Os juristas angolanos e o seu dever de confrontar o “Sr. Ordens superiores”, pela positiva. Em apoio aos anúncios do presidente João Lourenço
Vivendo
num país democrático e de direito, proclamado, vai fazendo já mais de trinta
anos; terminada a guerra em 2002, lá vão já 20 anos, devia preocupar a todos,
especialmente aos juristas (advogados e outros operadores do direito) deste
país, a forma como, à luz do dia, se perverte a actuação dos serviços de
inteligências do Estado angolano (também conhecidos por “serviços secretos” e
“segurança de estado” ou “bófias”, na gíria). Estes órgãos, cujo actividade
fundamental seria a defesa do Estado e todos os seus elementos integrantes,
contra a sua pilhagem e contra eventuais ameaças à sua soberania, têm actuado
não só como se o Estado angolano ainda estivesse em guerra (militar) contra
supostos “rebeldes” da UNITA, mas também como se todos aqueles que legal e
legitimamente pensem ou ajam num sentido que não agrade ao absurdo sistema
instalado, fossem equiparáveis.
É
verdade que este é um problema transversal à toda a sociedade política
angolana, que só encontrará remédio definitivo, no âmbito da transformação do
regime que nos governa, por sua própria iniciativa, como venho sugerindo há já
vários anos, ou por imposição de factores externos ao próprio “sistema”, o que
esperamos poder acontecer por alguma via pacífica.
Se
o problema se coloca, afinal, em sede de toda a sociedade política angolana,
porquê este apelo, especial, aos juristas? Porque – temos que convir – a área
da justiça e do direito é, claramente, das mais afectadas por essa distorção.
Quando é ela, afinal, um dos pilares fundamentais, no âmbito do funcionamento
do que devia ser um poder judicial autónomo e paralelo (embora, em última
instância, convergente) a outros poderes soberanos.
A
matéria relacionada com esta questão, está particularmente regulada no Capítulo
II (Segurança Nacional) do Título V (Administração Pública) da Constituição de
2010. E, se tivermos em conta que o Estado angolano incorpora na sua ordem
jurídica “o direito internacional geral ou comum” (art.13º), em nenhum desse
dispositivo pode deslumbrar-se a permissão de um conjunto de interpretações e
práticas a que temos assistido.
Em
2012, como advogado, pleiteando a favor de populares que iam sendo
desumanamente desalojados da cidade do Lubango, para matas inóspitas,
confrontei-me com um presidente do Tribunal Provincial atónito por me ver com
“coragem de ter pegado naquele caso”. Mas, mais atónico fiquei eu, quando o
então Procurador Provincial da República, guardião maior da lei e do direito no
território, me disse “preto no branco”, que eu deixasse de me envolver naquele
caso porque havia “ordens superiores”. Incrédulo, mantive-me ainda assim no
processo, pedindo à juíza da causa uma providência cautelar que admitida,
redundaria numa suspensão daquele abominável acto administrativo. A senhora Dra
juíza só me solicitaria o prosseguimento com actos subsequentes do processo,
depois que as habitações dos populares estavam deitadas abaixo. E algumas delas
quase em cima de seus moradores, sem alojamento alternativo que não fosse a
mata virgem. A partir dessa altura, praticamente suspendi a minha actividade
pessoal como advogado, embora mantivesse o escritório aberto, para permitir a
continuidade da formação de estagiários, tendo-me dedicado, de corpo inteiro,
ao meu doutoramento, contando com a parceria de outros advogados seniores.
Não
admira, pois, que me tivesse animado tanto com o discurso, aparentemente
libertário, do candidato João Lourenço e, muito especialmente, com o Presidente
que proferiu o memorável discurso do dia 26 de Setembro de 2017, no Memorial
Agostinho Neto. O que falava do fim do enigmático “Sr Ordens Superiores” que
tantos e vergonhosos estragos faz no sector da justiça e do direito, entre
outras maldades.
Recordei
apenas um caso do passado em que estive, pessoalmente, envolvido. Mas quantos
outros casos não temos estado a observar silenciosamente – recorde-se o famoso
processo 15+2 – em que o direito e a justiça são espezinhados nas nossas
barbas? Mas, a preocupação agora é com o presente, em que tudo volta à primeira
forma, com o Presidente João Lourenço. E em certos casos de forma muito mais
ostensiva que no tempo do Presidente José Eduardo dos Santos. É um caso sério o
que se passa hoje em Angola, no domínio da Justiça e do Direito. Eu que, desta
vez não mais irei recuar para me dedicar, quiçá, a um post doutorado, vim hoje
exortar a classe para, em conjunto, começarmos a colocar um basta, nesta
situação, cooperando com as próprias autoridades.
Conforta
que comecem a verificar-se certas posições de inconformismo da parte de
responsáveis da nossa Ordem, contra actos tão espantosos como aquele de anular
o congresso de um partido da oposição, realizado há cerca de dois anos. Ou de
declarações tão repetidamente descabidas de um dos nossos colegas, que passa
pelo nome de “Doutor David Mendes”, num meio de comunicação “tão nobre” quanto
a TV Zimbo. E sem qualquer contraditório, quando defende e anima as
“abismalidades” do tão visível quanto arrogante e intimidatório “ordens
superiores”.
É
normal que se compreendam as limitações de ordem formal e institucional da
Ordem dos Advogados. Mas, por isso mesmo, têm que ser encontrados mecanismos
alternativos que se devem presumir legítimos, perante essa tão grave situação
que se pretende tornar rotina. Em melhores condições para conhecermos como deve
funcionar um Estado democrático e de direito, não como um valor fechado em si, mas
como um factor de manutenção da paz e desenvolvimento social, não é digno de
nós que observemos impávidos e serenos detenções arbitrárias. Da mesmíssima
forma que tantas vezes o assistimos, no tão vilipendiado reino dos
“marimbondos” (qual é a diferença?).
Com
a ajuda de organizações não governamentais, defensoras dos direitos humanos e
dos povos, encontrem-se sucedâneos para a Associação Mãos Livres, do tal Senhor
Doutor que, afinal, não passava de um autêntico Cavalo de Troia, deixado
sorrateiramente às portas da nossa frágil cidadela da justiça e do direito.
Como outros “cavalos de troia” que, por enquanto nos escusamos de citar, até
que, sabe Deus, nos venham convencer que andamos equivocados.
E
se o Presidente João Lourenço, no início do seu mandato, condecorou lutadores
pelos direitos humanos, só terá que agradecer pelo eventual sucesso dessa
atitude que se pede aos juristas, com a colaboração dos próprios dignitários do
Estado. Não venha ele a ser severamente julgado pela História, por repetir os mesmos
erros do “outro”, com tantos caminhos alternativos. E tantas promessas feitas,
para fazer diferente! Marcolino Moco - Angola
Marcolino José C. Moco - Advogado, Ph.D em Direito
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