São
Paulo/Porto Alegre – Uma gigantesca operação de marketing e cooptacão foi
montada pelo Carrefour para recuperar a perda do valor de suas ações – cerca R$
2,2 bilhões nas Bolsas de São Paulo e de Paris – após o assassinato do soldador
João Alberto Silveira Freitas na loja do Passo D’Areia, em Porto Alegre, em 20
de novembro de 2020 – véspera do Dia Nacional da Consciência Negra.
Para
limpar a imagem, abalada com os casos recorrentes de racismo em suas lojas, a
rede investiu R$ 140 milhões – 25 milhões para um fundo e os outros 115 milhões
no acordo com a Educafro e órgãos públicos – para se ver livre de processos. No
acordo, que está sendo questionado na Justiça, a empresa também pretende
isenção de culpa e imunidade para os próximos três anos.
Um
coletivo de advogados do qual fazem parte dois advogados da família – Hamilton
Ribeiro e Carlos Barata – denuncia “o ato simulado” que está por trás do
acordo, e luta na Justiça para que a marca francesa seja responsabilizada
civilmente e não tenha acesso a mecanismos de renúncia fiscal.
Se
isso não acontecer e o Carrefour ficar isento de responsabilidade, segundo
especialistas na área contábil empresarial, a empresa recupera em, no máximo,
três anos o investimento feito. “Trata-se, pura e simplesmente, de uma operação
contábil”, afirma o advogado capixaba André Moreira (foto), integrante do
Coletivo.
A
operação passou pela adoção de medidas e pela adesão de personagens que só
agora, um ano e dois meses depois da morte, começam a aparecer como parte de
uma mesma estratégia.
A
primeira foi a criação do Comitê de Diversidade, para o qual foram chamados
subcelebridades negras da Academia e do empreendedorismo, entre os quais, Sílvio
de Almeida, Celso Athayde, Maurício Pestana e Adriana Barbosa.
Para
o fundo, gerido com o assessoramento do Comitê, foram destinados R$ 25 milhões.
O dinheiro, além de ações educativas e de propaganda, serviu para que o
Carrefour, por meio de editais, ganhasse a adesão de entidades negras país
afora com projetos de até 65 mil.
Propaganda e marketing
No
total, 40 integram o primeiro time da campanha de marketing, em quase os todos
os estados da federação, atraídos por meio de editais nas áreas de
fortalecimento institucional de organizações afro-brasileiras da sociedade
civil; apoio ao empreendedorismo negro; e ações de combate e conscientização
sobre racismo e discriminação. Entre as contempladas estão a ABPN e Filhos de
Gandhi, na Bahia, e a Sociedade Floresta Aurora, entidade negra gaúcha de mais
de 150 anos.
No
caso da Aurora, a decisão da direção da entidade provocou um racha interno. O
advogado Antônio Carlos Côrtes, oriundo do Grupo Palmares, membro nato do
Conselho Deliberativo da entidade, e que lançou para o país o 20 de novembro
como Dia Nacional da Consciência Negra, denunciou a adesão como “uma traição
aos ancestrais”.
Embora
o processo de cooptacão seja amplo geral e irrestrito, nem todo mundo caiu no
canto da sereia do Carrefour. Rubens de Souza Fernandes, Rubão, o octogenário
presidente da SOEUAFROBRASILEIRA, recusou participar dos tais editais e
denunciou a manobra. ”O Carrefour tem a intenção de comprar nossa dignidade e
silenciar o movimento negro contra o racismo”, afirma Rubão.
Garoto propaganda
Também
no sul, o processo de cooptacão do Carrefour resultou numa parceria comercial
com o apresentador gaúcho Manoel Dias, do programa “É de Casa”, da TV Globo,
transformado em garoto propaganda da marca.
Nas
falas de Dias, em que recorre quase sempre ao histórico de “quem já viveu em
situação de rua”, a empresa responsável pela morte de Beto Freitas é
apresentada como campeã da luta contra o racismo.
Em
evento do Carrefour, em novembro passado, do qual participaram Celso Athayde,
Preto Zezé, da Central Única de Favelas (CUFA), e Sílvio de Almeida, o dublê de
apresentador global disse “pretender transformar o local em que Beto Freitas
foi morto de um espaço de estigma, em espaço de carisma”. Não se sabe o que
pretendeu dizer, mas ele rapidamente se socorreu com frase autoexplicativa:
“Mas, não de graça…”.
Dias
estava na manifestação deste sábado (05/02) em protesto pelo assassinato por
espancamento do congolês Moïse Kabagambe, em frente ao quiosque Tropicália, na
Barra da Tijuca, no Rio. Diria depois ter sido insultado por racistas.
Esqueceu, porém, que Beto Freitas também foi espancado até a morte por
seguranças do Carrefour, empresa de quem ele se tornou garoto propaganda e de
quem se apresenta como parceiro comercial.
A
operação também passou pela contratação de grafiteiros para intervenções com a
criação de grandes painéis como o do Centro Histórico de Porto Alegre, com a
pintura de um mural a que chamaram Aurora Negra.
Papel do judiciário
Outra
medida que faz parte da mesma estratégia foi o protocolo, pela Educafro, de uma
ação civil pública pedindo R$ 100 milhões de indenização, com o cadáver de Beto
Freitas ainda quente. Foi essa ação que resultou no acordo que está sendo
questionado na justiça pelo Coletivo de Advogados Cidadania, Antirracismo e
Direitos Humanos, em que o Carrefour prometeu pagar R$ 115 milhões para se
livrar de processos.
O
Coletivo, constituído pelas entidades SOEUAFROBRASILEIRA e COADE (Coletivo de
Advogados pela Democracia), denuncia que o TAC foi um ato simulado uma vez que,
além de isentar o Carrefour de responsabilidade, viola o parágrafo 2° do artigo
13° da Lei da Ação Civil Pública.
A
lei é textual: “Havendo acordo ou condenação com fundamento em dano causado por
ato de discriminação étnica nos termos do disposto no art. 1° desta Lei, a
prestação em dinheiro reverterá diretamente ao fundo de que trata o caput e
será utilizada para ações de promoção da igualdade étnica, conforme definição
do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, na hipótese de extensão
nacional, ou dos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial estaduais ou locais,
nas hipóteses de danos com extensão regional ou local, respectivamente”. O
parágrafo 1° e 2° ao artigo 13° foram incluídos pela Lei nº 12.288, de 2010 – o
Estado da Igualdade Racial.
Mesmo
assim, os órgãos públicos que patrocinam o acordo – Ministério Público e
Defensorias do Estado e da União -, em conluio com a Educafro, do Frei David
Raimundo dos Santos, querem que o dinheiro do acordo seja gerido pelo próprio
Carrefour.
No
caso da Educafro, insatisfeita com R$ 3,45 milhões de honorários para seus
advogados, quer receber R$ 23 milhões – 20% do acordo – dez vezes mais do que a
indenização paga a viúva Milena Freitas. In “Afropress”
- Brasil
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