I
Se
os grandes romancistas ou contistas projetam nova luz sobre os predecessores
que lhes apontaram os caminhos e foram nada mais que ávidos leitores, então, a fronteira
entre o vivido e o lido, praticamente, não existe e, portanto, procurá-la seria
vã tarefa, como afirma o hispanista norte-americano Stephen Gilman (1917-1986) em
Galdós and the Art of the European Novel: 1867-1887 (Princeton, 1981). Mais:
que leitor, por mais desmemoriado que seja, não constatou nas páginas de uma
novela gestos e palavras de outras?
Afinal,
como observou a filósofa e crítica literária búlgara-francesa Julia Kristeva
(1941) no ensaio “Le mot, le dialogue et le roman”, escrito em 1966,
“todo texto é construído como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de outro texto. E no lugar da noção de intersubjetividade o que
se instala é a intertextualidade, e a linguagem poética é lida, ao menos, como
dupla”. Nesse caso, o texto passa a ser um “diálogo de várias escrituras”, como
define Julia Kristeva.
Estas observações foram extraídas de Entre lo Uno y lo Diverso (introducción a la Literatura Comparada – ayer y hoy (Barcelona, Tusquets Editores, 2005), do acadêmico e escritor espanhol Claudio Guillén (1924-2007), e vêm aqui a propósito de Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2020), organizado pelo jornalista e escritor Hugo Almeida e que reúne 27 contos escritos por autores tanto novatos como experientes a partir da leitura de um dos contos que integram o livro Laços de família, de Clarice Lispector (1920-1977), publicado em 1960.
O livro saiu em 2020, com pouca repercussão na mídia – aliás, esta seria a primeira resenha da obra, segundo o seu organizador –, e marca não só a data do centenário de nascimento da autora como os 60 anos da publicação do volume. Traz duas versões inspiradas em cada um dos contos que constituem Laços de família e seguem a ordem dos textos do livro, como observa no prefácio Hugo Almeida, que foi quem teve a ideia de criar a obra e tratou de convidar escritores de vários Estados brasileiros, do Rio Grande do Sul ao Pará, nascidos na década de 1920 até a de 1990, sem se concentrar no triângulo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Há ainda três autores que moram no exterior – Estados Unidos, Inglaterra e Portugal.
II
Como
observou numa das “orelhas” do livro a professora Nádia Battella Gotlib,
livre-docente em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e
uma das maiores especialistas na obra clariciana, a partir da escolha de um dos
contos de Laços de família como motivo inspirador, cada autor seguiu o
seu caminho, às vezes transcrevendo um trecho do texto escolhido, outras vezes
se detendo “num traço de caracterização de personagem ou mesmo num detalhe
episódico, ou num traço cênico”.
E
o resultado foi um livro de contos que pouco fica a dever à grande autora que
os inspirou, aquela que, ao escrever Laços de família, teria produzido
“a mais importante coletânea de contos publicada neste país desde Machado de
Assis”, como afirmou o romancista Érico Veríssimo (1905-1975) em carta à
própria autora datada de 3/9/1961, cujo trecho é reproduzido pelo organizador
como epígrafe da apresentação. São contos que procuram reproduzir, com outras
palavras e temas, a prosa intimista e cheia de metáforas de Clarice, igualmente
carregados de lirismo, em meio a questionamentos sobre a vida e seus mistérios.
De
fato, o conto escrito pelo organizador do volume, “O canto de Clarice”,
inspirado no conto “Feliz aniversário”, trata do encontro entre integrantes de
uma vasta família a propósito da comemoração dos 90 anos de Zilda, a matriarca.
O autor cria e recria diálogos entre filhos, filhas, netos, netas e bisnetos.
Na recriação de Hugo Almeida há até um monólogo interior que seria o da
matriarca (ou da própria Clarice, transformada em personagem?) à beira da
viagem para o eterno: Cumpri a minha jornada, acabou minha curta eternidade.
Ela, ainda que tardia, vem pelo ar. Entre, o corpo é seu. Resina, bálsamo,
ládano? Não. Não paro aqui. Um ser póstero, eu. Fico ainda comigo. No fim, o
fim; só restam o nome e a lembrança. Se restarem. O caminho nunca acaba. A
noite me assusta. Esse infinito me estremece. Mas vou. Estou pronta para a
última tarefa. Mãe, pode me buscar.
Já
em “Sonhos de Ana”, Marta Barbosa Stephens (1975), jornalista e crítica
literária pernambucana que vive desde 2014 na Inglaterra, autora do romance Desamores
da portuguesa (Rio de Janeiro, Ímã Editorial, 2018) e do livro de contos Voo
luminoso de alma sonhadora (São Paulo, Intermeios, 2013), reconstitui
o viver de uma mulher, Ana que, à noite, tem sonhos que a levam para longe
daquele destino opaco de dona de casa. Eis um excerto: Pensou em por quanto
tempo continuaria a viver assim, mais dentro do sonho do que da vida. Outra
manhã, e ela não sabia como se comportar. (...) O que a movia à mesa de café da
manhã era a lembrança dos sonhos. Saía da cama, mas seguia amarrada a uma
memória. Não eram imagens nítidas, mas eram sensações reais que a acompanhavam
à cozinha, e logo ao mercado, ao salão de beleza, à biblioteca, à sessão de
terapia. Até se dispersarem na rotina, para de novo a tomarem pela noite.
