Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Angola - Os juristas e o seu dever de confrontar o “Sr. Ordens superiores”, pela positiva. Em apoio aos anúncios do presidente João Lourenço

Os juristas angolanos e o seu dever de confrontar o “Sr. Ordens superiores”, pela positiva. Em apoio aos anúncios do presidente João Lourenço

Vivendo num país democrático e de direito, proclamado, vai fazendo já mais de trinta anos; terminada a guerra em 2002, lá vão já 20 anos, devia preocupar a todos, especialmente aos juristas (advogados e outros operadores do direito) deste país, a forma como, à luz do dia, se perverte a actuação dos serviços de inteligências do Estado angolano (também conhecidos por “serviços secretos” e “segurança de estado” ou “bófias”, na gíria). Estes órgãos, cujo actividade fundamental seria a defesa do Estado e todos os seus elementos integrantes, contra a sua pilhagem e contra eventuais ameaças à sua soberania, têm actuado não só como se o Estado angolano ainda estivesse em guerra (militar) contra supostos “rebeldes” da UNITA, mas também como se todos aqueles que legal e legitimamente pensem ou ajam num sentido que não agrade ao absurdo sistema instalado, fossem equiparáveis.

É verdade que este é um problema transversal à toda a sociedade política angolana, que só encontrará remédio definitivo, no âmbito da transformação do regime que nos governa, por sua própria iniciativa, como venho sugerindo há já vários anos, ou por imposição de factores externos ao próprio “sistema”, o que esperamos poder acontecer por alguma via pacífica.

Se o problema se coloca, afinal, em sede de toda a sociedade política angolana, porquê este apelo, especial, aos juristas? Porque – temos que convir – a área da justiça e do direito é, claramente, das mais afectadas por essa distorção. Quando é ela, afinal, um dos pilares fundamentais, no âmbito do funcionamento do que devia ser um poder judicial autónomo e paralelo (embora, em última instância, convergente) a outros poderes soberanos.

A matéria relacionada com esta questão, está particularmente regulada no Capítulo II (Segurança Nacional) do Título V (Administração Pública) da Constituição de 2010. E, se tivermos em conta que o Estado angolano incorpora na sua ordem jurídica “o direito internacional geral ou comum” (art.13º), em nenhum desse dispositivo pode deslumbrar-se a permissão de um conjunto de interpretações e práticas a que temos assistido.

Em 2012, como advogado, pleiteando a favor de populares que iam sendo desumanamente desalojados da cidade do Lubango, para matas inóspitas, confrontei-me com um presidente do Tribunal Provincial atónito por me ver com “coragem de ter pegado naquele caso”. Mas, mais atónico fiquei eu, quando o então Procurador Provincial da República, guardião maior da lei e do direito no território, me disse “preto no branco”, que eu deixasse de me envolver naquele caso porque havia “ordens superiores”. Incrédulo, mantive-me ainda assim no processo, pedindo à juíza da causa uma providência cautelar que admitida, redundaria numa suspensão daquele abominável acto administrativo. A senhora Dra juíza só me solicitaria o prosseguimento com actos subsequentes do processo, depois que as habitações dos populares estavam deitadas abaixo. E algumas delas quase em cima de seus moradores, sem alojamento alternativo que não fosse a mata virgem. A partir dessa altura, praticamente suspendi a minha actividade pessoal como advogado, embora mantivesse o escritório aberto, para permitir a continuidade da formação de estagiários, tendo-me dedicado, de corpo inteiro, ao meu doutoramento, contando com a parceria de outros advogados seniores.

Não admira, pois, que me tivesse animado tanto com o discurso, aparentemente libertário, do candidato João Lourenço e, muito especialmente, com o Presidente que proferiu o memorável discurso do dia 26 de Setembro de 2017, no Memorial Agostinho Neto. O que falava do fim do enigmático “Sr Ordens Superiores” que tantos e vergonhosos estragos faz no sector da justiça e do direito, entre outras maldades.

Recordei apenas um caso do passado em que estive, pessoalmente, envolvido. Mas quantos outros casos não temos estado a observar silenciosamente – recorde-se o famoso processo 15+2 – em que o direito e a justiça são espezinhados nas nossas barbas? Mas, a preocupação agora é com o presente, em que tudo volta à primeira forma, com o Presidente João Lourenço. E em certos casos de forma muito mais ostensiva que no tempo do Presidente José Eduardo dos Santos. É um caso sério o que se passa hoje em Angola, no domínio da Justiça e do Direito. Eu que, desta vez não mais irei recuar para me dedicar, quiçá, a um post doutorado, vim hoje exortar a classe para, em conjunto, começarmos a colocar um basta, nesta situação, cooperando com as próprias autoridades.

Conforta que comecem a verificar-se certas posições de inconformismo da parte de responsáveis da nossa Ordem, contra actos tão espantosos como aquele de anular o congresso de um partido da oposição, realizado há cerca de dois anos. Ou de declarações tão repetidamente descabidas de um dos nossos colegas, que passa pelo nome de “Doutor David Mendes”, num meio de comunicação “tão nobre” quanto a TV Zimbo. E sem qualquer contraditório, quando defende e anima as “abismalidades” do tão visível quanto arrogante e intimidatório “ordens superiores”.

É normal que se compreendam as limitações de ordem formal e institucional da Ordem dos Advogados. Mas, por isso mesmo, têm que ser encontrados mecanismos alternativos que se devem presumir legítimos, perante essa tão grave situação que se pretende tornar rotina. Em melhores condições para conhecermos como deve funcionar um Estado democrático e de direito, não como um valor fechado em si, mas como um factor de manutenção da paz e desenvolvimento social, não é digno de nós que observemos impávidos e serenos detenções arbitrárias. Da mesmíssima forma que tantas vezes o assistimos, no tão vilipendiado reino dos “marimbondos” (qual é a diferença?).

Com a ajuda de organizações não governamentais, defensoras dos direitos humanos e dos povos, encontrem-se sucedâneos para a Associação Mãos Livres, do tal Senhor Doutor que, afinal, não passava de um autêntico Cavalo de Troia, deixado sorrateiramente às portas da nossa frágil cidadela da justiça e do direito. Como outros “cavalos de troia” que, por enquanto nos escusamos de citar, até que, sabe Deus, nos venham convencer que andamos equivocados.

E se o Presidente João Lourenço, no início do seu mandato, condecorou lutadores pelos direitos humanos, só terá que agradecer pelo eventual sucesso dessa atitude que se pede aos juristas, com a colaboração dos próprios dignitários do Estado. Não venha ele a ser severamente julgado pela História, por repetir os mesmos erros do “outro”, com tantos caminhos alternativos. E tantas promessas feitas, para fazer diferente! Marcolino Moco - Angola

Marcolino José C. Moco - Advogado, Ph.D em Direito


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