Raras são as vezes que sou desafiado a apresentar um livro. Muitas são as vezes que me chegam textos inéditos para dar a opinião crítica e indicar prováveis caminhos aos autores que estão na berma da estrada. Devo confessar que essas tarefas, tanto a de apreciador crítico sobretudo a de apresentador de livro são me sempre estranhas, por pensar e saber que tenho também feito o mesmo em relação aos meus textos de ficção, entregando-os a outros olhos, que os considero mais apurados. Mas por considerar necessária essa troca de textos para uma apreciação por parte do outro, aceito o desafio com o entusiasmo e certo cuidado por saber que muitas vezes trata-se de uma degustação de produtos ainda em cozedura.
Desta
vez, foi o Alerto Bia, um escritor que vem se apresentando na literatura
moçambicana que desafia-me a vir a público apresentar o seu primeiro livro em
prosa. E porque com a tarefa me vou expor a um público principalmente jovem,
aproveito para levantar a voz em torno de uma reflexão que venho fazendo.
Tenho
constatado que a literatura moçambicana dos tempos actuais, apesar de ser
conotada como nova, muitas vezes se repete, sobretudo na abordagem estética e
temática. Se o estético ainda nos abre espaço para experimentações, os temas
são o lado mais arriscado na escrita, por desafiarem o escritor a superar a
todas as abordagens já feitas. Em literatura quase já se escreveu sobre todos
os assuntos. Então, ao decidir escrever, um autor coloca-se um grande desafio
temporal. Noto que parece que os escritores sucedem-se, vão surgindo, mas pouco
se arrisca na abordagem aos temas. Andamos às voltas, vendo as mesmas coisas,
sentindo os mesmos cheiros, ouvindo as mesmas vozes e o que resulta são os
textos que parecem sempre uma repetição de outros textos.
Esta
leitura que faço é muito particular e não tem a ver com alguma obra específica.
Tem antes a ver com os tempos que vivemos. O tempo em que as ropturas parecem
serem feitas a todo o custo. Tempos em que nos custa afirmar as nossas
referências. Tempos que andam depressa, onde a vaidade corrompe a razão e nos
tira a dúvida metódica. Temos em que são os outros a definirem o nosso tempo e
um bom texto parece ser um grande achado num mar de obras. E os leitores, que sempre
foram em número reduzido, parecem também ter perdido a paciência para uma
ficção. Isto quererá dizer-nos alguma coisa sobre o trabalho literário. Sobre a
vaidade e a astúcia do escritor. Sobre a formação do escritor e de todo um
contexto que o define enquanto criativo. E se calhar nos levará a fazer-nos a
pergunta que nos aconselha Reiner Maria Rilke, se pararmos de escrever,
morremos?
Penso
que um novo livro tem de ser sempre uma oportunidade para formular um novo
debate ou para fundamentar opiniões que já existem ou abras novas
possibilidades, tanto por parte do escritor e por parte do leitor crítico ou
comum.
Dito
isto, tenho de reconhecer que não acho o momento literário moçambicano mau.
Acho-o, pelo contrário, entusiasmante. Chegam-nos, de quase todas partes deste
vasto país e para gostos variados, obras literárias, como raramente já se
assistiu. Sempre pensei a nossa literatura como pobre, enquanto não nos
apresentar as propostas literárias das geografias, paisagens e linguagens dos
vários pontos que fazem este país. E pensando nisso, felizmente, há narrativas
que nos desafiam. Há estéticas que não sendo de grande revolução imaginária,
sempre colocam em pauta uma visão, uma atitude de inconformismo em relação ao
estabelecido e ainda nos trazem essas novas geografias, paisagens e linguagens.
O
Alerto Bia já nos levou até ao cais da sua escrita. É um autor com um certo
percurso nas letras o que nos leva a receber a sua obra, embora com menos
desconfiança, mas com alguma atenção acima do que seria em caso de um primeiro
livro.
