Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 22 de julho de 2024

‘Vale das ameixas’, um mergulho proustiano

Segundo romance do jornalista Hugo Almeida surpreende por sua engenhosa estrutura narrativa

                                                                                              

                                                          I

Um diálogo com a obra A rainha dos cárceres da Grécia (1976), de Osman Lins (1924-1978), é o que o leitor vai encontrar em Vale das ameixas (São Paulo, Editora Sinete, 2024), segundo romance para adultos do jornalista Hugo Almeida, que surpreende por sua engenhosa estrutura narrativa. Mas não só. A obra se parece um pouco na estrutura também com Avalovara (1973), outro livro do escritor pernambucano. A semelhança se dá ainda no enredo, pois, a exemplo do personagem Abel, de Avalovara, o protagonista Harley/Timo teria tido várias mulheres.

Narrado na primeira pessoa e com um ritmo extremamente rápido, como se fossem anotações esparsas do protagonista, é um longo monólogo interior em que o fluxo de consciência escorre de forma prazerosa e é acompanhado, ao final, por intervenções igualmente em primeira pessoa de um filho legítimo (Zacarias) e de outro presumível (Túlio), feitas já depois de sua morte.

A escolha do autor por um protagonista típico do romance lírico explica-se pelo seu conhecimento profundo da obra de Osman Lins, tema de sua tese de doutoramento em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), em 2005. Mas, obviamente, não se trata de um pastiche, ou seja, de uma imitação aberta do estilo de outros autores. Pelo contrário. Há, inclusive, algumas inovações, como o recurso a uma letra menor em itálico em alguns trechos para deixar o leitor intuir que aquela seria uma frase dita em sussurros ou com ironia.

Ao mesmo tempo, o autor recorre, frequentemente, com frases curtas, ao discurso indireto em que o narrador-personagem expressa com suas palavras a fala de outrem, o que torna o estilo extremamente ágil e atraente, como se pode comprovar na passagem em que o narrador reproduz um diálogo que teve com dona Benedita, que seria uma empregada faz tudo que passaria a morar num quartinho em sua própria casa:

(...) Fui injusto com dona Benedita. Ela me ajuda além do que qualquer outra empregada ajudaria. Passou a fazer a feira, fui na primeira vez com ela, eu a apresentei a cada feirante, o da verdura, da banana, da laranja, das folhagens, todos. Mas avisei a ela Antes de comprar, dona Benedita, pergunte o preço, corra as bancas todas. Ela vai passar a fazer a feira por mim, eu disse a cada um, não vá roubá-la, hein! (...).”

Esse estilo suave do narrador que parece vir das ruas, com certeza, faz com que o leitor “não sinta vontade de parar de ler”, já que se trata de “um romance que toca a nossa sensibilidade do começo ao fim”, como observa no texto de apresentação o escritor José Newton Araújo, doutor em Psicologia pela Universidade Paris-Diderot (Paris VII) e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG) e da UFMG.

O protagonista é um polaco católico naturalizado brasileiro, de nome Harley Tymozwski, também conhecido como Timo, que deixou a Polônia, no período entreguerras (1919-1939), para desembarcar no porto de Santos, e subir para São Paulo, onde passou a viver com a polaca judia Rachela, que no Brasil adotou o nome de Biela; ela havia vindo antes e ajudara Harley a migrar-se.

Ele passou a viver também em companhia da mãe e começou a se virar como alfaiate, enquanto fazia curso de português para estrangeiros. Descobriu, então, que “viver no Brasil não é um desterro, mas um verdadeiro presente”.  Depois, por causa de “abalos pessoais”, deixou Biela e foi abrigar-se “numa pequena casa quase nua entre as montanhas de Belo Horizonte”. Já Biela iria viver com Samir Ramed, que seria o verdadeiro pai de Túlio, que, a princípio, pensava ser filho de Harley.

Leitor inveterado, o polaco-brasileiro tornou-se professor em escolas particulares até prestar concurso público para ingressar em colégio estadual, formando alguns “brilhantes alunos”, aos quais, mais tarde, teria de recorrer para resolver problemas domésticos, como, por exemplo, já quase ao final da vida, o corte de sua aposentadoria pelo antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que faz lembrar a jornada kafkiana da personagem Maria de França de A rainha dos cárceres da Grécia pelos labirintos daquela agência governamental em busca da aprovação de sua aposentadoria por invalidez.

Mas a vida não lhe foi ingrata, pois, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Harley voltaria ainda três vezes à Polônia, na última, já aposentado, como turista. Dividiu sua existência com várias mulheres (além de Biela, com Léa, Laura, Éden, Laís, Alzira e Núbia, com quem teve um filho, Zacarias), mas, em boa parte da vida, preferiu compartilhar a casa apenas com a espirituosa dona Benedita. Zacarias e Túlio dariam o texto final ao manuscrito, com retoques e acréscimos aqui e ali.

 

                                                II

Embora não se possa confundir o narrador-personagem com o autor, há na obra citações de vários nomes que já fizeram parte da vida ou intervieram com o escritor em épocas diversas, o que permite concluir que muitas das histórias são narradas por um alter ego, numa prosa que o escritor e editor Whisner Fraga, em texto publicado nas abas do livro, reputa como uma das “mais elegantes da literatura brasileira contemporânea”.

