Em novo livro, a autora recupera suas
vivências com a herança indígena no Mato Grosso do Sul e no Paraguai
I
Depois
de lançar em 2021 Manacá, livro de crônicas em que mescla tradição e
modernidade, a professora sul-matogrossense Raquel Naveira volta ao mercado com
Mundo Guarani – Fragmento de uma alma
da fronteira (São Paulo, Minotauro/Editora Almedina Brasil, 2023),
obra de memória que está entre a crônica, a novela e o romance e obteve o Prêmio
João do Rio, da União Brasileira de Escritores (UBE), do Rio de Janeiro. Trata-se
de uma narrativa que traz à tona o universo da fronteira entre o Brasil e o
Paraguai, em que a autora recupera suas vivências com a herança indígena ainda
extremante forte na cidade de Bela Vista, na fronteira com o Paraguai, à beira
do rio Apa, que fica a 330 quilômetros de Campo Grande, a capital do Estado do
Mato Grosso do Sul, onde ela passava dias no sítio de seus tios-avós.
Ao
abrir o baú de sua memória, a poeta recorda as conversas que travava, na
cozinha da casa de sua tia, com as mulheres dos peões, que, enquanto faziam a
comida, amassando chipas, falavam um idioma estranho, anasalado, o guarani, e,
às vezes, até cantavam guarânias e polcas. E o encanto que sentia ao descobrir
aquela língua estranha que a levaria, mais tarde, já professora universitária, a
fazer em sala de aula experiências a partir de seus estudos sobre o idioma
guarani, palavra que, como poucos sabem, designa o membro da família dos
guaranis, população indígena que faz parte do grupo mais vasto dos
tupis-guaranis, como explica a autora.
A
esse tempo, à época da erva-mate, ainda menina, costumava ouvir na roda dos
mais velhos o toque da harpa paraguaia típica, tocada com as unhas, os arpejos
espanhóis misturados com a tradição dos índios guaranis. E rememora: “O som da
harpa arranca do peito a farpa da saudade e as lágrimas escorrem por nossa
face. São amargos os abismos do amor e a angústia sai pelos poros da alma.
Quando estamos longe da terra que amamos, toda feita de árvores e lembranças, a
sensação é de desmaio. Brota de dentro de nós um grito, um gemido, como se
fôssemos um animal ferido em cujas pupilas ficou impresso o paraíso”.
II
Esse
fascínio pelo som da música e por vocábulos guaranis, que a adolescente ouvia
também durante bailes colorados no Paraguai animados por bandolins e harpas,
levou-a a se aprofundar cada vez mais nas pesquisas, trabalho em que pôde
reunir casos surreais, como aquele em que o protagonista é o explorador
espanhol Álvar Nuñez (1490-1559), mais conhecido como Cabeza de Vaca,
nascido em Xerez de la Frontera, na Andaluzia, “que saiu à procura da fonte da
eterna juventude, numa expedição lunática que chegou ao Norte do México”. E
que, mais tarde, daria com o costado na imensidão do Pantanal, a maior reserva
ecológica do mundo, à qual deu o nome de Mar de Xaraés, e alcançaria terras de
Assunção. Da personagem, recorda algumas de suas aventuras homéricas, ao tempo
em que ocupou o cargo de governador da província do Rio da Prata e do Paraguai.
Raquel
Naveira lembra também que o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014),
em seu discurso, em 1982, quando recebeu o Prêmio Nobel, citou, além de Cabeza
de Vaca, o navegador florentino Antonio Pigafetta (1480-1531),
outro que andou pela América e escreveu uma “crônica que parecia uma aventura
da imaginação”, dizendo que ambos estariam por trás do chamado realismo mágico
que marca a feitura de suas obras. Por isso, a poeta entende que Bela Vista
seria a sua Macondo, “um lugar onde acontecem coisas incríveis, surreais, um
lugar onde o natural e o sobrenatural se cruzam a todo instante”.
III
Portanto,
o que o leitor vai encontrar aqui é uma obra que procura reconstituir um
paraíso povoado por uma fauna e flora exuberantes, como onças, sucuris, garças,
tuiuiús, pássaros de várias espécies, araras-azuis, águas coalhadas de peixe,
os camalotes com suas flores lilases, as margens repletas de buritis, de
bambus, de samambaias, na descrição da própria autora, que recorda ainda o panapaná,
ou seja, aquela nuvem de borboletas que costuma pintar com suas cores os céus
do Pantanal.
E
não só. A autora aproveita ainda para defender a melhoria da vida dos indígenas
guaranis e a preservação de sua rica cultura, especialmente na região da Grande
Dourados, no Mato Grosso do Sul, a partir da construção de uma escola dedicada
à cultura kaiowá/guarani, com a alfabetização da criança indígena em sua língua
materna e, só depois, na língua portuguesa. Ela lembra que da antiga população
guarani subsistem poucos grupos nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa
Catarina, Rio de Janeiro e Espírito Santo, mas a etnia constitui maioria no
Paraguai e no Território das Missões, na região noroeste do Rio Grande do Sul.
