Em
novo livro, Eliezer Moreira recorre à ficção para recuperar visita do
aventureiro inglês Richard Burton à Januária, em Minas, no século XIX
I
Um
romance que recupera o que teria sido a visita do aventureiro inglês Richard Francis
Burton (1821-1890), cônsul de seu país de 1865 a 1869 no porto de Santos-SP, à
Januária, cidade situada às margens do rio São Francisco, nos limites com o
Nordeste, em setembro de 1867, é o que o leitor vai encontrar no novo livro do
jornalista Eliezer Moreira, Crônica da passagem do inglês
(Recife, Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, 2024). O foco central do
romance é um triângulo amoroso entre Quirina, negra, escravizada e defensora da
causa abolicionista, Arcanjo, negro, escravo e alfabetizado, e Ballard, um
aventureiro irlandês que se radicou naquele Brasil selvagem e inóspito do
século XIX, atraído pelas cores, pela paisagem e pelas perspectivas de
enriquecimento fácil.
É
de se notar que Burton, soldado, erudito que falava mais de vinte idiomas,
escritor, agente secreto, diplomata e tradutor, viveu em quatro continentes e
fez também uma viagem em busca das nascentes do rio Nilo, uma peregrinação à
Meca e descobriu e traduziu o Kama
Sutra, texto indiano sobre o comportamento sexual humano, aventuras que
foram retratadas no filme As montanhas da lua
(1990) e que se pode acompanhar também no livro Sir Richard Francis
Burton (São Paulo, Companhia das Letras, tradução de Denise Bottmann, 1993),
do historiador norte-americano Edward Rice (1918-2001), obra de pesquisa que mostra
esse personagem atraído pelo gnosticismo, pela prática islâmica e pelo sufismo,
para quem a ideia de Deus resultava fora de propósito. E que infundia um certo
respeito (e talvez repulsa) por exibir na face esquerda uma longa cicatriz, que
funcionava como uma lembrança da viagem que fizera às nascentes do rio Nilo
quando o acampamento em que estava fora atacado por somalis.
Em
Crônica da passagem do inglês, Eliezer
Moreira recupera essa história por meio de um alter ego, Heleno,
aprendiz de jornalista, que, mais de um século depois da viagem de Burton ao
Brasil, a pedido do editor do jornal em que trabalhava, inicia a busca de uma
crônica que estaria perdida nos arquivos e que havia sido escrita por um
morador da cidade ribeirinha, já trinta anos depois dos acontecimentos.
A
crônica tratava da visita de dois dias e meio feita pelo explorador britânico a
Januária, em meio a uma viagem exploratória que incluía passagens por outras
regiões de Minas Gerais e Bahia, que coincide com o momento em que Arcanjo e o
Ballard tinham um duelo marcado para decidir quem haveria de ficar com o amor
de Quirina, episódio que é mantido em suspense até as últimas páginas. E cujo
desfecho torna-se surpreendente e que não se conta aqui para não se estragar o
prazer da leitura. Apenas se adianta que a bela Quirina acabaria por não ceder
os seus encantos a nenhum dos dois apaixonados, mantendo-os subjugados por sua
sedução até o final.
A
utilização de um alter ego, aliás, é um recurso a que o autor já havia
recorrido em seu romance anterior, Olhos bruxos
(Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2019), finalista do Prêmio Jabuti de 2020, inspirado na obra de Machado de Assis
(1839-1908), em que o narrador (e personagem central) é Emiliano Moreira,
livreiro, bibliófilo e escritor obscuro, que alimenta a delirante ideia de
furtar um pincenê do renomado autor depositado numa urna na Academia Brasileira
de Letras, imaginando que, com aqueles óculos, poderia enxergar o mundo com o mesmo talento do genial criador de
personagens famosos como Capitu e Quincas Borba.
II
Já o seu novo romance assume também
características de memorialismo, pois o autor viveu em Januária e, como
confessa, procurou fazer um retrato fiel daquela comunidade e dos personagens
que seriam inspirados em pessoas que moravam lá ao tempo da busca da crônica
perdida, inclusive com seus nomes reais, e de algumas passagens por elas
vividas.
Em outras palavras: a história conta o fugaz
envolvimento do erudito inglês, também mineralogista e antropólogo, com
acontecimentos locais, a uma época em que havia no ar a ameaça da convocação de
“voluntários” para a Guerra do Paraguai (1864-1870), em meio as consequências
para aquela modesta sociedade da exaustão das minas de ouro, diamantes e metais
preciosos antes tão férteis, e o começo da implantação da indústria de ferro na
região, o que acabava por atrair a presença de estrangeiros.
