Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 16 de julho de 2024

Uma obra para reparar a misoginia surrealista

É o que faz o poeta e editor Floriano Martins em livro que reconstitui 120 perfis biográficos de mulheres que participaram do Surrealismo

                                                                                                            

 

                                                                           I

O Surrealismo surgiu, a rigor, em 1924, quando o escritor francês André Breton (1896-1966) rompeu com o líder do Dadaísmo, o poeta romeno Tristan Tzara (1896-1963), e lançou um manifesto que deu início a um movimento que se tornou uma das vanguardas artísticas europeias, pois não se restringiu à pintura, mas alcançou a escultura, a literatura, o teatro e o cinema. Como se pode comprovar por fotografias da época, este foi um movimento majoritariamente masculino, a uma época em que à mulher parecia reservado apenas o direito de cuidar da casa e dos filhos. Isso, porém, não significa que muitas, em todo o mundo, não tenham aderido ao movimento e incorporado os seus ideais.

Para reparar essa misoginia surrealista, o poeta Floriano Martins (1957), um dos mais importantes estudiosos desse movimento, escreveu 120 noites de Erosmulheres surrealistas (Fortaleza-CE, ARC Edições/Agulha Revista de Cultura, 2020), em que traça 120 perfis de mulheres que receberam influência dos ideais surrealistas e os colocaram em prática em diversas manifestações artísticas. Trata-se de obra inovadora, pois não se sabe de nenhum outro estudo que tenha tido esse objetivo.

Obviamente, sempre é possível que alguma artista, poeta ou escritora em todo o planeta tenha escapado da rigorosa seleção feita pelo autor que levou em conta principalmente a adesão explícita de cada uma ao Surrealismo. Só por isso, como observa no prefácio Jacob Klintowitz (1941), o principal crítico de arte do Brasil, esta obra, com certeza, tem tudo para se tornar “referência obrigatória no estudo do Surrealismo”, considerando-a “de uma ousadia extraordinária, pois se confronta, não há como não pensar isto, com os 120 dias de Sodoma, do filósofo e escritor francês Marquês de Sade (1740-1814), e oferece a sua contradição fundamental”. Para Klintowitz, “à tese de que tudo é possível devido à ausência de Deus, em Sade, encontra o seu oposto em Floriano, pois nele encontramos a tese de que a ética, e nela a criação humana, é uma construção social e psíquica de milênios da espécie humana”.

 

                                                         II

No ensaio que constitui a primeira parte do livro, Floriano Martins observa que, apesar de o Surrealismo defender o amor, a poesia e a liberdade, “a mulher permaneceu no momento em segundo plano, sempre idealizada, inclusive como aparente protagonista de obras escritas por homens”. Para tanto, ele destaca Nadja, personagem do romance de Breton que leva o seu nome, lembrando que, apesar da homenagem à mulher, o único protagonista da narrativa é o próprio autor.

Ou seja, apesar do discurso, a mulher continuou a ser apenas um objeto nas mãos do maior nome do Surrealismo, sem que visse nela nenhum dote criativo. Para completar a visão machista de Breton, Floriano Martins cita uma passagem que consta de La Révolution Surréaliste, nº 4, de julho de 1925, publicação do movimento, em que ele dizia que lhe parecia “essencial abrir as colunas desta revista apenas para homens que não estão em busca de um álibi literário”.

Mais adiante, cita uma frase da poeta e artista norte-americana Diane di Prima (1934-2020), que fez parte da geração beat, em que ela diz que, para a sociedade daquele tempo, “quando os homens se rebelavam, eram românticos, livres”, enquanto “as mulheres que se rebelaram foram categorizadas como loucas”. Não é preciso mais para deixar clara a evidência do “banimento da mulher, por parte dos surrealistas, como criadora e intelectual”, como diz o autor.

 

                                               III

Diante disso, Floriano Martins tratou de pesquisar e encontrou pelo menos 120 mulheres que “foram aviltadas no Surrealismo pelos excessos ortodoxos e a misoginia” e das quais procurou traçar seus retratos literários. Entre as europeias, destacam-se a poeta e teatróloga francesa Claude Cahun (1894-1954), cujo nome de nascimento era Lucie Schwob, que assumiu “um personagem masculino, mais do que simples escolha de um pseudônimo”, bem como a irlandesa Elizabeth Bowen (1898-1973), poeta, romancista e dramaturga, e a francesa Anaïs Nin (1903-1977), “que rompe a imagem de mulher-objeto do Surrealismo”, famosa por seus romances e narrativas autobiográficas.

Do Brasil, há três nomes bem representativos. O primeiro é o da escultora, desenhista, pintora, gravurista e musicista Maria Martins (1894-1973), que foi ignorada até o final da década de 1950 pela elite brasileira, que preferia a Bauhaus, escola de arte vanguardista na Alemanha, à arte erótica de sua conterrânea. Outro nome é o da poeta, fotógrafa e artista plástica Leila Ferraz (1944), que descobriu o Surrealismo ainda bem jovem e depois se afastou do movimento, quando começou a despertar sua atenção para a misoginia que contaminava as relações do grupo surrealista no Brasil e no exterior.