Por
aqui se constata que Marta Barbosa Stephens não só levou ao pé da letra a
sugestão do organizador do livro como foi além: produziu um texto que parece
saído diretamente das mãos de Clarice Lispector.
III
Outro
conto que se destaca é “Delírios e divagações da miúda”, do mineiro Ronaldo
Cagiano (1961), autor dos livros de contos Eles não moram mais aqui (São
Paulo, Editora Patuá, 2015), Dezembro indigesto (Governo do Distrito
Federal, Secretaria de Estado de Cultura, 2002) e Dicionário de pequenas
solidões (Rio de Janeiro, Editora Língua Geral, 2006), entre outros. Nesse
texto, o autor faz um diálogo com a obra clariciana, a partir do conto “Devaneio
e embriaguez duma rapariga”, buscando uma escrita que seja “um flerte e não um
pastiche; uma simbiose, não um plágio; um olhar pessoal, jamais uma releitura”,
como explicou em seu depoimento.
Vivendo
desde 2016 em Estoril, freguesia de Cascais, Cagiano optou por localizar seu
conto em Lisboa e por uma linguagem em que não são poucas as palavras de uso
corrente em Portugal para reconstituir o dia a dia de uma jovem, Gilda Helena,
que, arrancada às pressas do Brasil, fora viver às margens do Tejo, quando os
pais tiveram de optar pelo exílio para fugir dos horrores da ditadura militar
brasileira (1964-1985). E ela, então, já adolescente, vive o drama de ser
cortejada pelo neto de um antigo agente da Pide, a polícia política do regime
salazarista. E, assim, Cagiano reconstitui “a paixão segundo G.H.”, que o
leitor pode ler como uma intertextualização, pois esse é o título de um
dos mais conhecidos romances de Clarice Lispector, publicado em 1964. É de se observar
que Cagiano usou a linguagem, a dicção de Portugal, como no conto de Clarice
Lispector que ele recriou.
Já
para a premiada romancista e contista paraibana Marília Arnaud (1964), recriar
um dos contos de Clarice Lispector equivale a “estar no centro do coração
selvagem”, o que remete para o romance de estreia da autora, publicado em 1944.
Em “A mulher do casaco marrom”, ela trata de recriar o conto “O búfalo”, de
Clarice Lispector, em que a protagonista é mais uma mulher oprimida no
exercício de suas funções como esposa e dona de casa. E que, para fugir daquele
destino de viver com um homem que já não a ama (ou talvez que nunca a tenha
amado), procura livrar-se da opressão caminhando sozinha pelas ruas da cidade.
E reflete: A vida, um barco em correnteza. Sem remos. Maldito homem! Se ao
menos houvesse morrido, não teria de aprender a odiá-lo. Conhecia a morte, que
visitara a sua casa quando ela era ainda uma garota. Com a partida repentina da
mãe, entupira-se de silêncio e aninhara-se nos livros (...).
Por aqui se vê que razões não faltam a Hugo Almeida, o organizador, quando diz, no texto de apresentação, que “o leitor verá que inquietação, dor, mistério, amor, inveja etc. atravessam as narrativas deste livro”. E que, portanto, ler esta coletânea é o melhor caminho para se descobrir ou se reencontrar com uma das maiores escritoras brasileiras do século XX, senão a maior.
IV
Mineiro
radicado em São Paulo desde 1984, Hugo Almeida (1952), doutor em Letras na área
de Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Mil
corações solitários (São Paulo, Editora Scipione, 1988), que conquistou o
Prêmio Nestlé de 1988 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1987, com o título
de Carta de navegação. Em 2021, publicou Certos casais (Editora
Laranja Original), seu quarto livro de contos, que reúne nove textos inéditos,
alguns escritos há duas ou três décadas, mas que receberam ajustes para a
publicação.
Publicou
ainda os livros juvenis Porto Seguro, outra história, novela (São Paulo,
Nankin Editorial, 2005) e Que dia será o dia?, novela (Nankin Editorial,
2007), e os infantis Mais
rápido do que a luz (São Paulo, Editora FTD, 1993), Todo mundo é
diferente (São Paulo, Lê Editora, 1996) e Pare, olhe, siga: boa viagem
(São Paulo, Editora Ícone, 2000), além da novela Meu nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora
Dimensão, 2009), do livro infantojuvenil Cinquenta metros para esquecer
(São Paulo, Didática Paulista, 1996) e do romance Minha estreia no crime – Estação
111 (São Paulo, Lê Editora, 1997), inspirado do massacre do Carandiru,
ocorrido a 2 de outubro de 1992, em São Paulo. Tem à espera de publicação um
romance que dialoga com a obra de Osman Lins.
Autor
de tese de doutoramento na USP sobre o romance A rainha dos cárceres da
Grécia, de Osman Lins (1924-1978), organizou (e prefaciou) Osman Lins: o
sopro na argila, ensaios, 2004) e, com Rosângela Felício dos Santos, Quero
falar de sonhos (2014), artigos deste escritor. Organizou ainda as
coletâneas de contos Nove, novena: variações (São Paulo, Olho d´Agua,
2016), que reúne narrativas inspiradas na obra de Osman Lins.
Profissionalmente, sempre trabalhou como jornalista, com longa carreira na
redação do jornal O Estado de S.Paulo. Adelto Gonçalves - Brasil
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Feliz
aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família, de Hugo Almeida (organizador). Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 272 págs., livro impresso: R$ 54,90; e-book: R$ 38,90, 2020.
Site da editora: www.grupoautentica.com.br
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015)
e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo
1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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