De passagem, fica-se sabendo que, ao tempo, o
jovem que fosse de família de algumas posses sempre podia escapar do
recrutamento “voluntário” para as forças que iriam combater o ditador paraguaio
Solano Lopez (1827-1870), desde que enviasse um escravo em seu lugar. Foi o
caso do negro Arcanjo, que, ao voltar do Paraguai, sentia-se homem livre com
base numa lei do Império segundo a qual o fato de ter permanecido, por
consentimento do seu senhor, numa terra onde a escravidão tivesse sido abolida,
o escravo ganhava a condição de liberto.
Ao acompanhar os diálogos entre as
personagens, que procuram recuperar o idioma português que se falava à época,
entremeado por algumas palavras de origem tupi-guarani e outras do jargão
africano proveniente de várias etnias, o leitor é atraído mesmo pelos lances
provocados pelo interesse sexual de dois homens pela sensual Quirina, cuja
naturalidade é desconhecida.
Afinal, quando ela se descobre no mundo, já era
órfã de mãe e vivia num mocambo, ou quilombo, na região de Januária. Sua mãe e
seu pai, sim, eram baianos e descendentes dos malês fugitivos da Bahia que ali haviam
aportado. E seria ainda descendente de Luísa Mahin, líder da Revolta dos Malês,
rebelião de caráter racial contra a escravidão e a imposição da religião
católica ocorrida em Salvador, em janeiro de 1835, e que assume o papel de
lutadora da causa abolicionista e dos direitos dos escravizados.
Para Burton, no entanto, Quirina era, sim,
uma hauçá, devido ao patuá que ela trazia no pescoço, com uma tirinha de couro
no seu interior na qual estava gravado a ponta de ferro quente um versículo do
Corão. Ao final, porém, o repórter Heleno, depois de muitas pesquisas,
concluiria que Luísa Mahin não seria hauçá, mas da etnia jegê-nagô, o que o
levaria a descartar a hipótese de que Quirina seria neta dela.
III
Com uma linguagem límpida, sem passagens
herméticas, temperada pelo sentimento poético, em que o romanesco se mistura ao
memorialismo, o autor não deixa de mostrar, talvez de maneira involuntária, a
influência que recebe de Machado de Assis, ao construir personagens planas, que
são descritas de maneira direta, não só nos aspectos físicos.
Enfim,
como diz no prefácio a historiadora e ensaísta Isabel Lustosa, “trata-se de um
livro completo no sentido de ser capaz de proporcionar ao leitor prazer e
conhecimento, ao mesmo tempo em que recupera um passado que, mesmo filtrado
pelas lentes da ficção, está evidentemente fundamentado em cuidadosa e profunda
pesquisa”. Melhor recomendação seria impossível.
IV
Eliezer Moreira (1956), escritor e roteirista de cinema e TV, tem mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atuou como roteirista e repórter na TV Brasil e na TV Educativa, no Rio de Janeiro. Nasceu em Cocos, no interior da Bahia, cidade que não chegou a conhecer, pois de lá saiu com a família com apenas um ano de idade e nunca mais voltou.
Cresceu
em Januária, onde viveu até os 23 anos, naquela vasta região de Minas Gerais
situada entre as divisas de Bahia e Goiás, onde no passado – e ainda hoje, sob
outras formas – se davam as velhas guerras por domínio territorial e político,
envolvendo os coronéis e seus jagunços, a mesma região mítica que João
Guimarães Rosa (1908-1967) imortalizou em Grande sertão: veredas
(1956). Depois, passou por Belo Horizonte, Brasília e, por fim, Rio de Janeiro,
onde mora desde 1979.
É
autor também do romance A pasmaceira (Rio de Janeiro, Editora
Record, 1990), vencedor do Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de
Escritores (UBE), e que foi publicado em Portugal com o título Um homem
querendo vender sua morte (Santarém, Rosmaninho
Editora de Arte, 2016). Publicou ainda o romance Ensaio para o
adeus (São Paulo, Editora Patuá, 2018), além da novela Florência diante
de Deus (São Paulo, Editora Patuá, 2015) e do ensaio biográfico Jeanne
Bonnot: uma vida entre guerras
(Florianópolis, Editora Mulheres, 2015).
Participou com dois textos de memórias da coletânea Rio, da
Glória à Piedade (Santarém, Rosmaninho Editora de Arte, 2023).
Adelto Gonçalves - Brasil
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Crônica da
passagem do inglês, de Eliezer Moreira, com posfácio de Isabel
Lustosa. Recife, Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), 236 páginas, R$ 70,00
(edição impressa), R$ 35 (e-book) 2024. Site: www.editora.cepe.com.br E-mail
do autor: elmore56@gmail.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São
Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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