Por
fim, a obra reúne, ao final, um glossário com palavras em tupi-guarani que
fazem parte do idioma português falado no Brasil e que ocupam quase uma quarta
parte do vocabulário brasileiro. Muitas dão nomes a cidades, regiões, ervas e animais,
como abaeté (gente boa), anhembi (rio dos pássaros nambus), araponga (pássaro
grande), bangu (rocha negra), bauru (cesto de frutas), caiçara (cerca de
ramos), carioca (casa do branco), ceará (canto de araras), guanabara (saco de
mar), igarapé (caminho d´água), ipanema (água ruim), itaú (pedra negra),
jaguatirica (tigre medroso), parati (praia calma), panambi (borboleta), tietê
(rio volumoso) e outras.
IV
Raquel
Naveira (1957), nascida em Campo Grande, é professora universitária, escritora,
ensaísta, poeta e crítica literária. Formada em Direito pela Universidade
Católica Dom Bosco, em Campo Grande, é mestre em Comunicação e Letras pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, e doutora em Língua e
Literatura Francesa pela Universidade de Nancy, da França.
Deu
aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica
Dom Bosco, em Campo Grande. Residiu no Rio de Janeiro, onde deu aulas na
Universidade Santa Úrsula e, em São Bernardo do Campo-SP, onde lecionou na
Faculdade Anchieta. Deu também aulas de pós-graduação na Universidade Nove de
Julho (Uninove) e na Universidade Anhembi-Morumbi, em São Paulo.
Ministrou
palestras e cursos em escolas e em várias instituições culturais como Casa das
Rosas, Casa Guilherme de Almeida e Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Na
Academia Paulista de Letras, participou do Ciclo de Memória da Literatura,
discorrendo sobre o trabalho das romancistas Maria de Lourdes Teixeira
(1907-1989) e Stella Carr (1932-2008).
É
autora de mais de trinta livros de poesia, crônicas, ensaios e romances, entre
eles: Abadia, poemas (Editora Imago,1996), e Casa de tecla,
poemas (Editora Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia, pela
Câmara Brasileira do Livro. Escreveu o livro infanto-juvenil Pele de
jambo (1996) e o de ensaios Fiandeira (1992). No gênero crônicas,
escreveu Leque aberto (2020) e Manacá (2021), ambos
publicados pela Editora Penalux, de Guaratinguetá-SP.
Publicou
os romanceiros Guerra entre irmãos (1993), poemas
inspirados na Guerra do Paraguai (1864-1870), e Caraguatá (1996), inspirados
na Guerra do Contestado (1912-1916), conflito armado entre os Estados de Santa
Catarina e Paraná, a partir de luta entre posseiros e pequenos proprietários pela
posse de um território, livro que se transformou no filme de curta-metragem Cobrindo
o céu de sombra, monólogo com a atriz Christiane
Tricerri, sob a direção de Célio Grandes.
É
autora de: Via Sacra (1989); Fonte Luminosa (1990);
Nunca-Te-Vi (1991); Sob os Cedros do
Senhor (1994); Canção dos Mistérios (1994); Abadia
(1995); Mulher Samaritana (1996); Maria Madalena (1996);
O Arado e a Estrela (1997); Rute
e a Sogra Noemi (1997); Intimidades Transvistas
(1997); e Senhora (1999), que recebeu o prêmio Jorge de Lima-Brasil 500
anos, concedido pela Academia Carioca de Letras e pela União Brasileira de
Escritores (UBE), do Rio de Janeiro, em 2000.
Publicou
ainda: Stella Maia e Outros Poemas – (2001);
Xilogravuras (2001); Maria Egipcíaca (2002); Casa e
Castelo (2002); Tecelã de tramas – ensaios sobre
interdisciplinaridade (2005); Portão de Ferro (Escrituras,
2006); Literatura e drogas – e outros ensaios
(2007); Guto e os bichinhos (2012); Sangue Português
(2012); Álbuns de Lusitânia (2012); e Jardim Fechado
– Uma Antologia Poética (2016), livro comemorativo dos
seus 30 anos de carreira literária. Em 2002, lançou o CD Fiandeiras do
Pantanal, em que declama seus poemas, acompanhada pela voz e a craviola
da cantora Tetê Espíndola.
Pertence
à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras, de São
Paulo, à Academia de Letras do Brasil, de Brasília, à Academia de Ciências de
Lisboa e ao PEN Clube do Brasil. Escreve para várias revistas e jornais como Correio
do Estado-MS, Jornal de Letras-RJ, Linguagem
Viva-SP, Jornal da ANE-DF e O Trem-MG,
entre outros. Foi condecorada com o grau de comendador da Ordem Guaicurus do
Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região,
de Mato Grosso do Sul. Adelto Gonçalves - Brasil
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Mundo Guarani
– Fragmentos de uma alma de fronteira,
de Raquel Naveira, com texto de apresentação de Artur Anselmo de Oliveira
Soares, da Academia das Ciências de Lisboa. São Paulo-SP, Minotauro/Editora Almedina
Brasil, 96 páginas, R$ 49,17, 2023. Site: www.almedina.com.br E-mail:
atendimento@almedina.com.br
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Adelto
Gonçalves, jornalista, mestre em
Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras
na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São
Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Minha Confreira Raquel Naveira ocupa a Cadeira 7, da Academia Cristã de Letras/SP,. É autora consagrada, tendo várias obras premiadas, inclusive, em 1998, "Casa de Tecla," seu livro de poesias, foi finalista do prêmio Jabuti!
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