Publicou
o seu primeiro livro em 2016, com o título Sonhar é ressuscitar, o
segundo livro saiu em 2017, intitulado Sombras cálidas, em 2021, o
terceiro, O desassossego por dentro. Portanto, como podem notar, estamos
de um autor que já não se enquadra no termo novo, porque tem um caminho andado.
Se calhar, para os hábitos da vida literária nacional, ainda se lhe pode chamar
“jovem escritor”, sabe-se lá com que significado, preferindo eu achar que se
refere à idade literária.
O
Alerto Bia tem uma forma de ser e estar própria na literatura. É um autor
regular como nos prova a sequência temporal com que publica. Mostra-nos esse
facto que estamos diante de um autor oficinal, alguém que tem a escrita como
uma tarefa entre outros afazeres da vida. E assim se constrói um escritor cujo
estabelecimento na literatura moçambicana se fará primeiro pela regularidade.
A
obra que nos traz desta vez, O ardina de sapatos gastos, editada pela
Fundza, é composta por um conjunto de 14 contos que produziu durante o
confinamento obrigado pela pandemia da covid-19. E vai se notar pelo tempo que
dá ao ritmo das suas estórias e pela estética que emprega. As narrativas muitas
vezes se apresentam sem acções segmentadas ou personagens com características exaustivamente
descritas.
São
contos em que o autor privilegia a escrita criativa. Eu diria que é a escrita
somente em si a fazer as histórias, talvez inspirado pelo inusitado, por um
momento, por uma ideia abstrata, ou somente, sentou-se diante do papel em branco
e foi começando a escrever sem rumo, até que surgiram os nomes, os lugares e os
acontecimentos e se fez o conto.
Muitas
vezes e desde a escola, somos ensinamos a ouvir as histórias e nos fazermos a
pergunta: qual é a moral da história? Ou perguntas do tipo, qual é o assunto da
história? Pois se o leitor é desse tipo terá de reformular o seu pensamento e
entregar-se para um estilo que desafia o nosso preparo para os livros.
Este
conjunto de contos de Alerto Bia não visa necessariamente trazer-nos assuntos.
Visa levar-nos para os labirintos da palavra, para a viagem da escrita. Como
pouco há hábito, o escritor propõe-nos em O ardina de sapatos gastos, a
entrarmos no seu mundo e acompanhar a formação das palavras, acharmos as
personagens e construirmos uma estória provável.
O ardina de sapatos gastos, pode ser aquele livro que há de nos levar a
perplexidade pela forma rápida com que os momentos-chaves são narrados ou
então, a lentidão com que o autor vai levar-nos a revelar um segredo ou a
resolver um problema. É como disse, nota-se que se trata de textos que o
escritor escreveu sem pressa, para matar o tédio dos dias de isolamento e de
ausências. Textos de uma solidão que não é propriamente o habitual resguardo do
escritor que precisa de um tempo para si e para o seu processo de escrita. Mas
uma solidão do mundo, que nos permitiu, a todos, a experimentação de um momento
incomparável. Então este livro há de ser um pouco do espelho do que cada um de
nós experimentou quando não havia abraços, nem beijos, muito menos pessoas nas
ruas com rostos abertos.
As
estórias que nos revela são de uma peculiaridade em termos de construção e
personagens, fugindo da estética que nos habitua a tradição do conto, onde as
personagens muitas vezes são rostos visíveis, são vidas reconhecíveis de longe
e os assuntos vem cadenciados, mesmo em narrativas abertas, onde o fim, por
vezes é um enigma. O Alerto Bia, apresenta-nos um livro que vai ser um deleite,
mas também uma contradição em muito do que manda o nosso senso comum. Por isso,
lê-lo é também um exercício ousado, de interagir com a escrita que nos
contraria, que não sendo explosiva, é estranha. Uma estranheza que nos leva a
querer mais, a querer ler de novo e querer outras histórias depois destas. Aí
fica já o desafio para os leitores corajosos. Eduardo Quive – Moçambique in “O País”
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