É sempre bom dar uma volta pelas redes sociais para saber como elas reagem diante das últimas notícias, pois pode haver surpresas ou temas para discussões. É o caso da desistência da candidatura à reeleição pelo presidente Joe Biden, branco de origem europeia, em favor da atual vice-presidente Kamala Harris.
Kamala,
não tem nada a ver com os Pilgrims Fathers, os primeiros colonizadores dos EUA.
Bem ao contrário, ela é negra, filha de pai jamaicano, mãe indiana, ambos
imigrantes. Os EUA já tiveram um presidente negro por dois mandatos, foi Barak
Obama. Já houve uma candidata mulher à presidência dos EUA, foi Hillary
Clinton, esposa do ex-presidente Bill Clinton e descendente de famílias brancas
tradicionais de origem europeia. Para quem não se lembra, Bill Clinton foi
reeleito e deixou o governo com alta popularidade. Mesmo assim, Hillary foi
derrotada em 2016 por Donald Trump.
O
Brasil já se antecipou aos EUA nessa experiência com a eleição em 2010 de Dilma
Rousseff, branca, filha de pai búlgaro e mãe brasileira, reeleita e destituída
dois anos depois por impeachment. Marina Silva, negra e filha de pais
pobres, foi três vezes candidata à presidência sem sucesso. Que fatores teriam
ajudado Dilma Rousseff e prejudicado Marina Silva?
De
uma maneira geral, a imprensa internacional se pergunta se o eleitorado dos EUA
já está no ponto para eleger uma mulher e, além disso, uma mulher negra. Ou
ainda, mulher negra filha de imigrantes, quando o principal programa do
candidato opositor, misógino e machista, é a deportação em massa de imigrantes.
Essa
é a primeira pergunta genérica que leva a outra mais precisa: existe um
significado maior para essa escolha por um dos partidos do país mais rico e
mais desenvolvido do planeta? E, no caso de Kamala Harris ser eleita, poderá
haver um avanço mundial para a situação das mulheres em termos de paridade com
os homens?
Ou
o fato de surgir a candidatura de uma mulher negra vinda da imigração com a
possibilidade de ser eleita presidente dos EUA "não tem a menor
importância, é irrelevante, não é determinante e é apenas uma questão
secundária"? É simples assim? Isso não vai mudar em nada a situação
mundial - e como ouvi e li - "continuará a exploração e o domínio do mundo
pelo imperialismo norte-americano?"
Vou
deixar de lado as críticas do Diário da Causa Operária ao texto do sítio Esquerda
Online sobre "o caso Kamala Harris". Agora, o mais apropriado
é o vídeo do Breno Altman, no Opera Mundi, voltado ao grande público, no qual
ele considera "irrelevante e secundária" a candidatura de uma mulher
negra filha de imigrantes à presidência dos EUA. "As questões de raça e
gênero só têm relevância no que concerne a direitos, preconceitos e
privilégios".
Me
lembro, durante o caso do treinador Cuca do Grêmio, alvo de um processo na
Suíça por estupro coletivo de uma menor, que acabou se demitindo do Corinthians
por pressão da torcida feminina, ter ouvido de alguém de esquerda, que a
questão de gênero e o feminismo deveriam vir depois e não antes da Revolução. E
a recente piada de mau gosto do presidente Lula sobre violência doméstica
contra mulher de corintiano vai nessa mesma linha.
"Qual
a diferença - pergunta Breno no seu vídeo - se o povo palestino se faz
bombardear por bombas enviadas por um homem branco ou uma mulher negra?"
Isso não é uma síntese ou uma conclusão um tanto precária e redundante?
Diante
da decisão de escolher uma mulher, negra e filha de imigrantes, por um dos
principais partidos políticos da maior nação do mundo, minha reflexão é bem
diferente. É a de constatar o longo caminho percorrido pelas mulheres
norte-americanas até chegarem a esse tipo de conquista e reconhecimento - a de
serem consideradas iguais aos homens para dirigirem o país.
Elas
estavam no navio Mayflower que, há 400 anos, transportou da Inglaterra os
puritanos peregrinos povoadores da primeira colônia permanente na costa leste
norte-americana. Chegaram também nos navios vindos da África para viverem a
escravidão e muitas delas sofrem ainda o racismo generalizado, mesmo depois do
fim de uma guerra civil pondo fim à escravatura. Sem esquecer das mulheres
nativas do continente, grande parte massacrada pelos colonizadores, e das
imigrantes de todo o mundo.
Enquanto
isso, em muitos países, a situação social, econômica e individual das mulheres
é de submissão e de privação de direitos, seja em consequência de ditaduras ou
de teocracias retrógradas. Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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