I
O
haicai, modalidade de poesia de origem japonesa, sobrevive hoje no Brasil com várias
vertentes: a tradicionalista, a de inspiração zen, a filiada ao poeta paulista Guilherme
de Almeida (1890-1969), importante organizador da Semana de Arte Moderna de
1922, a epigramática e a de matriz concretista, conforme classificação feita
pelo crítico literário e também poeta Paulo Franchetti, doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP) e professor aposentado do Departamento de
Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que consta do
artigo “O haicai no Brasil” publicado na revista Alea: Estudos Neolatinos,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), v. 10, nº 2, julho-dezembro
de 2008, pp. 256-269.
Segundo
o professor, “o que parece novo é o sincretismo que se opera entre elas (com exceção
da vertente guilhermina, que pouco dialoga com as demais), ganhando mais peso a
incorporação dos princípios e práticas do haicai tradicional, entendido antes
como atividade, como aprendizado de uma determinada forma de olhar para o mundo
e utilizar a linguagem, do que como técnica de composição ou forma fixa exótica”.
É na vertente de matriz concretista, visual, vanguardista e não-formal e,
portanto, destituída de estrutura poética de metrificação e versificação, que
se pode classificar a poesia que se lê em HaiKai: Fragrâncias Poéticas
(Lisboa, VuJonga Magazine, 2019), de Silvya Gallanni, brasileira radicada em
Portugal desde 2010, que reúne peças produzidas entre 2009 e 2016 e algumas publicadas
anteriormente no site Recanto das Letras, de São Paulo-SP.
Uma
das fundadoras da revista digital VuJONGA, Silvya Gallanni está ancestralmente
ligada às culturas europeia, indo-americana e na convivência com a
afrodescendência brasileira de Jaú, outrora terra do café e cana-de-açúcar, e
de escravos. No caso, é preciso lembrar que VuJonga significa Oriente
do Sol nascente em shiJonga, idioma muito antigo de cultura baNto,
originário da capital de Moçambique, no Sudeste da África, que, infelizmente,
encontra-se em processo de extinção desde 1975 em razão de imposições político-ideológicas.
Por
isso, seus haicais e outras formas de poesia refletem a fusão dos três mundos
que a formaram – o europeu, o ameríndio e o africano –, fundidos coercitivamente
entre os séculos XVI e XIX, na construção do império colonial português. Descendente
de imigrantes italianos de Veneza (parte materna Galanni) e de Nápoles (lado
paterno Cavicchioli), Silvya Gallanni, nome literário de Silvia R. Veríssimo,
tem ainda avoenga materna inglesa (Botton) via Veneza e paternos guaicurus
(mestiços de guaranis com portugueses ou espanhóis). Seus familiares maternos
estão espalhados por todo o Sudeste do Brasil, especialmente nas cidades de São
Paulo (tios-avôs), Santos, Sorocaba, Bauru, Campinas, Piracicaba e ainda em
Curitiba, no Paraná. Aliás, na página 9 da obra, a autora colocou foto de sua
avó paterna, Maria Rosário de Jesus (1884-1987), na qual são visíveis os traços
guaicurus-mestiços de guarani com europeu (Veríssimo Bueno de Carvalho**).
E
não só. Como brasileira, acabou por receber também a influência cultural do
Japão, que se firmou no Brasil depois da chegada da primeira imigração
nipônica, em 1908, em particular a que se fixou em Jaú, antiga capital do
calçado feminino da América Latina. É o que explica sua preferência pelo estilo
haicai na poesia, que, em meados do século XX, afirmou-se no meio literário
brasileiro, especialmente pela adaptação do estilo do mestre-poeta japonês
Matsuo Bashô (1644-1694), por autores brasileiros estranhos à cultura nipônica.
Portanto, foi através dessa forma poética que a autora procurou exteriorizar
sua sensibilidade poética.
