divulga”, retirado de “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” de autoria do insigne investigador Francisco Tenreiro é uma excelente introdução para o leitor interessado no conhecimento da génese, evolução e consolidação das sociedades cabo-verdiana e são-tomense desde os seus achamentos e povoamentos.

O autor começa por situar geograficamente Cabo Verde no seu espaço – oceânico – a que designa por, (transcrevemos) “grupo das Ilhas Atlântidas, [também conhecidas por Macaronésia] uma vez que com os arquipélagos dos Açores, Madeira, Selvagens e Canárias apresenta afinidades biogeográficas estreitas” para logo a seguir afirmar: “Cabo Verde, limite meridional das Atlântidas, fronteiro a África, apresenta assim mais traços de semelhança com a Europa e os restantes arquipélagos do que propriamente com aquele continente” [África].

Francisco Tenreiro não fica por aqui na caracterização do arquipélago. Vai mais longe ao afirmar: “No arranjo dos campos, nas culturas minuciosas susceptíveis de serem cultivadas sempre que chova, no tipo de habitação e na pulverização da propriedade, vinca-se bem a expansão de um «estilo mediterrânico» que ali, no decorrer dos séculos, acabou por enraizar”. Contudo, deixa bem claro que este estilo é um denominador comum do plano da ocupação das Ilhas Atlântidas dos inícios da expansão portuguesa e que se estendeu ao Brasil, Goa e, obviamente, a S. Tomé e Príncipe, mas com muito pouco sucesso.

Sobre S. Tomé e Príncipe diz que dado o tipo climático de carácter equatorial – vegetação densa e cursos de água permanentes – só “através de traços culturais poderão ser aparentados às ilhas Atlântidas”.

Com este pressuposto da ocupação dos dois arquipélagos em estudo que, mau grado essas ocupações terem sido feitas com uma diferença de mais de 20 anos, respeitaram a um mesmo plano de povoamento e fixação e tiveram efeitos muito semelhantes durante alguns anos. Este paralelismo da evolução das sociedades dos dois arquipélagos que se manteve até o primeiro quartel do século XIX sofre uma descontinuidade em que S. Tomé muda de paradigma de desenvolvimento dando lugar a um outro tipo de sociedade, enquanto Cabo Verde continua o seu caminho. O ponto de “divergência” ou de afastamento, é explicado com muita clareza, com uma argumentação simples, mas rigorosa e bem fundamentada. O momento histórico que separa a evolução paralela e idêntica das duas sociedades situa-o, o autor do ensaio – Dr. Francisco Tenreiro  – em 1820,  aparecimento em S. Tomé da cultura do café e 1822 da do cacau, sem contudo deixar de explicitar que “desde a segunda metade do século XVII que S. Tomé e Cabo Verde entrariam em declínio” isto é, quando o nordeste brasileiro se lançou na plantação da cana do açúcar e o algodão da ilha do Fogo, se mostrou, por si só, insuficiente para sustar a queda da economia do Arquipélago.

Para superar a longa crise que desde século XVII assolava os dois arquipélagos, S. Tomé que tinha condições climáticas excelentes para o cultivo do café e do cacau introduz a cultura destes dois produtos altamente rendosos, mas exigentes de uma mão de obra intensiva mudando deste modo a sua estrutura agrária para grandes plantações – exploração do tipo capitalista – e a sua estrutura social com “novos colonos” com outra mentalidade e outra postura e a vinda de um novo surto de escravos, mais tarde, “serviçais”. É o ponto de viragem – estagnação do processo da miscigenação, isto é, cessação da interpenetração social, de quando “as relações entre a sanzala e o sobrado dos brancos eram então mais aconchegadas” – em S. Tomé dando lugar, de acordo com o autor, a “uma sociedade «plural» – vários grupos com vida cultural própria, cujos padrões dificilmente transbordam de um grupo para outro; para um lado os nativos ou crioulos (também chamados «filhos da terra»), descendentes das velhas famílias anteriores ao advento do surto capitalista; para outro, serviçais, população flutuante que de Angola, Moçambique e até de Cabo Verde ali vão trabalhar por período limitado de anos; e ainda o grupo europeu, pouco numeroso, constituído por indivíduos que ou ocupam os altos postos da burocracia ou dirigem ou possuem grandes propriedades.” E mais adiante, perante esta estrutura social, o autor diz-nos, de forma peremptória: “Estamos sim, em face de uma estrutura social complexa, de classes raciais,…”

A mestiçagem considerada por Francisco Tenreiro como resultante de um dos pontos do “Plano da ocupação e fixação das Ilhas” cedo teve início por aquilo que ele designou de “tolerância rácica” e que, ainda segundo ele, “se traduziu num processo acelerado de mestiçagem;”. Na verdade, não só se verificou a tolerância rácica como houve, no caso de Cabo Verde, orientações precisas da sua incentivação quando “são os próprios Reis que recomendam, a fim de as ilhas se povoarem, que os homens brancos e sem família «tomem de suas escravas uma»".

A abordagem do processo de desenvolvimento e mestiçagem das ilhas do Oceano Atlântico é retomada, ainda nesta brochura, como um certo complemento do ensaio que vimos apresentando com um texto do mesmo autor intitulado “Acerca dos Arquipélagos Crioulos”, com uma abrangência que pretende cobrir as principais ilhas do Atlântico. Compara a população de cada uma das ilhas, a geografia e o tipo de ocupação e desenvolvimento de uma forma mais física do que cultural sem, de todo, abdicar desta particularidade. E é o próprio autor que nos alerta para a natureza da abordagem quando diz: “Repare-se, porém, que se está em presença da generalização «fisionómica» que despreza os processos aculturativos a que as populações arribaram nas diferentes ilhas.”

Acerca de S. Tomé e Cabo Verde volta a concluir: “Seja como for, o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares» graças a um passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma sociedade crioula peculiar.”

Essa “sociedade crioula” – mestiçagem – merece-nos uma referência, se não mais profunda, pelo menos um pouco mais clara – génese e desenvolvimento – uma vez que se trata de um tema que vem sendo objecto de alguma atenção alargada, e que, de certa forma, bole com a nossa identidade, a nossa cabo-verdianidade, merecendo, deste modo, particular cuidado a sua evolução e estabilização.

Pode continuar a ler este artigo aqui. Armindo Ferreira – Cabo Verde in coral-vermelho.blogspot



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