Novo livro
de Vera Lúcia de Oliveira reúne poemas inéditos e outros já publicados, mas
todos trazem a marca de um espírito franciscano
I
Professora
universitária, ensaísta, crítica literária e poeta reconhecida no Brasil e na
Itália, Vera Lúcia de Oliveira, paulista de Cândido Mota, acaba de lançar mais
um livro que vai enriquecer a sua já vasta obra: Esses dias partidos
(São Paulo, Editora Patuá, 2022), coletânea de poemas que vem dividida em duas
partes – a primeira, “O tempo denso”, formada por poemas inéditos, escritos no
período mais crítico da pandemia de coronavírus (covid-19), em 2020, quando a
Itália foi o país mais atingido, depois da China, e viveu o confinamento
absoluto; e a segunda, “Antologia poética”, com textos selecionados pela
autora, que reúne poemas recolhidos de seis livros publicados entre 2004 e 2016
(Pássaros convulsos, Entre as junturas dos ossos, No coração da boca,
A poesia é um estado de transe, O músculo amargo do mundo e Minha língua
roça o mundo).
Antes de mais nada, é preciso reafirmar que poucos poetas
brasileiros contemporâneos, como Vera Lúcia de Oliveira, tiveram sua produção
poética tão analisada e incensada. A lista vai de José Saramago (1922-2010),
Prêmio Nobel de Literatura de 1998, a
poetas e acadêmicos como Ferreira Gullar (1930-2016), Lêdo Ivo (1924-2012) e
Carlos Nejar, passando por estudiosos como a filóloga italiana Luciana Stegagno
Picchio (1920-2008), historiadora da cultura, que foi considerada a mais
importante luso-brasilianista da Europa, entre outros.
Sua estreia se deu com a coletânea A porta range no fim
do corredor em 1983, ano em que ela passou a residir na Itália, onde se
tornou professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Universidade de
Perugia, ao lado de um professor italiano grande conhecedor da cultura
lusófona, Brunello De Cusatis. Desde então, publicou 25 livros de poesia e
outros tantos de ensaios, como se pode ver mais abaixo.
Neste
seu mais recente livro, mais uma vez, mostra sua devoção aos deserdados da
terra, sua solidariedade franciscana aos pobres que hoje estão cada vez mais
visíveis nas ruas e avenidas das grandes cidades brasileiras, constituindo um
cortejo de desfavorecidos que vivem em cabanas improvisadas ou doadas pelo
poder público: mendigos, desocupados, catadores de lixo, moleques e moças
malabaristas, vendedores de água “batizada” e mães em andrajos que exibem seus
filhos para comover e convencer alguém que passa a lhe atirar ao menos a moeda
de menor valor.
Na
primeira parte do livro, porém, sua atenção se deu em relação aos italianos que
viu passar em direção ao hospital ou ao necrotério, enquanto fazia a roda da
memória girar. Diz em nota ao final dessa seção: “(Estes poemas) seguem o ritmo
de um tempo que escorre por dentro, um tempo vertical, enquanto fora tudo
parecia suspenso, sólido e ao mesmo tempo precário. Moviam-se os pássaros, os
cães arrastando uns poucos que se arriscavam, uns gatos finalmente livres, e o
verde que nos abraçava, enquanto homens e mulheres iam partindo da vida,
levados em caminhões do exército, que saíam de madrugada da cidade de Bérgamo
rumo ao lugar de onde não mais iriam voltar”.
Nesse
tempo, escreveu este breve poema intitulado “quarentena”: ando tão escondida
/ que nem me acho. Em seguida, anotou este sem título: o relógio afere o
que não existe / a casa tinha o seu medidor / o tempo tinha um lugar para
habitar / e se movia em alvoroço / quando nos via abrir o portão / os ponteiros
se precipitavam no abraço / as marcas dos minutos despencavam / do quadrante do
seu corpo / até que as mãos segurassem os movimentos / evitando que partíssemos
no primeiro / vento de inverno / o tique taque então tiritava os molares no
escuro / prevendo tempestades nos mares e oceanos / a dor desandava pelos
cômodos da casa / onde o tempo voltava a viver na boca / e o telefone varava
todas as portas / do mundo
II
Da
segunda parte do livro, constam também os versos do livro O músculo amargo
do mundo (São Paulo, Editora Escrituras, 2014), por meio dos quais a
poeta transmite a dor que sente ao ver o seu país natal em naufrágio, sem rumo,
depois de perdida a batalha da educação nas escolas públicas e privadas, o que
tem levado milhares de jovens para o consumo e o tráfico de drogas ou para a
prostituição, enquanto os ladravazes de recursos públicos festejam impunes
pelos salões da república. Leia-se este poema: meu país é do lado de fora
que ele mais dói / meu país tem calçada chiqueiro bueiro onde / gente compete
com bicho e perde / meu país tem mercado avenida rua semáforo / onde com pouco
se compra um corpo
De
fato, como observa o jornalista, poeta e escritor Carlos Machado, no prefácio
que escreveu para esta obra, a lírica de Vera Lúcia de Oliveira “se desenvolve
a partir de criaturas reais, personagens brasileiras, em geral pessoas
humildes, com suas lutas, sofrimentos e pequenas alegrias. (...) São textos
diretamente extraídos do lado mais sombrio do cotidiano ou, no dizer mais
sonoro dela mesma, textos que distendem o músculo amargo do mundo
– expressão que intitula uma de suas coletâneas”. E acrescenta: “São crianças,
homens e mulheres que expõem angústias indizíveis, temores inexplicáveis, e
falam ao rés do chão, esse chão cinzento da pobreza e do desamparo”.