E que, por sinal, constituem descobertas que só podem ter sido feitas pelo autor, como a coincidência de um pensamento de Gustave Flaubert (1821-1880), exposto numa carta a sua amada Louise Colet, em dezembro de 1852, com as palavras finais de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), assinalada no ensaio “A volúpia lasciva do nada”, que consta de A biblioteca imaginária (1996), obra do professor João Alexandre Barbosa (1937-2006). Ou compartilhar com o narrador-personagem o deleite de descobrir o título do ensaio deste professor num poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): (das sensações do mundo a mais sutil): / Volúpia do aborrecimento? / Ou, grande lascivo, do nada?  

Mas quatro capítulos adiante, Harley descobre (“Meu Deus, como fui ingênuo”) que a expressão “volúpia do aborrecimento” é do próprio Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas. E mais: consultando a biblioteca de Harley, Túlio encontra, num livro de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), a origem italiana do delírio de Brás Cubas.

O leitor vai ainda se deparar com a paráfrase que Osman Lins fez de uma fala de Antígona, de Sófocles (496/497-406/405 a.C.): “Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!” E que pode ter sido inspirada na Ilíada, de Homero (?-898 a.C), em que “Dione, com a filha Afrodite (ou Vênus) no colo, lhe diz ter sido feita para combates de amor, não de guerra”. Tudo isso para concluir que a literatura é feita de intertextualidades, “uma fraterna rede de diálogos, sem desprezar as raízes”. E, por fim, lembrar que Marcel Proust (1871-1922) “dizia que todo escritor começa pelo pastiche”.

Como se vê, nesse mergulho proustiano do narrador-personagem, marcado pela melancolia ou pela ironia sutil, o leitor, em meio à trajetória do protagonista, pode aprender muito, sem contar as citações de autores, episódios e localidades que, muitas vezes, só será possível localizar com a ajuda de dicionários especializados ou livros de História ou ainda com a ajuda do chamado doutor Google.

 

                                                        III

Mineiro radicado em São Paulo desde 1984, Hugo Almeida (1952), jornalista formado pela UFMG, em 1976, e doutor em Letras na área de Literatura Brasileira pela USP, é autor de quinze livros publicados, entre eles Mil corações solitários (São Paulo, Editora Scipione, 1988), que conquistou o Prêmio Nestlé de 1988 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1987 com o título de Carta de navegação; e Certos casais, contos (São Paulo, Editora Laranja Original, 2021).   

Filho de engenheiro e professora, ele baiano, ela mineira, Hugo Almeida nasceu em Nanuque, em Minas Gerais, mas deixou a cidade natal antes de completar dois meses. Passou a maior parte da infância em Jequié, na Bahia, cidade banhada pelo rio de Contas, que aparece em Viagem à lua de canoa (São Paulo, Nankin Editorial, 2009), reedição de Mais rápido do que a luz (São Paulo, Editora FTD, 1990), livro selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Ministério da Educação, em 2011. Depois, viveu um ano em Alagoinhas, também na Bahia, e, aos 9 anos, mudou-se com a família para Belo Horizonte, onde viveu 22 anos e estreou na literatura com Globo da morte, contos (Edição Alternativa, 1975).

Publicou ainda Em teu seio Liberdade, contos (São Paulo, EMW Editores, 1985), a novela juvenil Porto Seguro, outra história (São Paulo, Nankin Editorial, 2005), os infantis Todo mundo é diferente (São Paulo, Lê Editora, 1996), Pare, olhe, siga: boa viagem (São Paulo, Editora Ícone, 2000), e Que dia será o dia? (São Paulo, Nankin Editorial, 2007), além da novela Meu  nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora Dimensão, 2009), de Menino anjo capeta beija-flor (Ananindeua-PA, Edições 1/4, 2019) e dos infantojuvenis Cinquenta metros para esquecer, contos (São Paulo, Didática Paulista, 1996) e de Minha estreia no crime – Estação 111, romance (São Paulo, Lê Editora, 1997), inspirado do massacre do Carandiru, ocorrido a 2 de outubro de 1992, em São Paulo.

É um dos participantes da antologia Quando não estávamos distraídos (São Paulo, Editora Sinete, 2023). Organizou e prefaciou Osman Lins: o sopro na argila (2004), ensaios; e com Rosângela Felício dos Santos também organizou Quero falar de sonhos: textos do autor anteriores a Avalovara (São Paulo, Hucitec Editora, 2014), artigos deste escritor.

Organizou as coletâneas de contos Nove, novena: variações (São Paulo, Olho d´Água, 2016), que reúne narrativas inspiradas na obra de Osman Lins, e Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2020), obra da romancista e contista Clarice Lispector (1920-1977), que foi incluída no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Cultura, de 2021, para o ensino médio. Profissionalmente, sempre trabalhou como jornalista, com longa carreira na redação do jornal de O Estado de S. Paulo. Adelto Gonçalves - Brasil

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Vale das ameixas, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Sinete, 248 páginas, R$ 65,00, 2024. Site: www.editorasinete.com.br E-mail: editorasinete@gmal.com

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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra.  E-mail: marilizadelto@uol.com.br


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