Entre as brasileiras também está a escritora, poeta, pedagoga e produtora cultural paraibana Anna Apolinário (1986), a quem Floriano Martins define assim: “(...) em nenhuma poeta brasileira se encontram entalhadas de modo tão inquietantes as relações entre surrealismo e sexualidade”.

Já entre as portuguesas, encontram-se nomes como o da poeta e tradutora lisboeta Luíza Jorge Neto (1939-1989), que, tendo sido casada por dois anos com o poeta e escritor surrealista António Barahona (1939), largou o casamento e foi viver em Paris, onde escreveu poemas tangidos pelo erotismo e que iam contra os “cânones bafientos” que dominavam o Portugal de sua época, o que a levou a guardar seus escritos que só depois de sua morte seriam publicados por empenho de sua família.

Outro nome consolidado no segmento é o da escultora e poeta Isabel Meyrelles (1929), que foi amiga de surrealistas como o poeta e pintor Mário Cesariny (1923-2006) e o poeta Cruzeiro Seixas (1920-2020), apesar do espírito de misoginia que também dominava aquele grupo em Portugal. Mudou-se para Paris, onde, sem deixar de esculpir e escrever poemas de tom surrealista e repletos de humor, manteve-se independente, pois, segundo Floriano Martins, “a fobia das mulheres e dos homossexuais de Breton fez com que ela não tivesse maior interesse em uma aproximação”.

Por fim, o autor inclui entre as surrealistas lusas a poeta, dramaturga, teatróloga, ensaísta e editora Maria Estela Guedes (1947), responsável pelo importante site cultural TriploV, pois, embora seus poemas e peças de teatro tenham raízes que a filiam ao movimento, nunca aceitou o Surrealismo “como algo doutrinário ou cristalizante”. Segundo ele, Estela Guedes “se nutre da percepção de multiplicidade de linguagens e de planos de leitura da realidade, que vão de encontro a toda a ortodoxia”, o que a leva a ser definida como surrealista.

 

                                                        IV

Nascido em Fortaleza, no Ceará, Floriano Martins, poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor, tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. Foi editor do jornal Resto do Mundo, 1988/89) e da revista Xilo (1999). Em janeiro de 2001, criou o projeto Banda Hispânica, banco de dados permanente sobre poesia de língua espanhola, de circulação virtual, integrado ao Jornal de Poesia.

Uma atualização de sua intensa atividade editorial impõe lembrar que são de sua autoria também o projeto Atlas Lírico da América Hispânica, tradução de poesia, que realiza nas páginas virtuais da revista Acrobata, do Piauí; e a Coleção Livros Impossíveis, e-books distribuídos gratuitamente, em parceria com a poeta Juana M. Ramos, de El Salvador.

Em 1999, criou a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições, com mais de uma centena de livros publicados de autores de diversos países. Um dos maiores estudiosos do Surrealismo na América, é autor de dois livros de ensaios nessa área: Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (Fortaleza, ARC Edições, 2016) e Escritura conquistada – Poesia hispano-americana (Fortaleza, ARC Edições, 2018).

Entre as suas obras mais recentes, destacam-se: Sombras no jardim (Natal-RN, Sol Negro Edições, 2023); Tríptico da agonia, em parceria com Berta Lucía Estrada (Natal, Sol Negro Edições, 2021); A grande obra da carne (Fortaleza, ARC Edições, 2017); Confissões de um espelho: Cruzeiro Seixas, organização, amparo crítico e revisão geral (Fortaleza, ARC Edições, 2016); O Iluminismo é uma baleia, em parceria com Zuca Sardan (Fortaleza, ARC Edições, 2016); Un poco más de Surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, Universidad Autonoma de la Ciudad de México, 2015); Antes que a árvore se feche (Fortaleza, ARC Edições, 2020); Naufrágios do tempo, novela, em parceria com Berta Lucía Estrada (Fortaleza, ARC Edições, 2020); e El frutero de los sueños (poesia, Wilmington, EUA, Generis Publishing,1997), entre outros.

Traduziu livros de César Moro (1903-1956), Federico García Lorca (1898-1936), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Vicente Huidobro (1893-1948), Enrique Molina (1910-1997), Jorge Luis Borges (1899-1986), Aldo Pellegrini (1903-1973) e Pablo Antonio Cuadra (1912-2002), entre outros autores espanhóis e hispano-americanos.  

Esteve presente em festivais literários realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Foi curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008) e membro do júri do Prêmio Casa de las Américas (Cuba, 2009), do Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e do Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Atuou, em 2010, como professor convidado da Universidade de Cincinnati, em Ohio, Estados Unidos. Adelto Gonçalves - Brasil

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120 noites de Eros – mulheres surrealistas, de Floriano Martins, com prefácio de Jacob Klintowitz. Fortaleza-Ceará, ARC Edições/Agulha Revista de Cultura, R$ 40,00, 168 páginas, 2020. Site da editora: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/ E-mail do autor: floriano.agulha@gmail.com

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Adelto Gonçalves (1951), jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br




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