Estamos em plena semana das Correntes. Basta dizer, escrever “Correntes” que já não é preciso acrescentar mais nada. Todos sabem de que evento se trata – as Correntes d’escritas
A
Romaria para a Póvoa de Varzim começa a formar-se muito tempo antes, como os
pequenos ribeiros que, lentamente, vão engrossando os leitos para se
transformarem em rios de vontades que desaguam no mar da Póvoa. São os
telefonemas, as mensagens e os e-mails trocados entre os habituais
militantes do evento a perguntar: vais este ano? já te decidiste? encontramo-nos
lá? e fulano? e beltrana? há muito que não sei nada deles!
Fala-se
da viagem à Póvoa como da ida a um santuário, onde as palavras - sob a forma de
prosa, poesia, música, cinema, teatro e até silêncio – são sagradas; e
consagrados os que as produzem e reproduzem, como quem profere uma oração.
Ano
após ano (exceto durante o interregno que a pandemia provocou) acontece o
mesmo: todos os caminhos vão dar à Póvoa. Pelas redes sociais, vamos
descobrindo companheiros de jornada: mais um amigo ou um conhecido. Depois,
para que certas particularidades das conversas não se tornem públicas, passa-se
às mensagens privadas. Acabamos por descobrir que vamos ficar hospedados no
mesmo hotel, no hotel ao lado ou noutro da vizinhança. E a vizinhança, assim que
tudo começa, salta do hotel para a sala do teatro Almeida Garrett, onde decorre
grande parte do evento, para o toldo da feira do livro, para o café da bica
social - após a que já foi tomada ao pequeno-almoço -, para restaurantes que saem
da esfera da organização, sempre que se quer ter um convívio mais pessoal. É a alegria
dos encontros e reencontros que, no meu caso, é ainda mais desejado, porque a missão
de voluntariado, que fiz à Guiné-Bissau, me impediu de ter estado presente no
último ano.
Quando
faltamos, somos sujeitos a um escrutínio, como se faltar fosse proibido, quase
um pecado. Não faltam as perguntas: não apareceste? não pudeste vir? aconteceu
alguma coisa? E fica aquela sensação tão terna de que passámos de espetadores a
uma família, em que o grau de parentalidade varia conforme a relação de
pertença a uma genealogia, cujas cédulas de nascimento são lavradas no papel da
árvore que nos abriga.
E
a Póvoa suga-nos a todos como um movimento centrípeto que, no seu rodopio, nos
atira para o centro do verbo onde tudo começou. Mesmo quando os motes mudam,
não se alteram os desafios, nem falta imaginação a quem os enfrenta. E nós evitamos
atrasos, porque sabemos que a disputa por um bom lugar sentado é como a dança
das cadeiras, em que é importante estarmos atentos ao compasso da saída e das
entradas das figuras que queremos ver e ouvir.
No
programa, há sessões justapostas, lançamentos de livros e conversas à mesa. Temos
de escolher. Às vezes, enganamo-nos e o que excluímos acaba por ser mais interessante
do que aquilo a que fomos assistir, dizem-nos! Que importa? O saldo é sempre
positivo, porque saímos de lá intelectualmente mais ricos do que quando entrámos.
Se
a vida é feita de rituais, este é um dos que se entranhou em mim. Fora eu
serpente, que mudaria a natureza das coisas. Decretaria que se não largasse a
pele, porque é nela que ficam tatuados todos os mitos e ritos que nos definem.
E há um que sempre pratico – enviar um postal aos meus netos, com o carimbo do
quanto me marcou naqueles dias.
Ao
contrário da autora da epígrafe, eu acredito que, no futuro, eles serão sempre “uma
carta, fotografia ou memória” da escrita com que serei recordada. Aida
Batista – Portugal in “Milénio Stadium”
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