II
Como
observa no prefácio o escritor, pintor e artista plástico João Craveirinha (Mphumo
Kraveirinya), Silvya Gallanni, neste seu primeiro livro em que reúne também
fotografias, surpreende ao escolher esse conceito cultural bucólico da escrita
nipônica para enveredar por uma trilha nova, transmitindo uma brasilidade
paulista. “Quiçá, de alguma memória visual de infância, derivada da presença de
nipodescendentes (sanseis) em Jaú, cidade no coração do Estado de São
Paulo, onde a autora se insere socialmente num meio, também, de heranças
históricas afro-brasileiras provenientes do longínquo e trágico processo de
travessias do Oceano Atlântico”, acrescenta.
Seja
como for, a poesia de Silvya Gallanni segue fielmente as diretrizes que compõem
o haicai japonês, reverenciando o fluxo das estações climáticas que,
praticamente, constituem o núcleo dessa forma poética, ligada à sensação de ver
o tempo passar e consequentemente acompanhar o inevitável escoar dos anos e da
vida. Sem deixar de acompanhar as tendências dominantes na poesia brasileira de
hoje, que seguem os rumos traçados inconscientemente por poemas de cunho
concretista, de que Haroldo (1929-2003) e Augusto de Campos (1931) e Décio
Pignatari (1927-2012) são os precursores, e pela produção de poetas que hoje
são ícones da poesia brasileira, como Manuel Bandeira (1886-1968), João Cabral
de Melo Neto (1920-1999) e Ferreira Gullar (1930-2016).
Veja-se aqui
um exemplo:
Sonhos de verão
Abraçados na noite
Beijos ao luar
E mais este:
Luar do sertão
Cheiro de
boa-noite
Chão de estrelas
Ou mais este:
Noite e dia
Graúna, melro
cantam
Meu mal espanta
Ou ainda este:
Colhendo lírios
Borboletas no
jardim
Cheirando flores!
III
Nascida
em 1959, em Jaú, no Estado de São Paulo, a autora escreve crônicas, poesias e
contos. Ao final do Colegial, fez o curso de Contabilidade, mas
profissionalmente atuou como promotora de vendas de produtos alimentares, em
particular de marcas japonesas e suíças, fazendo carreira como supervisora de stock
entre São Paulo e Belo Horizonte por duas décadas, antes de se transferir para
Portugal.
HaiKai:
Fragrâncias Poéticas, seu livro de estreia, teve
lançamento dia 25 de outubro de 2017 na tradicional livraria Férin, no Chiado,
em Lisboa, com a participação de Pasquale Cipro Neto, professor de Língua
Portuguesa notabilizado por seus programas radiofônicos e televisivos no Brasil,
Juliana Loyola, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp), e Fátima Domingues, professora portuguesa jubilada e uma
das co-fundadoras do VuJONGA cadernos literários. Faz parte dos planos
literários de Silvya Gallanni a publicação de livros de contos breves, de
contos para crianças e de outros gêneros de poesia. Adelto Gonçalves - Brasil
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HaiKai:
Fragrâncias Poéticas,
de Silvya Gallanni. Lisboa: Cadernos Literários de VuJONGA Magazine, 68 págs., edição
em papel, 2017; edição digital (e-book), 2020.
E-mail da edição em VuJONGA
textos: vujonga@hotmail.com
Website: VuJonga magazine
Facebook: https://www.facebook.com/VuJonga
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
(**) Veríssimo
Bueno de Carvalho, bisavô paterno da autora Silvya Gallanni. Dono da bisavó,
escrava guarani, batizada Thereza Maria de Jesus e pai da avó Maria do Rosário,
mãe do pai da Silvya – 'seu' Euclides, filho de José Pereira Dias (conhecido
por ‘Zé Bode’ e muito temido na região, no século XX).
Por
sua vez, esse avô paterno, José Pereira Dias (dono de arrozal) era filho de uma
imigrante italiana da família Cavicchioli, napolitana, e de um
português dos Pereira Dias.
Veríssimo Bueno de Carvalho, dono de cafezal, era
proprietário de escravos em Bocaina, interior do Estado de São Paulo onde
nasceu a avó paterna, Maria do Rosário, mãe do pai Euclides. (Registros na Matriz
de Jaú).
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