O polo cultural que está a ser desenvolvido nas antigas ruínas da fábrica Iec Long, na Taipa, resgata um “vestígio muito completo” da história da produção de panchões em Macau e um raro exemplar do património industrial local
Os
portões trancados da antiga fábrica de panchões Iec Long são há muito imagem
presente para quem percorre a rua Fernão Mendes Pinto, na vila da Taipa, e
sinalizam um episódio da história de Macau muitas vezes esquecido.
Elemento
típico da cultura chinesa, o panchão, cartucho de pólvora revestido a papel
vermelho e queimado em ocasiões festivas, como no ano novo lunar, alimentou,
entre os séculos XIX e XX, uma das indústrias mais robustas de Macau. E a Iec
Long, desativada em 1984 e tomada pelo tempo e pelo arvoredo, conserva até hoje
a memória mais completa da produção de panchões no território, além de ser um
dos escassos exemplares do património industrial local.
“É
um vestígio muito completo, uma janela para o passado de uma fase muito
importante para a subsistência da população e o desenvolvimento económico da
cidade”, nota Carla Figueiredo, do departamento do património do Instituto
Cultural (IC), que acompanha a Lusa numa visita ao espaço, aberto ao público em
finais de dezembro após a conclusão da primeira fase de reabilitação.
Às
dez de manhã de quinta-feira, o novo passadiço de teca, que percorre as antigas
unidades de produção, como a câmara de fabrico de pavios ou a sala de entalhe
de panchões, ao longo de um percurso de mais de 400 metros, está praticamente
desocupado. Raízes aéreas de uma figueira-de-bengala avançam sobre velhas
estruturas. Uma árvore de cânfora, com mais de 260 anos, é a espécie mais
antiga do recinto de 25 mil metros quadrados. “Algumas das unidades de produção
estão rodeadas de paredes francamente espessas, para proteger das antigas
funções. São indicativos das unidades mais perigosas”, aponta a arquitecta.
O
manuseamento de produtos químicos para a preparação dos panchões representava
uma ameaça à segurança de quem trabalhava na manufatura e ditou, no início do
século XX, a transferência de fábricas da península de Macau para a Taipa, área
menos povoada, e, a partir dos anos 1970, o declínio da atividade, com a
generalização das restrições ao uso destes foguetes chineses.
Com
isso, o papel social do panchão e “a ligação afetiva às próprias cerimónias”
também mudou, lembra Carla Figueiredo. “Fazia parte das próprias festividades
para afastar maus espíritos, portanto está muito integrado na filosofia de
geomancia e de energias – afastar as más energias com os sons, com os ‘flashes’
dos panchões a rebentar e a poeira que ficava. Tudo isto são rituais
simbólicos. Eram talvez mais mitológicos no início e hoje em dia são talvez
mais celebratórios”, reforça.
Também
o ‘feng shui’, prática que procura o equilíbrio entre o indivíduo e o espaço,
“muito importante para qualquer planeamento urbano ou arquitectónico de
edifícios chineses”, determinou a localização da unidade fabril, com a colina
na parte traseira e o rio “que simboliza dinheiro e prosperidade” a correr pela
frente.
A
Iec Long, estabelecida em 1925 por Tang Bick Tong, empresário de Nanhai, cidade
da província chinesa de Guangdong, foi a fábrica de panchões que mais tempo
esteve em funcionamento no território, chegando a empregar entre 400 a 500
funcionários, incluindo crianças, que montavam diariamente dois mil discos de
panchões.
Porém,
este ramo de atividade, exclusivo da comunidade chinesa, estreou-se em Macau
quase 60 anos antes, chegando a ser um dos principais empregadores do
território. O produto, exportado para as várias comunidades chinesas
além-fronteiras, projetou a “imagem de Macau e da China para o mundo”. “Haver
uma linha de montagem para produzir algo que era tão crucial para a exportação
local é de facto pioneiro em Macau e esta linha de montagem está perfeitamente
reflectida nas estruturas que ainda existem”, diz a arquitecta. E lembra ainda
outra função: “A própria fábrica de panchões tinha uma pequena quinta, com
gado, com ovelhas, com galinhas e era quase autossuficiente. Na altura da
guerra de resistência contra os japoneses [1937-1945], a quinta da Iec Long foi
importante para dar alimentos aos trabalhadores e até para venda nos mercados”.
Esse
ambiente bucólico, que a intervenção do IC optou por preservar, é um “apelo à
calma” e uma oportunidade para “fugir ao ritmo acelerado da vida”, num projeto
que tem como propósito “diversificar o turismo cultural e descongestionar o
centro histórico de Macau, com espaços alternativos de interesse cultural”.
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