Um
exemplo perfeito disto é este poema: lavava a roupa / e a roupa levava
fiapos / de seu corpo pelo ralo / um dia ia ficar tão / rala que sumiria / pelo
buraco do cano
Ou
ainda este: esse cão que me segue / é minha família, minha vida / ele tem
frio, mas não late nem pede / ele sabe que o que eu tenho / divido com ele, o
que eu não tenho / também divido com ele / ele é meu irmão / ele é que é o meu
dono
Já
o escritor Ronaldo Cagiano, autor do posfácio, ao definir Vera Lúcia de
Oliveira como “uma das vozes mais consistentes não apenas do Brasil, mas do
mundo lusófono”, observa que a sua poesia “percorre os escaninhos da realidade
individual e coletiva e confronta-se com questões existenciais e íntimas em
meio à nostalgia de um passado recomposto na geografia doméstica”.
É
o que se comprova em versos como estes: esperar na porta / que o vento passe
/ e traga nele sua voz / já que os trilhos do trem / foram arrancados / as ruas
não me levam / o ar parado se perde / como água que adoece / e o telefone mudo
/ espera que você / entre nele com / seu chinelo
Ou
ainda nestes: roça a língua de setembro sobre o mundo / com seu osso com seu
dorso de vocábulo / limpa as escadas lustra a casa e encera e passa / essa
demora de memória que não passa
III
Vera
Lúcia de Oliveira (1958), formada em Letras pela Universidade Estadual de São
Paulo (Unesp), campus de Assis, doutorou-se em Línguas e Literaturas Ibéricas e
Ibero-americanas pela Universidade de Palermo (1997). Ensaísta e tradutora,
organizou antologias de vários poetas, entre as quais se destacam as que ela
fez com poemas de Lêdo Ivo, Carlos Nejar e Nuno Júdice. Em 2005, ganhou o Prêmio
de Poesia da Academia Brasileira de Letras com o livro A chuva nos ruídos
(São Paulo, Escrituras, 2004).
A
autora escreve tanto em português como em italiano e seus poemas foram
publicados em antologias no Brasil, Portugal, Itália, Espanha, França, Alemanha,
Romênia e Estados Unidos. Recebeu
diversos prêmios pela produção literária, entre os quais o Prêmio Sandro Penna
(Perugia, 1988), o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (Rio de
Janeiro, 2005), o Prêmio Popoli in cammino (Milão, 2005), o Prêmio
Literatura para Todos (Brasília, 2006), o Prêmio Internacional de Poesia
Pasolini (Roma, 2006) e o Prêmio Internacional de Poesia Alinari (Florença,
2009).
Entre
os livros de ensaios publicados, estão: Poesia, mito e história no Modernismo
brasileiro (São Paulo: Editora da Unesp, 2015); Storie nella storia:
Le parabole di Guimarães Rosa (Lecce, Pensa Multimedia, 2006); Utopia
selvaggia – L’indio del Brasile: Innocente Adamo o feroce cannibale? (Roma,
Gaffi Editore, 2006); Narrativas brasileiras contemporâneas em foco, em
colaboração com Eunice Piazza Gai (Santa Maria, Editora Universidade Federal de
Santa Maria, 2012).
Entre
os textos poéticos, publicou também Geografia d'ombra, poesia (Veneza,
1989); La guarigione, poesia (Senigallia, 2000); Verrà l'anno,
poesia (Rimini, 2005); Entre as junturas nos ossos, poesia (Brasília,
2006); No coração da boca, poesia (São Paulo, 2006); Il denso dele
cose, antologia poética bilingue (Lecce, 2007); A poesia é um estado de
transe, poesia (São Paulo, 2010); La carne quando è sola, poesia (Firenze,
2011); Vida de boneca, poesia infantil (São Paulo, 2013); Ditelo a
mia madre, poesia (Rimini, 2017); Minha língua roça o mundo, poesia (São
Paulo, 2018); Ero in un caldo paese, poesia (Rimini, 2019); e Tempo
suspenso, plaquete (São Paulo, 2021). Adelto Gonçalves - Brasil
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Esses dias partidos, de Vera Lúcia de Oliveira, com prefácio de Carlos Machado e posfácio de
Ronaldo Cagiano. São Paulo: Editora Patuá, 236 págs., R$ 45,00, 2023. E-mail: editorapatua@gmail.com Site: www.editorapatua.com.br E-mail da autora: veralucia.deoliveira.m@gmail.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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