I
Autor
de vasta obra, com quinze livros de poemas publicados, dois de ensaios e um de
crônicas, além da edição de quinze números da revista Babel e 35 títulos
de obras artesanais pelo selo Sereia Ca(n)tadora, Ademir Demarchi (1960)
acaba de publicar Antologia Impessoal (Florianópolis, Nave Editora,
2022), que reúne mais de 300 poemas escolhidos por leitores ao longo do tempo
em que iam sendo publicados. São poemas que saíram à luz não só no Brasil como
em Portugal, mas também em países de língua espanhola, como Peru, México,
Argentina e Paraguai, e até na Inglaterra.
Ao
contrário de Jorge Luis Borges (1899-1986), autor de Antologia Pessoal
(1965), que fez uma seleção daqueles seus versos que considerava os mais belos,
Demarchi preferiu incumbir a tarefa a terceiros, “pesando o fato de que os
poemas antologizados foram republicados dos livros, comentados, publicados por
encomenda, traduzidos ou divulgados de forma diversa por leitores os mais
inesperados”, sem a interferência do poeta, como observa o autor no prólogo que
escreveu para esta obra.
Em
outras palavras: o poeta não teve a preocupação de fazer uma seleção, ou um
recorte, como diz, mas preferiu reconhecer o gosto dos leitores, ordenando os
poemas de forma aleatória. Ao final do livro, nos agradecimentos, aparecem os
autores de textos que dialogaram intensamente com a sua escrita, o que inclui
este resenhista.
II
Um
dos poemas que se destacam é “Desen(fado)” em que se fundem o pictórico e o
sonoro, pois através dele atravessa um pensamento que define um modo de vida:
meu destino é este / este como um
leve fardo / feito de plumas e estrelas / é este o meu terno fado / aspirar
perfumes no alecrim / é esse o meu fado / puro desenfado / até o meu fim
Em
“O canto do Socó uma fábula do capitalismo”, o poeta, filósofo e ativista político,
inconformado com a insensibilidade do mundo moderno que condena à morte sem
piedade aqueles que considera excluídos da sociedade de consumo, rememora a
tragédia ocorrida em 1984, na cidade de Cubatão, quando um incêndio sem
precedentes na história do país atingiu a Vila Socó (hoje Vila São José), causado
por vazamento de combustíveis de oleodutos que ligavam a Refinaria Presidente
Bernardes ao terminal portuário da Alemoa, em Santos:
(...) 300 palafitas queimadas tudo
derretido e aniquilado como toque de fada / mais de cem impessoas com e sem
cérebros foram torradas / incendiadas fantasias no fogo os documentos se
tornaram nada / (...) A industrialização se enferrujava no Brasil grande / e
atingia os dutos gigantes sob as camas e o mangue de gasolina. (...)
Se
como dizia o professor e crítico literário Massaud Moisés (1928-2018), a emoção
é condição sine qua non para que o fenômeno poético se realize, ou seja,
é fundamental a união entre emoção e pensar, o pensamento demarchiano mostra-se
perfeitamente integrado a esse modo de ver o mundo, inconformado com aquela
tragédia que assinalou e, praticamente, decretou o fim do regime militar
(1964-1985), expondo a incapacidade da classe armada (e seus áulicos) de
administrar o país e muito menos arvorar-se como poder moderador da República.
Em
“O país do futuro”, o autor deixa de lado até mesmo a linguagem poética para
declarar o seu mortal pessimismo com frases em que ficam claros seu desespero e
sua descrença no futuro do Brasil como nação civilizada:
seis brasileiros – todos homens –
brancos – / concentram a mesma riqueza / que a metade mais pobre da população /
mais de 100 milhões de pessoas / os 5%
mais ricos do país recebem por mês / o mesmo que os demais 95% juntos / as
mulheres brasileiras só atingirão a igualdade salarial em 2047 / e as pessoas
negras só ganharão o mesmo que as brancas em 2089 / caso a tendência dos
últimos 20 anos se mantenha / esses são apenas alguns dos impressionantes dados
/ da rica desigualdade brasileira
Já
em “Tango”, o poeta volta a manusear ideias através de imagens insólitas, com o
objetivo de reforçar o desalento de seu “eu” poético com as surpresas
desagradáveis que a vida nos reserva.
(...) sou mendigo neste mundo / que
sempre sabemos que foi um charco / que pisamos juntos até o fundo / e dele
danço o tango piso e marco / seus olhos vejo cegos de paixão / espero queimar o
tempo fumando / consumindo a vida à toa e sem não / me cerco da fumaça atroz
amando / minha loucura me fez vibrar / danço um tango apaixonado / pela vida
que seduz e faz sonhar / meu atroz coração atropelado
III
Ademir
Demarchi, nascido em Maringá, mas estabelecido em Santos e São Vicente desde
1993, foi editor das revistas de poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução
e Crítica, de 2000 a 2017, e Babel Poética, de 2011 a 2013, premiada
em primeiro lugar entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento de
2009/2010 do Ministério da Cultura.
É
graduado em Letras na área de Francês pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM) e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), sob a orientação do professor Raul Antelo, um dos maiores
especialistas acadêmicos na área da Antropofagia. É doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP) na mesma área.
Começou
sua trajetória poética em 1979, com Ironia e Poesia, ainda à época da geração
do mimeógrafo, que seria rejeitada. Depois, em 1985, publicaria Maria, a
cidade sem rosto, também em mimeógrafo, pelo Diretório Central dos
Estudantes da Universidade Estadual de Maringá, obra que seria reescrita e
incluída em Pirão de sereia (2012). São poemas que têm por inspiração a
vida naquela cidade à época do regime militar e pós-ditadura.
Publicou
também Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Edições, 2007); Passeios
na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do
sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007, Lima,
Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012);
Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos,
Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); Pirão de sereia,
que reúne sua obra poética de 30 anos (Santos, Realejo Edições, 2012); O
amor é lindo (São Paulo, Editora Patuá, 2016); Siri na lata (Santos
(Livraria Realejo, 2015); Gambiarra: uma pinguela para o futuro do pretérito
(Bragança Paulista, Urutau, 2018); Espantalhos, ensaios
(Florianópolis, Editora Nave, 2017), e Contrapoéticas (Florianópolis, Editora
Nave, 2017), ensaios, resenhas, prefácios e depoimentos, entre outros.
Com
numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites
da Internet, foi colaborador por oito anos do jornal impresso Diário do
Norte do Paraná, de Maringá. Organizou as antologias Passagens –
antologia de poetas contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do
Estado do Paraná, 2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas
poéticas no Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca
Pública do Paraná, 2014). Adelto Gonçalves - Brasil
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Antologia Impessoal, de Ademir
Demarchi. Florianópolis, Editora Nave, 416 páginas, 2022. Site: www.editoranave.com E-mail: editoranave@gmail.com E-mail do autor: ademirdemarchi@uol.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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