Segundo
romance do jornalista Hugo Almeida surpreende por sua engenhosa estrutura narrativa
I
Um
diálogo com a obra A rainha dos cárceres da Grécia
(1976), de Osman Lins (1924-1978), é o que o leitor vai encontrar em Vale
das ameixas (São Paulo, Editora Sinete, 2024), segundo romance para
adultos do jornalista Hugo Almeida, que surpreende por sua engenhosa estrutura
narrativa. Mas não só. A obra se parece um pouco na estrutura também com Avalovara
(1973), outro livro do escritor pernambucano. A semelhança se dá ainda no
enredo, pois, a exemplo do personagem Abel, de Avalovara, o protagonista
Harley/Timo teria tido várias mulheres.
Narrado
na primeira pessoa e com um ritmo extremamente rápido, como se fossem anotações
esparsas do protagonista, é um longo monólogo interior em que o fluxo de
consciência escorre de forma prazerosa e é acompanhado, ao final, por
intervenções igualmente em primeira pessoa de um filho legítimo (Zacarias) e de
outro presumível (Túlio), feitas já depois de sua morte.
A
escolha do autor por um protagonista típico do romance lírico explica-se pelo
seu conhecimento profundo da obra de Osman Lins, tema de sua tese de
doutoramento em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), em 2005. Mas,
obviamente, não se trata de um pastiche, ou seja, de uma imitação aberta do
estilo de outros autores. Pelo contrário. Há, inclusive, algumas inovações,
como o recurso a uma letra menor em itálico em alguns trechos para deixar o
leitor intuir que aquela seria uma frase dita em sussurros ou com ironia.
Ao
mesmo tempo, o autor recorre, frequentemente, com frases curtas, ao discurso
indireto em que o narrador-personagem expressa com suas palavras a fala de
outrem, o que torna o estilo extremamente ágil e atraente, como se pode
comprovar na passagem em que o narrador reproduz um diálogo que teve com dona
Benedita, que seria uma empregada faz tudo que passaria a morar
num quartinho em sua própria casa:
(...) Fui injusto com dona Benedita. Ela me ajuda além do
que qualquer outra empregada ajudaria. Passou a fazer a feira, fui na primeira
vez com ela, eu a apresentei a cada feirante, o da verdura, da banana, da
laranja, das folhagens, todos. Mas avisei a ela Antes de comprar, dona
Benedita, pergunte o preço, corra as bancas todas. Ela vai passar a fazer a
feira por mim, eu disse a cada um, não vá roubá-la, hein! (...).”
Esse
estilo suave do narrador que parece vir das ruas, com certeza, faz com que o
leitor “não sinta vontade de parar de ler”, já que se trata de “um romance que
toca a nossa sensibilidade do começo ao fim”, como observa no texto de
apresentação o escritor José Newton Araújo, doutor em Psicologia pela
Universidade Paris-Diderot (Paris VII) e professor da Pontifícia Universidade
Católica (PUC-MG) e da UFMG.
O
protagonista é um polaco católico naturalizado brasileiro, de nome Harley
Tymozwski, também conhecido como Timo, que deixou a Polônia, no período entreguerras
(1919-1939), para desembarcar no porto de Santos, e subir para São Paulo, onde
passou a viver com a polaca judia Rachela, que no Brasil adotou o nome de
Biela; ela havia vindo antes e ajudara Harley a migrar-se.
Ele
passou a viver também em companhia da mãe e começou a se virar como alfaiate,
enquanto fazia curso de português para estrangeiros. Descobriu, então, que
“viver no Brasil não é um desterro, mas um verdadeiro presente”. Depois, por causa de “abalos pessoais”,
deixou Biela e foi abrigar-se “numa pequena casa quase nua entre as montanhas
de Belo Horizonte”. Já Biela iria viver com Samir Ramed, que seria o verdadeiro
pai de Túlio, que, a princípio, pensava ser filho de Harley.
Leitor
inveterado, o polaco-brasileiro tornou-se professor em escolas particulares até
prestar concurso público para ingressar em colégio estadual, formando alguns “brilhantes
alunos”, aos quais, mais tarde, teria de recorrer para resolver problemas
domésticos, como, por exemplo, já quase ao final da vida, o corte de sua
aposentadoria pelo antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que
faz lembrar a jornada kafkiana da personagem Maria de França de A rainha
dos cárceres da Grécia pelos labirintos daquela
agência governamental em busca da aprovação de sua aposentadoria por invalidez.
Mas
a vida não lhe foi ingrata, pois, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
Harley voltaria ainda três vezes à Polônia, na última, já aposentado, como
turista. Dividiu sua existência com várias mulheres (além de Biela, com Léa,
Laura, Éden, Laís, Alzira e Núbia, com quem teve um filho, Zacarias), mas, em
boa parte da vida, preferiu compartilhar a casa apenas com a espirituosa dona Benedita.
Zacarias e Túlio dariam o texto final ao manuscrito, com retoques e acréscimos
aqui e ali.
II
Embora
não se possa confundir o narrador-personagem com o autor, há na obra citações
de vários nomes que já fizeram parte da vida ou intervieram com o escritor em
épocas diversas, o que permite concluir que muitas das histórias são narradas
por um alter ego, numa prosa que o escritor e editor Whisner
Fraga, em texto publicado nas abas do livro, reputa como uma das “mais
elegantes da literatura brasileira contemporânea”.
E
que, por sinal, constituem descobertas que só podem ter sido feitas pelo autor,
como a coincidência de um pensamento de Gustave Flaubert (1821-1880), exposto
numa carta a sua amada Louise Colet, em dezembro de 1852, com as palavras
finais de Memórias póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis (1839-1908), assinalada no ensaio “A volúpia lasciva do
nada”, que consta de A biblioteca imaginária (1996), obra do
professor João Alexandre Barbosa (1937-2006). Ou compartilhar com o
narrador-personagem o deleite de descobrir o título do ensaio deste professor
num poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): (das sensações do mundo
a mais sutil): / Volúpia do aborrecimento? / Ou, grande lascivo, do nada?
Mas
quatro capítulos adiante, Harley descobre (“Meu Deus, como
fui ingênuo”) que a expressão “volúpia do aborrecimento” é do
próprio Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás
Cubas. E mais: consultando a biblioteca de Harley, Túlio encontra, num
livro de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), a origem italiana do delírio de Brás
Cubas.
O
leitor vai ainda se deparar com a paráfrase que Osman Lins fez de uma fala de Antígona,
de Sófocles (496/497-406/405 a.C.): “Eu não nasci para partilhar de ódios,
mas somente de amor!” E que pode ter sido inspirada na Ilíada, de
Homero (?-898 a.C), em que “Dione, com a filha Afrodite (ou Vênus) no colo,
lhe diz ter sido feita para combates de amor, não
de guerra”. Tudo isso para concluir que a literatura é feita de
intertextualidades, “uma fraterna rede de diálogos, sem desprezar as raízes”.
E, por fim, lembrar que Marcel Proust (1871-1922) “dizia que todo escritor
começa pelo pastiche”.
Como
se vê, nesse mergulho proustiano do narrador-personagem, marcado pela
melancolia ou pela ironia sutil, o leitor, em meio à trajetória do
protagonista, pode aprender muito, sem contar as citações de autores, episódios
e localidades que, muitas vezes, só será possível localizar com a ajuda de
dicionários especializados ou livros de História ou ainda com a ajuda do
chamado doutor Google.
III
Mineiro
radicado em São Paulo desde 1984, Hugo Almeida (1952), jornalista formado pela
UFMG, em 1976, e doutor em Letras na área de Literatura Brasileira pela USP, é autor
de quinze livros publicados, entre eles Mil corações solitários (São
Paulo, Editora Scipione, 1988), que conquistou o Prêmio Nestlé de 1988 e o Prêmio
Cidade de Belo Horizonte de 1987 com o título de Carta de navegação; e Certos
casais, contos (São Paulo, Editora Laranja Original, 2021).
Filho
de engenheiro e professora, ele baiano, ela mineira, Hugo Almeida nasceu em
Nanuque, em Minas Gerais, mas deixou a cidade natal antes de completar dois
meses. Passou a maior parte da infância em Jequié, na Bahia, cidade banhada
pelo rio de Contas, que aparece em Viagem à lua de canoa (São Paulo,
Nankin Editorial, 2009), reedição de Mais rápido do que
a luz (São Paulo, Editora FTD, 1990), livro selecionado pelo
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Ministério da Educação, em
2011. Depois, viveu um ano em Alagoinhas, também na Bahia, e, aos 9 anos, mudou-se
com a família para Belo Horizonte, onde viveu 22 anos e estreou na literatura
com Globo da morte, contos (Edição Alternativa, 1975).
Publicou
ainda Em teu seio Liberdade, contos (São Paulo, EMW
Editores, 1985), a novela juvenil Porto Seguro, outra história (São
Paulo, Nankin Editorial, 2005), os infantis Todo mundo é diferente (São
Paulo, Lê Editora, 1996), Pare, olhe, siga: boa viagem (São Paulo,
Editora Ícone, 2000), e Que dia será o dia?
(São Paulo, Nankin Editorial, 2007), além da novela Meu nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora
Dimensão, 2009), de Menino anjo capeta beija-flor
(Ananindeua-PA, Edições 1/4, 2019) e dos infantojuvenis Cinquenta metros
para esquecer, contos (São Paulo, Didática Paulista, 1996) e de Minha
estreia no crime – Estação 111, romance (São Paulo, Lê Editora, 1997), inspirado
do massacre do Carandiru, ocorrido a 2 de outubro de 1992, em São Paulo.
É
um dos participantes da antologia Quando não estávamos distraídos
(São Paulo, Editora Sinete, 2023). Organizou e prefaciou Osman Lins:
o sopro na argila (2004), ensaios; e com Rosângela
Felício dos Santos também organizou Quero falar de sonhos:
textos do autor anteriores a Avalovara
(São Paulo, Hucitec Editora, 2014), artigos deste escritor.
Organizou as coletâneas de contos Nove, novena: variações (São Paulo, Olho d´Água, 2016), que reúne narrativas inspiradas na obra de Osman Lins, e Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2020), obra da romancista e contista Clarice Lispector (1920-1977), que foi incluída no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Cultura, de 2021, para o ensino médio. Profissionalmente, sempre trabalhou como jornalista, com longa carreira na redação do jornal de O Estado de S. Paulo. Adelto Gonçalves - Brasil
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Vale das ameixas, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Sinete, 248 páginas, R$ 65,00, 2024. Site: www.editorasinete.com.br E-mail: editorasinete@gmal.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio
Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global
Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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